Havia outra solução para Kosovo
O “genocídio” dos albaneses no Kosovo, que se fingiu tentar impedir a qualquer custo, seria um genocídio de fato ou a tentativa dos Estados Unidos, via Otan, de impor sua dominação sobre os Bálcãs? Daí a recusa obstinada dos aliados de qualquer solução diplomática
No ano anterior aos bombardeios, em 1998, o Kosovo era um lugar totalmente sinistro. De acordo com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), cerca de 2 mil pessoas tinham sido assassinadas, a maioria albaneses, durante a violenta luta que havia começado em fevereiro de 1997 com as ações do Exército de Libertação do Kosovo (KLA) – qualificado de “terrorista” pelos Estados Unidos – e a brutal reação sérvia. No início do verão [do Hemisfério Norte] de 1998, o KLA havia tomado o controle de 40% da província, o que gerou uma reação brutal por parte das forças de segurança e grupos paramilitares sérvios, que se precipitaram sobre a população civil. Segundo Marc Weller, então conselheiro jurídico da delegação dos kosovares albaneses na Conferência de Rambouillet, “no espaço de alguns dias [após a retirada dos observadores em 20 de março de 1999], os refugiados aumentaram outra vez e chegaram a mais de 200 mil”, número que corresponde mais ou menos ao dos serviços de informação norte-americanos.1
Imaginemos que os observadores não tivessem se retirado durante a preparação para os bombardeios e que os esforços diplomáticos tivessem seguido. Tais alternativas eram possíveis? Teriam produzido um efeito ainda pior? Ou teriam melhorado o cenário? Jamais saberemos, pois a Otan descartou essas possibilidades. Pode-se, contudo, analisar o contexto e formular reflexões a partir das possibilidades que se desenhavam.
Os observadores da Missão de Verificação no Kosovo, da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE), poderiam ter reforçado outras alternativas? Parece que eram factíveis, em particular à luz da condenação imediata da retirada dos observadores internacionais pela Assembleia Nacional Sérvia. Nenhum argumento sugeria que o aumento das atrocidades após a saída da equipe não teria acontecido se ela tivesse permanecido, sem mencionar a escalada de violência decorrente do anúncio do bombardeio da Iugoslávia para obrigar o presidente sérvio, Slobodan Milosevic, a assinar um acordo de paz com os rebeldes do Kosovo. De qualquer forma, a Otan não fez muito esforço para explorar outras vias pacíficas: até mesmo o embargo sobre o petróleo, primeira medida de toda política séria de sanções, foi considerado apenas depois do início dos bombardeios.
Contudo, a questão mais importante concerne às opções diplomáticas. Às vésperas do bombardeio, havia duas propostas sobre a mesa. Uma delas era o Acordo de Rambouillet, apresentado como um ultimato à Sérvia. A segunda era a proposta da própria Sérvia, formulada a partir da revisão do acordo de 15 de março e da resolução de 23 de março da Assembleia Nacional sérvia.2 A preocupação sincera em proteger os kosovares teria levado a Otan a considerar outras opções, como a proposta do presidente sérvio da Iugoslávia, Dobrica Cosic, em 1992-1993, de dividir o Kosovo e criar um Estado sérvio com a manutenção de “um certo número de enclaves sérvios”.3
Naquela época, a proposta foi rejeitada pela República do Kosovo de Ibrahim Rugova, que havia declarado independência e estabelecido um governo paralelo; porém, poderia ter servido de base para as negociações do início de 1999, em circunstâncias bem diferentes. Mas limitemos nossas conjecturas às duas posições oficiais do fim de março de 1999: o ultimato de Rambouillet e a resolução sérvia. É importante ressaltar que, no conjunto, o conteúdo essencial desses dois documentos foi ocultado do público – apesar de ter sido parcialmente veiculado em meios de comunicação dissidentes, cujo alcance era muito limitado.
A resolução da Assembleia Nacional sérvia, apesar de ter sido imediatamente reportada pelas agências de notícias, permaneceu praticamente desconhecida. Houve poucas referências à sua existência, e menos ainda ao conteúdo. A resolução condenava a retirada dos observadores da OSCE e pedia à ONU e à OSCE que facilitassem uma solução diplomática por meio de negociações “com o objetivo estabelecer um acordo político sobre a autonomia substancial do Kosovo, garantindo assim a igualdade de todos os cidadãos e comunidades étnicas, e respeitando a soberania e a integridade territorial da República da Sérvia e da República Federal da Iugoslávia”. A resolução evocava a possibilidade de uma “presença internacional” – cujos “caráter e amplitude” seriam determinados nas negociações – para zelar pelo “acordo político sobre a autonomia estabelecida e aceita pelos representantes de todas as comunidades nacionais que vivem no Kosovo”. A prescrição da República Federal da Iugoslávia (RFI) “para discutir a amplitude e o caráter da presença internacional [no Kosovo] encarregada de garantir o acordo que seria validado em Rambouillet” foi comunicada formalmente aos negociadores no dia 23 de fevereiro de 1999 e tornada pública pela RFI após uma coletiva de imprensa no mesmo dia.4 Nunca saberemos se essas propostas eram factíveis, já que foram ignoradas.
Interesses ocultos
Ainda mais escandaloso foi o ultimato de Rambouillet, universalmente apresentado como a proposta de paz, porém igualmente ocultado do público – em particular as disposições introduzidas, diz-se, no último momento das negociações em Paris, em março, após a Sérvia ter aprovado as principais propostas políticas, o que tornou impossível qualquer refutação.
São particularmente importantes as disposições dos anexos sobre a aplicação do acordo, que conferiam à Otan o direito de “livre trânsito, sem restrição ou burocracia, em toda a República Federal da Iugoslávia, inclusive no espaço aéreo e águas territoriais associadas”, sem limites ou obrigações e sem qualquer preocupação pelas leis do país ou competência de suas autoridades, que deveriam, inclusive, seguir as ordens da Otan “de caráter prioritário e cuja execução podia dispor de todos os meios apropriados” (Anexo B).
O anexo nunca foi apresentado aos jornalistas que cobriam as negociações de Rambouillet e Paris, segundo o jornalista britânico Robert Fisk. “Os sérvios anunciaram que rejeitariam o adendo durante a última coletiva de imprensa em Paris, uma reunião pouco concorrida na embaixada da Iugoslávia, às 23 horas do dia 18 de março.” Os dissidentes sérvios que participaram das negociações afirmam que foram comunicados sobre os acréscimos no último dia das discussões, e os russos não estavam a par da existência dessas disposições – que, ademais, foram comunicadas à Câmara dos Comuns britânica apenas em 1º de abril, primeiro dia do recesso parlamentar e uma semana após o início dos bombardeios.5
Durante as negociações iniciadas após os bombardeios, a Otan abandonou completamente essas reivindicações, assim como outras às quais a Sérvia se opôs. Com toda razão, Fisk questiona: “Qual é o sentido real da exigência de último minuto feita pela Otan? Era um cavalo de Troia? Seu objetivo era mesmo salvaguardar a paz? Ou sabotá-la?”. Seja qual for a resposta, se os negociadores da Otan realmente tivessem como preocupação central os kosovares albaneses, teriam tentado determinar qual poderia ser a chance de sucesso da diplomacia se as exigências mais provocativas, e inúteis, fossem retiradas; se a missão de observação fosse reforçada, e não abortada; e se a ameaça de sanções sérias tivesse de fato se concretizado.
Negociações
Confrontados com essas questões, os responsáveis das delegações norte-americana e britânica afirmaram que estavam dispostos a deixar de lado as exigências mais exageradas, que teriam sido abandonadas em seguida, mas que os sérvios tinham recusado essas propostas.
A afirmação tem pouca credibilidade. Eles teriam todas as razões do mundo para imediatamente tornar os fatos públicos. É interessante notar que eles não foram interpelados a responder por essa surpreendente atuação. Os membros do alto escalão partidários dos bombardeios fizeram declarações similares: um exemplo importante aparece no comentário de Marc Weller sobre a Conferência de Rambouillet.6 Weller ridicularizou as “alegações extravagantes” em relação aos anexos que, segundo ele, “foram publicados com o próprio acordo” (referindo-se ao projeto de acordo de 23 de fevereiro). Ele não diz, contudo, como os anexos apareceram nem explica por que os jornalistas que cobriam as negociações não sabiam de sua existência – assim como o Parlamento britânico.
O “famoso Anexo B estabelecia condições normais para um acordo sobre o estatuto das Forças Armadas da KFOR [força de ocupação da Otan]”, escreve. Ele não explica por que essa reivindicação foi abandonada pela Otan após o início dos bombardeios e não foi levada em conta, segundo as evidências, para as forças que invadiram Kosovo sob o comando da Otan em junho – estas foram ainda mais brutais que as discutidas em Rambouillet e deveriam, pois, depender ainda mais de um acordo sobre o estatuto das Forças Armadas. Tampouco explica a resposta da RFI ao projeto de acordo de 23 de março. Essa resposta discute o texto minuciosamente, seção por seção, e propõe importantes cortes e modificações, porém não menciona os anexos – cujo conteúdo são as medidas de aplicação do acordo que, como sublinha Weller, eram a parte mais importante do documento e foram objeto das negociações em Paris. Independentemente da atitude cavalheira do autor, contudo, essa leitura gera certo ceticismo a propósito dos fatos cruciais e de sua parcialidade evidente. Até o momento, essas questões permanecem obscuras.
Apesar dos esforços oficiais de impedir que o público se conscientizasse do que estava se sucedendo, os documentos estavam acessíveis a todos os meios de comunicação que desejassem se aprofundar na questão. Nos Estados Unidos, a exigência extrema (e inútil) da ocupação da RFI pela Aliança Atlântica foi mencionada pela primeira vez em uma coletiva de imprensa da Otan, em 26 de abril de 1999, quando um jornalista perguntou sobre o tema – rapidamente contornado e abandonado.
Os fatos foram reportados a partir do momento em que as exigências foram formalmente retiradas pela Otan e perderam qualquer pertinência em termos de escolha democrática. Imediatamente após o anúncio do acordo de paz de 3 de junho, a imprensa citou as passagens-chave “a manter ou a excluir” do ultimato de Rambouillet, notando que elas exigiam “uma força exclusivamente composta de tropas da Otan plenamente autorizadas a ir e vir por toda a Iugoslávia, com imunidade legal”, e que “as tropas dirigidas pela Otan teriam acesso praticamente livre a todo o território iugoslavo, não somente ao Kosovo”.7
As negociações se seguiram por 78 dias de bombardeio, cada lado fazendo concessões – descritas nos Estados Unidos às vezes como caprichos sérvios, às vezes como capitulação sob as bombas. O acordo de paz de 3 de junho era um compromisso entre as duas posições sustentadas no fim de março. A Otan abandonaria suas exigências mais extremas, inclusive aquelas que aparentemente tinham surgido no último instante das negociações, assim como a formulação que foi interpretada como a previsão de um referendo sobre a independência do Kosovo. A Sérvia autorizou a “presença internacional de segurança, com participação substancial da Otan”, única menção da Aliança no acordo de paz ou na Resolução n. 1.244 do Conselho de Segurança que o aprovou.
Uma gigantesca nuvem de fumaça tóxica
A Otan não tinha nenhuma intenção de respeitar o pedaço de papel que acabava de assinar, e imediatamente começou a violá-lo, procedendo a uma ocupação militar do Kosovo sob seu comando. Ao insistirem para que os termos do acordo formal fossem respeitados, a Sérvia e a Rússia foram severamente criticadas, e os bombardeios foram retomados para forçar essas nações a ceder. Em 7 de junho, os aviões da Otan bombardearam novamente as refinarias de petróleo Novi Sad e Pancevo, dois centros de oposição a Slobodan Milosevic. A refinaria de Pancevo pegou fogo e produziu uma gigantesca nuvem de fumaça tóxica. Acompanhado de uma fotografia, um artigo do New York Timesde 14 de julho discutia os graves efeitos para a economia e para a saúde pública.
O bombardeio nem sequer foi mencionado, apesar de ter sido reportado pelas agências de notícias.8 Sustentava-se que Milosevic teria tentado burlar os termos do acordo, cuja validade também parecia ser colocada em dúvida. O balanço dos episódios corroboram essa conclusão, da mesma forma que corrobora a mesma conclusão a respeito da Otan – e, que seja dito, não somente nesse caso. O descambo dos acordos formais para o uso da força é a norma para grande parte das grandes potências.9 Como sugere esse balanço, reconhecidamente tardio, “teria sido possível [em março] inaugurar uma verdadeira série de negociações – e não a desastrosa decisão unilateral norte-americana apresentada a Milosevic na Conferência de Rambouillet – e enviar uma grande equipe de observadores internacionais capazes de proteger tanto os civis sérvios como os civis albaneses”.10
Pelo menos isso está claro. A Otan escolheu rejeitar as opções diplomáticas – que não tinham sido esgotadas – e decidiu lançar uma campanha militar com consequências terríveis para os albaneses do Kosovo, como previsto.