O horror como espetáculo: uma análise preliminar do conflito
Todo o horror do conflito entre Israel e Hamas, que se tornou o massacre do povo palestino, é transmitido ao vivo pelas TVs, retransmitido pelas redes sociais, como se tudo isso fosse normal
O século XXI é marcado pela sociedade da informação. A midiatização da vida é repercutida nos grandes canais de comunicação e nas redes sociais. Além do cotidiano das pessoas, cenas de guerra também são mostradas ao vivo. Há muitas fotos e filmes sobre o longo conflito entre israelenses e os palestinos, em especial, a partir de 1948, quando é fundado o Estado de Israel.
Desde o dia 7 de outubro estamos vendo o maior confronto direto desde a guerra do Yom Kippur (1973) entre o Estado de Israel e os palestinos. Ao finalizar este artigo dia 30/10, o conflito continua e o Exército de Israel já realiza incursões terrestres na Faixa de Gaza, assim, este artigo é de conjuntura e limitado aos 23 dias de combates entre o Hamas e Israel.
O Estado de Israel é um país que rende muita mídia no mundo, segundo Jorge Zaverucha. “Existem vantagens nesse mediatismo: Israel é sempre um sucesso de bilheteria para jornais ou televisões que dedicam ao caso uma atenção obsessiva, por vezes mesmo desproporcional”.
Os ataques do Hamas contra os israelenses, os quais foram, na maior parte das vezes, filmados e transmitidos nas redes sociais, busca-se transformar o horror em espetáculo (Guy Debord. “A Sociedade do Espetáculo”, 2003). Os jornais da grande mídia televisiva brasileira e as redes sociais se limitam em apresentar imagens e destacar um ataque ou outro, como fosse um carnaval ou um espetáculo qualquer. A resposta de Israel é evidentemente desproporcional, a força militar é extremamente superior, sem considerar o apoio total dos EUA, maior força militar do mundo. Em termos, é necessário configurar a situação como um massacre ao povo palestinos, no qual um ou outro terrorista é morto.
Além do apoio militar dos EUA, Israel pode contar com apoio da mídia europeia como as agências da França (AFP), da Alemanha (DPA), da Inglaterra (Reuters), a British Broadcasting Corporation (BBC), que têm correspondentes em Israel. A mídia brasileira reproduz e interpreta os conflitos no mundo, por meio dessas agências de notícias.
A maioria das pessoas no Brasil não tem acesso a outras narrativas sobre o massacre. A agência do Catar, Al Jazeera, e da Rússia, Sputinik, não são citadas nos meios de comunicação tradicionais. Em uma análise do site da Al Jazeera é possível ver o enfoque do drama humano em Gaza. Com a destruição das casas e prédios, muitas pessoas dormem na rua porque suas casas foram bombardeadas por mísseis lançados por Israel.
Já a CNN Brasil ocupa um espaço maior de sua cobertura com os ataques do Exército de Israel, as movimentações das tropas e os números dos bombardeios ocorridos. Mapas das incursões dos israelenses são mostrados na tela da TV. Uma âncora da emissora, Elisa Veeck, chegou a dizer que era “fantástico” ver o seu colega ao vivo, Américo Martins, noticiando os eventos em solo israelenses. Ao final, Veeck chama os fatos noticiados de triste. Outro jornalista (CNN Internacional), em meios aos tanques israelenses, busca justificar o número grande de tanques de guerras de Israel, devido a um possível ataque do Iêmen ou do Hezbollah.
As mortes de crianças nas guerras não comovem as potências mundiais (EUA, França, Inglaterra, Rússia e China). No caso do atual conflito no Oriente Médio, todos os países parecem (e estão) enrolando para de fato cobrar as responsabilidades do Estado de Israel e punir de forma séria todos os terroristas do mundo e de seus massacres à população civil. Quando um estado, com leis e burocracia moderna, mata e desloca crianças em um êxodo forçado, sem água, comida ou energia, é um crime contra a humanidade. E tudo isso, filmado e registrado através de comunicações formais, oficiais e pelas redes sociais.
Todo o horror do conflito entre Israel e Hamas, que se tornou o massacre do povo palestino, é transmitido ao vivo pelas TVs, retransmitido pelas redes sociais, como se tudo isso fosse normal. No dia 11/10, a Globo News entrevista ao vivo uma moradora com cidadania brasileira, que está em Gaza, e o portal de notícias G1 faz uma matéria intitulada de “’Não quero morrer’. A brasileira que vive em Gaza”.“A jovem brasileira Shahed Al-Banna, de 18 anos, fez um relato desesperado da situação de momento em Gaza. Na quarta-feira (11), ela relatou estar na casa da tia para se abrigar dos bombardeios. Nesta sexta (13), ela foi para uma escola que servia de abrigo para um grupo de brasileiros e palestinos. E contou em entrevista à Globo News que todos foram orientados a sair do local com urgência”.
No entanto, no mesmo momento, a entrevistada precisou parar de falar e sair correndo, por conta de um dos ataques de Israel. Do outro lado, em Israel, a CNN Brasil transmitiu, no dia 14/10, ao vivo, o repórter Michel Gawendo, no aeroporto de Tel Aviv, quando ao fundo tocava uma sirene. Ele e todos em sua volta tiveram que correr e se esconder, mas as cenas continuaram ao vivo. Entre as grandes emissoras do Brasil, a Globo News e CNN Brasil reproduziram entrevistas com especialistas, tendo seus correspondentes em Israel ou nos EUA.
No domingo, 15/10, a Globo News dedicou o dia inteiro para debater sobre a guerra entre Hamas e Israel, e especialistas na área foram chamados, como Benito Hartmann Pacheco. A CNN ainda fez um o programa CNN Prime Time, ao vivo, e o WW dedicou todo o tempo para analisar a guerra entre o Hamas e Israel, mobilizando especialistas. Entre eles, o ex-embaixador do Brasil em Israel, Sérgio Eduardo Moreira Lima; o ex-embaixador em Londres e Washington, Rubens Barbosa; e o cientista político e professor de Relações Internacionais, Henri Ozi Curier.
Já na TV aberta, a Rede Globo recapitulou a história de Israel e dos conflitos até o atual momento. Da mesma forma, trouxe especialistas e mais imagens feitas pelo Hamas (provavelmente cedida pelo exército de Israel) e de fotos e mapas da região de Gaza. Os programas cedem pouco espaço aos especialistas, deixando lacunas no entendimento dos fatos.
Por outro lado, os dois grandes jornais de circulação no país, Estadão e Folha de S. Paulo, também fizeram matérias exclusivas sobre o conflito, as quais ficaram em destaque até a redação final deste trabalho. Usando os descritores para análise deste trabalho: Israel, Hamas e Palestina nos dois jornais citados, encontramos os seguintes registros dessas palavras nos jornais:
FSP | Estadão | Total | |
Israel | 1258 | 749 | 2.007 |
Hamas | 1035 | 692 | 1.727 |
Palestina | 412 | 541 | 953 |
Fontes: FSP e Estadão [Online] 01 a 30/10/23. Elaborado pelos autores.
Dos 4.687 registros encontrados nos dois maiores jornais do país, o nome de Israel aparece aproximadamente 44% vezes em detrimentos aos 36% do Hamas e de 20% da Palestina. A Palestina é menos citada porque se desconhece o que são esses territórios e quem são os árabes que vivem nessas regiões. Fica uma narrativa polarizada entre o bem e o mal, os mocinhos e os bandidos.
No Instagram, criado em 6/10/10, às contas sobre a temática militar também movimentam os posts da guerra Israel versus Hamas. No Brasil, repercute de forma mais rápida as imagens e vídeos das tropas israelenses. Nessa mesma mídia, foram analisadas três contas entre os dias 08 a 30/10/23.
Canais | Postagens | Seguidores em milhares |
Hoje no Mundo Militar | 420 | 757 |
Canal Militarizando | 371 | 93,4 |
Almanaque Militar | 207 | 68,6 |
Total | 998 | 919 |
Fontes: Instagram – 07 a 30/10/23. Elaborado pelos autores.
O canal no Instagram “Hoje no Mundo Militar”afirma em sua conta ser um “canal 100% dedicado à discussão de temas militares atuais”. O “Canal Militarizando”, é do prof. Luiz Reis. Na biografia da conta afirma: “Notícias, opinião, análise, discussão e debate sobre História Militar, Estratégia e Defesa. Somos do Brasil”. A conta “Almanaque Militar”, afirma em sua biografia que “Geopolítica, Estratégia, Defesa e História Militar. Entrevistas, Análises e Documentários novos toda semana no Youtube”.
Os 3 canais analisados demostram apoio aos israelenses, em vista das imagens pró-Israel e da falta de informações que contextualizem que o Hamas é infinitamente menor que civis que vivem em Gaza. Gerando uma confusão entre os terroristas e os habitantes da Palestina.
Todas as contas reproduzem, de certa maneira, vídeos ou fotos que não foram veiculados na grande mídia brasileira. Os administradores das páginas compartilham tais imagens em suas próprias contas, na maioria das vezes, sem citar a fonte. Há muitas cenas de guerra e mortes, algumas foram captadas pelas regras de publicação de conteúdo do Instagram que tem os seguintes dizeres: “Conteúdo sensível – Este vídeo pode apresentar conteúdo explícito ou de violência”, em especial no canal Militarizando. Mesmo com o aviso de “Conteúdo sensível” é possível ver o vídeo. Em 3 vídeos, dos 998 analisados, aparece uma tarja preta escrita: censurada, porque de forma explícita há imagens de soldados gravando sua própria morte – em meio aos conflitos.
Os ataques terroristas foram filmados pelos próprios membros do Hamas, do mesmo modo que o massacre ao povo palestino é filmado, gravado e reproduzido para os meios oficiais de comunicação e redes sociais, em certa medida, como algo espetacular, uma demonstração de força.
Todos os vídeos, as fotos e as matérias jornalísticas indicam que o Hamas e o Estado de Israel cometeram e cometem crime contra a humanidade ou até genocídio, conforme a “Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio”, que foi aprovada na Assembleia Geral da ONU e gerou a resolução 260 de 1948.
O Hamas não tem responsabilidade internacional e, por isso, está longe das determinações do Direito Internacional. Israel comete genocídio ao bombardear a Faixa de Gaza, de forma indiscriminada, obrigando um deslocamento em massa. Além disso, 4 hospitais tiveram que ser esvaziados a mando do exército de Israel, em Gaza, porque seriam bombardeados também.
O escritor Guy Debord afirma que os fenômenos sociais, na atual sociedade, viram espetáculos, mesmo os inaceitáveis. Nessa sociedade do espetáculo, para os atores conflitantes o importante é a imagem, o print da notícia, o vídeo do Tik Tok, dessa forma a imagem vira discurso, e esta é a verdade.
A liberdade de imprensa é fundamental para qualquer país democrático. Logo, ter jornais, emissoras de TVs e redes sociais informando e reproduzindo matérias e notícias relevantes é importante e necessário para manter a sociedade informada. No entanto, ao mesmo tempo, a repercussão extensiva da guerra analisada acaba transformando as cenas de violência em algo comum, corriqueiro ou sem valor humano, desvalorizando os direitos humanos.
A mídia brasileira vez ou outra chamou um especialista em Direito Internacional para relatar em poucos minutos, ou até segundos, o que estava ocorrendo na Palestina. Nas redes sociais analisadas, as postagens em sequências criavam uma espécie de roteiro ou diário de guerra, sem debater o contexto das batalhas e muitos afirmam que Israel tem o direito de se defender, sem estabelecer parâmetros, outros apontam uma tendência pró-Israel.
Ao não denominar crimes contra à humanidade ou repudiar os atos de atrocidades – não importa de onde venham -, a mídia brasileira acaba gerando uma imagem de legitimidade ao massacre do povo palestino. A mídia deve ser livre, mas também deve se posicionar quando crianças e mulheres são mortas por mísseis guiados para matá-los. Podemos afirmar que não existe uma guerra e, sim, um massacre do Exército de Israel contra os palestinos.
Neste mundo multipolar, crivado de alta tecnologia e inovações, é de ficar atônico que as maiores potências mundiais, entre outras nações, não conseguiram agir para impedir o massacre do povo palestino. Consequentemente, quando o Direito perde sentido, o que resta é o horror e o espetáculo da barbárie ao vivo pelas redes sociais que buscam likes e pela grande mídia em busca de patrocínio, posando de quem faz um trabalho isento ao defender crimes contra a humanidade.
Israel Aparecido Gonçalves é cientista político (UFSCar) e doutorando em Sociologia e Ciência Política pela UFSC. Autor e organizador de 13 livros.
Maria Aldenora dos Santos Lima é doutora em Educação (UFPR), professora do Centro de Educação e Letras-UFAC. Mestre em Educação (UFAM) e graduada em História (UFAC).
Excelente análise