Igrejas cristãs no topo da audiência
Pesquisa realizada pelo Intervozes em parceria com a Repórteres Sem Fronteiras mostra a forte presença de igrejas evangélicas e católicas nos cinquenta veículos de comunicação de maior audiência, representando um risco ao pluralismo e à diversidade no país. Confira a seguir o terceiro artigo da série sobre os proprietários da mídia no Brasil
A utilização das mídias por igrejas no Brasil não é um fenômeno novo, mas tem crescido e atingido novos patamares. Hoje, a mídia religiosa não é composta apenas por veículos de nicho. Os conteúdos religiosos circulam cada vez mais nos grandes meios de comunicação, seja naqueles que se definem como religiosos, seja nos veículos de interesse geral.
Este é um dos resultados da pesquisa Monitoramento da Propriedade da Mídia (MOM Brasil), realizada em 2017 pelo Intervozes em parceria com a Repórteres Sem Fronteiras. Entre os cinquenta veículos de maior audiência no país – considerando os meios impressos, online, rádio e TV –, nove são de propriedade de lideranças religiosas, todas cristãs, dominantes no Brasil.[1] Os destaques estão na radiodifusão: entre as onze redes de TV de maior audiência, três são de propriedade de lideranças evangélicas (Record TV, Record News e Gospel TV) e uma de liderança católica (Rede Vida). Entre as doze redes de rádio, duas são evangélicas (Aleluia e Novo Tempo) e uma católica (Rede Católica de Rádio).
Já entre os dez sites de maior audiência e os dezessete veículos impressos pagos de maior tiragem, aparecem dois de propriedade de lideranças religiosas: o portal R7 e o jornal diário Correio do Povo, ambos do bispo evangélico Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd). Esse número seria maior se considerássemos jornais impressos de distribuição gratuita, que não entraram na pesquisa. A Folha Universal, da Iurd, por exemplo, tem tiragem de 1,8 milhão de exemplares, muito acima dos jornais diários de grande circulação, como a Folha de S.Paulo (cerca de 300 mil exemplares/dia) e das revistas semanais, como a Veja (cerca de 1,1 milhão de exemplares).[2]
Esse fato está associado a um contexto mais amplo, aquilo que analistas vêm chamando de “modalidades de presença” do religioso na esfera pública[3] ou ainda de “diferentes formas de produção de públicos e de publicidade pelos atores religiosos por meio de variadas tecnologias/artefatos de visibilidade”.[4] Ao contrário de um “afastamento das coisas do mundo”, como pregavam os protestantes na primeira metade do século XX, lideranças religiosas e leigos imbuídos de uma “missão” têm ocupado cada vez mais espaços diversos da sociedade, como a mídia, a indústria cultural, especialmente através da indústria fonográfica,[5] a política institucionalizada, além de projetos em educação, saúde e assistência social.
Embora o número de igrejas que utilizam os meios de comunicação seja grande, este texto se foca nos quatro grupos que se destacam por terem alcançado o ranking dos cinquenta veículos de maior audiência no país.
Igreja Universal do Reino de Deus
O bispo Edir Macedo, sua esposa Ester Bezerra e outros bispos da Iurd[6] aparecem no MOM Brasil como proprietários de cinco dos cinquenta veículos de maior audiência identificados pela pesquisa, o mesmo número de veículos pertencentes à família Saad, do Grupo Bandeirantes. Os dois grupos só perdem para o Grupo Globo, que possui nove veículos listados na pesquisa.
Como mostra a tabela acima, quatro dos cinco veículos ligados à Iurd fazem parte do Grupo Record. O quinto, a rádio Aleluia, é de propriedade de bispos da igreja. Além desses, o Grupo Record e a Iurd possuem outros veículos de menor audiência, também listados na tabela acima.
Edir Macedo fundou a Iurd em 1977, quando o teleevangelismo norte-americano já havia se disseminado por aqui. Desde o início dos anos 1980, o bispo alugava espaços em emissoras de rádio e TV para a apresentação de seus próprios programas de evangelismo. Mas seu império de comunicação começou a ser construído com a estratégia de comprar veículos de comunicação já existentes e bem estruturados. Essa forma de expansão tem paralelos com a estratégia utilizada pelo bispo em sua igreja: no início, em vez de construir novos templos, como é sua tendência atual, a Iurd preferiu alugar grandes teatros e cinemas desativados para seus cultos.[7]
Igreja Renascer em Cristo
A Igreja Apostólica Renascer em Cristo foi fundada em 1986, em São Paulo, por Estevam e Sônia Hernandes, já plenamente inserida na indústria cultural. O grande espaço litúrgico conferido à música, de diferentes gêneros musicais (rock, reggae, rap, samba etc.), atraiu principalmente os jovens, e, posteriormente, em associação com a Teologia da Prosperidade, passou a atrair também empresários e profissionais liberais. Foi a Renascer que popularizou o termo gospel no Brasil, no início dos anos 1990, quando Estevam Hernandes e o empresário Antônio Carlos Abbud fundaram a gravadora Gospel Records. A gravadora fechou as portas em 2010, no entanto, o ministério de louvor Renascer Praise, liderado pela Bispa Sônia, ganhou ainda mais notoriedade ao fazer parte do cast da major Universal Music.
Da mesma forma que Edir Macedo e a Iurd, a Renascer começou sua atuação no setor de comunicações, em 1990, alugando espaços em emissoras de rádio e TV. A primeira concessão veio em 1996, no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Apesar de não estar na lista das maiores igrejas brasileiras em número de templos e de fiéis, os líderes da Renascer ganharam visibilidade através da mídia, com destaque para a Rede Gospel de TV, que conta hoje com 25 emissoras em seis estados brasileiros e no Distrito Federal, atingindo 170 cidades e cerca de 46 milhões de telespectadores.
Emissoras de rádio e TV da Igreja Católica
Dois veículos ligados à Igreja Católica aparecem na pesquisa: a Rede Católica de Rádio (RCR) e a emissora de TV Rede Vida. Embora a história da radiodifusão católica remonte aos anos 1940, ela se fortaleceu a partir da união de diferentes emissoras de rádio, ainda em 1976, com a criação da União de Radiodifusão Católica do Brasil (Unda-BR). A união é ligada à Unda mundial, associação laica com sede na Alemanha dotada de reconhecimento oficial pela Igreja Católica. Em 1994, algumas redes de rádio ligadas a Unda-BR fundaram a Rede Católica de Rádio (RCR), passando a compartilhar programação e a aglutinar audiência.
A RCR é uma associação de sete redes de rádio que produzem e distribuem conteúdos e programas para cerca de mil emissoras e geram transmissão em cadeia para em torno de 430 rádios em todo o território nacional. Diferentemente do sistema tradicional de afiliadas, a RCR não tem uma única geradora que reproduz conteúdo para suas subsidiárias, mas compartilha alguns programas entre sete sub-redes, listadas no infográfico abaixo, que têm programação própria. Com o processo de convergência tecnológica, em 2010, a Unda-BR foi absorvida pela criação da Signis Brasil – Associação Católica de Comunicação, subsidiária da Signis Bruxelas –, para englobar não apenas as emissoras de rádio, mas todas as mídia católicas.
Já a Rede Vida é originária de uma concessão pública obtida por um leigo católico, o jornalista e empresário das comunicações João Monteiro de Barros Filho, em 1990, com apoio do então bispo de Botucatu (SP), Dom Antônio Maria Mucciolo, e de Dom Luciano Mendes de Almeida, então arcebispo de Mariana (MG). A gestão da emissora foi transferida para o Instituto Brasileiro de Comunicação Cristã (Inbrac), fundado em 1992 por leigos católicos e religiosos, especificamente para manter a Rede Vida. Sua gestão é formada por conselhos compostos por religiosos e leigos.
Com cobertura em canal aberto VHF e UHF, TV por assinatura e antenas parabólicas, a Rede Vida está presente, segundo o portal da emissora, em todas as capitais brasileiras e nas quinhentas maiores cidades do Brasil, alcançando mais de 1.500 municípios.
Igreja Adventista do Sétimo Dia
A Igreja Adventista do Sétimo Dia é a sexta maior denominação evangélica do Brasil em número de fiéis (1,53 milhão de fiéis), atrás da Assembleia de Deus (12,3 milhões), da Batista (3,7 milhões), da Congregação Cristã do Brasil (2,2 milhões), da Iurd (1,87 milhão) e da Igreja do Evangelho Quadrangular (1,8 milhão). Foi fundada nos Estados Unidos em 1863 e, em 1896, chegou ao Brasil, estando presente hoje em 206 países.
Desde 1943 alugando horários de programação em emissoras comerciais, a Adventista conseguiu as concessões dos seus próprios veículos de comunicação em 1989, ainda no governo de José Sarney (PMDB, 1985-1990). Entre os cinquenta veículos de maior audiência, está a Rádio Novo Tempo, que começou a transmitir em rede em 1999 e é formada por dezoito emissoras em dez estados do Brasil, atingindo 893 cidades, além de outros países na América do Sul. A programação musical se beneficia de outra atividade da Igreja Adventista: a gravadora Novo Tempo. No entanto, da mesma forma que a Renascer em Cristo, artistas ligados à Igreja Adventista também foram contratados por gravadoras laicas, como a Sony Music e a Som Livre, e hoje circulam também em outros veículos de mídia de grande audiência.
Seguindo a orientação da sede mundial e sua visão de religiosidade e estilo de vida, a igreja possui também outros negócios em mídia, como editoras, livrarias e a produção de games. Além disso, tem negócios nas áreas de saúde (hospitais, plano de saúde, clínicas e SPAs), alimentação, educação superior, finanças (seguradora e plano de previdência) e ação social.
Para além da propriedade: a programação religiosa na mídia brasileira
Dos nove veículos de propriedade de lideranças religiosas listados na pesquisa, cinco direcionam todo o seu conteúdo para a defesa dos valores de sua religiosidade específica: as redes de rádio Aleluia, Novo Tempo e RCR e as emissoras de TV da Rede Gospel e da Rede Vida. Isso não significa que a grade de horários desses veículos seja formada exclusivamente por programas definidos formalmente como religiosos, como transmissão de missas, cultos e outras cerimônias. Na realidade, há uma variedade de programas que, no seu formato, se assemelham aos programas das redes laicas, como jornalismo, atualidades, entretenimento e entrevistas, com o diferencial de serem produzidos a partir de uma visão de mundo e de valores que esses grupos definem como cristãos. O carro chefe da Rede Gospel, por exemplo, é o De Bem com a Vida, programa no ar há mais de vinte anos. Apresentado pelas bispas Sônia e Fernanda Hernandes, é uma revista eletrônica voltada para o público feminino que trata de temas como saúde, culinária, beleza, família, artesanato e educação dos filhos.
Os outros quatro que aparecem na pesquisa, a Record TV, a Record News, o Portal R7 e o jornal Correio do Povo, todos do Grupo Record, são veículos comerciais que têm uma programação que concorre com outros veículos laicos de mídia. Classificar uma mídia como laica não significa dizer que a religiosidade não esteja presente. Estudo realizado pela Agência Nacional de Cinema (Ancine), em 2016, mostra que a programação religiosa é o principal gênero transmitido pelas redes de TV aberta do país, ocupando 21% do total de programação. A campeã é a Rede TV!, que teve 43,41% do seu tempo destinado a programas religiosos. Em seguida, vieram a Record TV, com 21,75%, a Band, com 16,4%, a TV Brasil, com 1,66%, e a Globo, com 0,58%. Das seis redes comerciais de TV aberta listadas na pesquisa, a única exceção é o SBT.
Os programas veiculados pela Rede TV!, pela Record TV e pela Band são produzidos sobretudo por igrejas evangélicas de diferentes denominações, neopentecostais, pentecostais e históricas. Há também missas católicas e apenas um programa de outra religião, o Seicho-No-Ie. Importante destacar que a Record TV exibe apenas programação da Iurd, durante as madrugas, além de três programas religiosos produzidos pela própria emissora e apresentados por bispos da Universal. Enfatizando seu caráter comercial, na grade da emissora há inclusive programas que contrariam a moral religiosa do grupo – hoje, por exemplo, a Record TV tem reality shows como A Fazenda, e o portal R7 faz cobertura especial de eventos como o Carnaval e tem um blog especializado em cervejas. Por outro lado, a Iurd paga a outras emissoras, como a Rede TV! e a Band, pela transmissão de seus programas fora do horário da madrugada.
Já a TV Brasil e a Rede Globo transmitem programas religiosos de produção própria ou independente. A TV Brasil, apesar de ser uma TV pública, exibe missa católica aos domingos. Além disso, exibe, também aos domingos, os programas religiosos Retrato de Fé (único programa inter-religioso identificado na pesquisa), Palavras de Vida e Reencontro.[8] A Rede Globo também exibe a Santa Missa católica, aos domingos. É importante acrescentar que o Grupo Globo é dono da Som Livre, que produz os álbuns dos padres cantores – campeões em vendas de discos no Brasil – e de artistas evangélicos, pelo selo Você Adora, e produz festivais de música gospel, como o Promessas.
A mídia impressa e os portais também apresentam conteúdo religioso fixo. Para citar dois exemplos, o jornal Extra, do Grupo Globo, tem entre seus colunistas o padre cantor Marcelo Rossi – que também tem um programa na Rádio Globo AM/FM – e a pastora e artista evangélica Aline Barros. Outro jornal impresso que tem um número significativo de colunistas religiosos é O Tempo, do Grupo Editorial Editora Sempre/Grupo SADA. Seu dono, Victorio Medioli, se define como budista e estudioso de filosofias e religiões. Prefeito da cidade de Betim, pelo Partido Humanista da Solidariedade (PHS), um partido cristão, fala constantemente sobre religiosidade em suas colunas. Além disso, o jornal abre espaço para uma variedade de lideranças cristãs católicas e evangélicas, além de lideranças do espiritismo kardecista.
Monopólio cristão, propriedade cruzada e arrendamento
As igrejas e lideranças religiosas cristãs não só estão presentes como proprietárias nos veículos de maior audiência no Brasil, como começam a formar seus próprios conglomerados de mídia, a partir da articulação de diferentes tipos de veículos e da concentração da audiência (a chamada propriedade horizontal dos meios de comunicação) e do investimento em outros negócios em mídia (propriedade cruzada).
Além disso, elas se fazem presentes em outros veículos comerciais de grande circulação, por meio da prática de arrendamento. O aluguel de horário é uma das principais fontes de receitas das emissoras de TV, algumas delas que passam por crise financeira, como informa o jornalista especializado em TV Flávio Ricco em relação à Band. Embora muitas emissoras neguem a prática, o arrendamento está sendo investigado pelo Ministério Público como prática ilegal. A venda de horários de programação pelas emissoras de TV e de rádio para terceiros é ilegal pois o concessionário deveria ser responsável pela programação (de produção própria ou independente).
A propriedade horizontal e cruzada dos meios de comunicação e o domínio das grades de programação são riscos ao pluralismo e à diversidade de vozes e visões de mundo que circulam no espaço público e, consequentemente, um risco à democracia.
A mídia brasileira está atrelada a interesses religiosos que se resumem ao cristianismo em suas vertentes católica e evangélica. Dentro do cristianismo, são privilegiadas apenas algumas denominações evangélicas e correntes do catolicismo, em detrimento de outras tendências existentes no mundo religioso brasileiro. As minorias religiosas do país – como as religiões de matrizes africanas umbanda e candomblé – não têm voz no sistema brasileiro de mídia de maior audiência e alcance.
*Olívia Bandeira é jornalista, doutora em Antropologia e integrante do Intervozes
[1] De acordo com o Censo 2010 do IBGE, os cristãos somam 87,4% da população, e 64,6% desses são católicos e 22,1% evangélicos. A Igreja Católica foi hegemônica no país até o final do século XX (representava 92% da população em 1970), mas vem perdendo fiéis nas últimas décadas, principalmente para igrejas evangélicas de influência pentecostal ou neopentecostal, que são aquelas que creem nos dons do Espírito Santo e em sua manifestação na terra. Entre as religiões minoritárias, estão a umbanda, o candomblé, o espiritismo, o budismo, entre outras, além dos ateus e agnósticos.
[2] Instituto Verificador de Comunicação – IVC, 2016.
[3] Giumbelli, Emerson. Símbolos religiosos em controvérsia. São Paulo: Terceiro Nome, 2014.
[4] Montero, Paula. “‘Religiões públicas’ ou religiões na esfera pública? Para uma crítica ao conceito de campo religioso de Pierre Bourdieu”. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 2016, 36(1), p.128-150.
[5] Bandeira, Olívia. O mundo da música gospel entre o sagrado e o secular: disputas e negociações em torno da identidade evangélica. Rio de Janeiro: Tese de doutorado em Antropologia Cultural, UFRJ, 2017.
[6] A Iurd é a quarta denominação evangélica brasileira em número de fiéis (1,87 milhão), atrás da Assembleia de Deus (12,3 milhões), da Batista (3,7 milhões) e da Congregação Cristã do Brasil (2,2 milhões), em dados do IBGE de 2010.
[7] Almeida, Ronaldo de. A Igreja Universal e seus demônios: um estudo etnográfico. São Paulo: Terceiro Nome, 2009.
[8] Ver programação em: http://tvbrasil.ebc.com.br/programacao?data=20180225.
Especial Monitoramento da Propriedade da Mídia no Brasil
1 Investigando os donos da mídia no Brasil pós-golpe
2 Mídia e interesses empresariais: quem controla a notícia no Brasil?
3 Igrejas cristãs no topo da audiência
4 Mídia, religião e política: igrejas cristãs intensificam presença na esfera pública
5 Afiliações políticas na mídia brasileira
6 Na internet, a combinação de novas e velhas formas de concentração
7 Regulação da mídia: a invisibilidade de uma agenda essencial à democracia
8 Mídia antipetista: quem controla “O Antagonista”?
9 Agronegócio e mídia brasileira: onde duas monoculturas se conectam