Na internet, a combinação de novas e velhas formas de concentração
Aos nossos velhos monopólios de mídia somam-se agora os novos monopólios digitais. Confira a seguir o sexto artigo da série sobre os proprietários da mídia no Brasil
Diante de um sistema de mídia altamente concentrado em diversos países do mundo, a internet foi saudada nos anos 1990 como a grande esperança para a circulação plural de vozes no espaço público e a garantia da liberdade de expressão. A aparente horizontalidade da comunicação estabelecida através da rede mundial de computadores e a ilusão da gratuidade dos serviços utilizados para isso trazia uma sensação de que a internet seria enfim a arma para combater os monopólios da mídia tradicional e alavancar a chamada mídia alternativa.
De fato, a rede foi utilizada desde os primórdios por movimentos sociais em sua comunicação e articulação. No entanto, os modos como as novas tecnologias foram se desenvolvendo direcionam a comunicação e a circulação de informações online a um cenário de cada vez maior concentração. Ou seja, aos nossos velhos monopólios de mídia somam-se agora os novos monopólios digitais.
Nesse cenário, a horizontalidade da circulação fica comprometida porque, por um lado, a informação se concentra nas grandes plataformas digitais de distribuição de conteúdo postados por usuários, que têm cada vez mais poder sobre o que circula ou não na rede, tornando-se novos intermediários da informação. Por outro lado, mesmo que a internet, por não ter limitações de espectro, como acontece com o rádio e a TV, tenha permitido grande produção de conteúdo feita por diferentes agentes, um grupo pequeno de empresas de mídia, controladas pelos velhos monopólios, atinge as maiores audiências também no mundo on-line.
Isso é mais bem compreendido quando observamos em conjunto os resultados de duas pesquisas realizadas pelo Intervozes. A pesquisa Monopólios Digitais: concentração e diversidade na Internet mostra que os sites mais acessados e os aplicativos mais baixados no Brasil pertencem às grandes plataformas digitais de distribuição de conteúdo, como Facebook, Google e Youtube. Estas não têm como objetivo principal a produção de conteúdo próprio. No entanto, cada vez mais elas controlam o que atinge uma boa audiência, através de seus modelos de negócios e de seus algoritmos.
Já o Monitoramento da Propriedade da Mídia (MOM-Brasil), realizado em parceria com a Repórteres Sem Fronteiras, foca-se apenas nos sites que produzem notícias no Brasil, mostrando que entre os mais acessados predominam os portais que pertencem aos maiores conglomerados de mídia do país. Isso mostra que esses conglomerados – junto com os chamados sites caça-cliques e os sites de entretenimento – conseguem se adaptar ao modelo de circulação de informação impostos pelas plataformas globais de forma muito mais fácil do que os veículos de mídia independente ou alternativa, comprometendo a pluralidade da mídia.
Velhas concentrações também no ambiente online
De acordo com o MOM-Brasil, os veículos online informativos de maior circulação pertencem aos grandes conglomerados que dominam as maiores audiência também no mundo off-line. Foram considerados nessa categoria sites que produzem notícias para o meio digital, de interesse não segmentado, ou que agregam notícias de veículos de mídia parceiros, e que são acessados predominantemente para acesso à informação, e não para outros serviços como e-mail. A pesquisa mapeou os dez veículos online de notícias de interesse geral de maior audiência no país. No topo da lista estão o Globo.com e o Uol.com.br.
O primeiro é de propriedade do Grupo Globo, que possui nove dos cinquenta veículos de maior audiência no país. O principal deles, a Rede Globo de televisão, cobre 98,37% dos municípios brasileiros, chegando a atingir potencialmente 99,36% da população. O grupo também é dono das rádios Globo e CBN, dos jornais O Globo, Extra e Valor Econômico, além da revista semanal Época, que divide com a Veja e a IstoÉ espaços privilegiados nas bancas de jornais de todo o Brasil. As notícias produzidas pelo conglomerado também chegam à população brasileira através de veículos menores distribuídos por todo o país pela Agência Globo de notícias.
Já o UOL é de propriedade do Grupo Folha, que possui três dos cinquenta veículos de maior audiência no Brasil. Além do portal UOL, o grupo é proprietário dos jornais Folha de S.Paulo e Agora, o primeiro um veículo de referência com repercussão em todo o país, e o segundo um jornal popular que circula sobretudo em São Paulo.
A concentração da notícia online se mostra mais grave quando observamos a diferença em números de acesso entre os dois primeiros portais e o restante da lista. No ranking dos quinhentos sites mais acessados no Brasil de julho de 2017, produzido pelo Alexa/Amazon, o Globo.com está na 5a e o UOL na 6a posição, perdendo apenas para as grandes plataformas transnacionais, como veremos mais à frente.
As notícias de conteúdo político produzidas por esses dois portais são também as mais compartilhadas nas redes sociais, como mostra o Monitor do Debate Político no Meio Digital, do GPOPAI/USP. Entre 13 e 17 de julho de 2017, o Globo.com teve mais de 12 milhões de compartilhamentos e o UOL teve quase 7 milhões de compartilhamentos no Facebook, plataforma que tem 130 milhões de usuários no Brasil (julho 2018).
Levando em consideração que o Monitor do GPOPAI acompanha as notícias de teor político mais compartilhadas, é preocupante o poder que esses grupos têm de influenciar a opinião pública e os rumos do debate político no país, comprometendo a pluralidade de vozes. Os demais portais de notícias mais acessados se distanciam muito dos dois primeiros, como mostra o infográfico abaixo.
Portanto, se a internet realmente produziu um cenário de competição que atingiu em cheio a mídia impressa – entre 2015 e 2017, as tiragens dos onze maiores jornais impressos caíram 41,4%, segundo levantamento do Poder 360 feito com base em dados do IVC –, a concentração da audiência online mostra que isso não gerou maior diversidade e pluralidade de fontes de informação. Ao contrário, os mesmos grupos se beneficiam da convergência de mídia e de um marco regulatório que permite a propriedade cruzada dos meios de comunicação.
Modelos de negócios dos grandes portais de mídia
Um dos fatores que atrai fluxo aos quatro veículos noticiosos online de maior audiência – Globo, UOL, Abril e IG – é o fato de que eles reúnem diversos serviços, além das notícias multimídia. Os dois exemplos a seguir mostram isso.
O portal Globo.com é formado por pelo menos 187 sites com ênfase em notícias, esportes, entretenimento e TV. Também atua como fornecedor de serviços e de suporte estratégico e tecnológico na internet para todos os outros negócios de mídia da organização, além da Globo Filmes e da gravadora Som Livre. Possui também serviços como classificados de imóveis, educação à distância e fantasy games.
Já o UOL possui serviços como bate-papo, jogos, educação à distância, serviço de e-mail e hospedagem de sites, segurança digital, assistência técnica para computadores, TVs e celulares e videogames, assinatura de sites de pornografia, programa de dieta e o PagSeguro, líder brasileiro de meios de pagamento online.
O mesmo se poderia mostrar com os portais Abril e IG. É só a partir da quinta posição de veículos noticiosos online de maior audiência que aparecem os portais cujo modelo de negócios está mais estritamente focado em notícias: ClickRBS, Estadão e R7. Esses portais também pertencem a alguns dos maiores conglomerados de comunicação do país, o grupo regional RBS, o Grupo Estado e o Grupo Record. RBS e Record aparecem no MOM-Brasil com quatro veículos entre os cinquenta de maior audiência cada e o Grupo Estado com dois.
Esses portais compartilham com os primeiros da lista um modelo de negócios baseado em conteúdo noticioso multimídia, com textos, mas também com uso intensivo de vídeos e imagens. Outra estratégia que compartilham é a produção de conteúdo regional, muitas vezes em parceria com conglomerados locais, reunindo em um só lugar uma produção que poderia estar pulverizada em centenas de veículos.
Quando observamos a lista dos dez portais noticiosos de maior audiência, notamos que apenas dois não pertencem a grandes conglomerados de comunicação: a Revista Fórum e o blog O Antagonista. O último da lista pertence a uma empresa internacional, a BBC.
Os modelos dos monopólios digitais
Ampliemos agora o ângulo de visão para observar quais são os sites e aplicativos de interesse geral, e não só de notícias, acessados no Brasil. Como mostra a pesquisa Monopólios Digitais, é grande o predomínio das plataformas multinacionais. Usando dados coletados em dezembro de 2017, o estudo mostrou que os endereços mais acessados no Brasil (entre aqueles que atuam com produção e distribuição de conteúdo) são sites de circulação de conteúdos (30%), como YouTube; redes sociais (17%), como Facebook e Instagram; multisserviços (8%), como Yahoo.com; e e-mail (8%), como Gmail.
Desse universo, as plataformas multinacionais dominam o ranking dos controladores de sites: o Google possui três na lista, o Facebook três e a Microsoft dois. Outras plataformas de destaque mundial também aparecem no ranking, como Yahoo, Twitter, Netflix. Há ainda sites de grandes conglomerados brasileiros de mídia (Globo.com e UOL) e os chamados “caça-cliques” (sites que usam manchetes e textos exagerados, e até mesmo sem provas, para gerar cliques e, por consequência, anúncios), como Blastingnews, Explicandoo e O Noticioso. A finalidade de lucro está em quase a totalidade dos sites mais acessados, à exceção do portal de conhecimentos Wikipedia.
A ocupação desse espaço por esses grandes grupos deu origem àquilo que a pesquisa chamou de “monopólios digitais”. O conceito não é adotado para designar uma forma de mercado, mas um fenômeno protagonizado por esses agentes. São conglomerados com presença fortemente dominante em uma área, mas com atuações para além dela. São digitais, pois seus negócios são fortemente centrados nas TICs. Entre as características estão: (1) Forte domínio de um nicho de mercado; (2) Grande número de usuários, que pagam ou não pelos serviços; (3) Operação em escala global; (4) Espraiamento para outros segmentos para além do nicho original; (5) Atividades intensivas em uso de dados pessoais coletados; (6) Controle de um ecossistema de agentes que desenvolvem serviços e bens mediados pelas suas plataformas e atividades; (7) Estratégias de aquisição ou controle acionário de possíveis concorrentes ou agentes do mercado.
Embora os monopólios digitais não tenham como atividade principal a produção de conteúdo, ao tornarem-se os grandes intermediários do conteúdo que circula em diversos países do mundo, eles passam a estabelecer padrões de navegação que tendem a ser repetidos por aqueles que buscam informação na rede.
Enquanto na fase inicial de uso público da rede mundial de computadores, nos anos 1990, a prática comum era acessar sites para então tomar contato com os conteúdos, atualmente a grande maioria do tráfego de dados é originada em mecanismos de busca, como o Google, ou em redes sociais, como o Facebook. No Brasil, por exemplo, segundo a pesquisa Saúde da Internet 2017, publicada pela Fundação Mozilla, o Facebook é considerado como sinônimo de internet por 55% da população.
Em outras palavras, o problema dos monopólios digitais não é apenas que concentram uma audiência absurda, mas também que ajudam na concentração dos agentes que já têm mais facilidade de circulação ou que usam de estratégias caça-cliques para atrair audiência.
Foquemos no que acontece no Facebook e reencontraremos os velhos monopólios. Se pegarmos as cinquenta páginas de Facebook com mais seguidores, também mapeadas pela pesquisa Monopólios Digitais, e se excluirmos desse grupo páginas de artistas ou de empresas, resulta que seis das dezenove páginas analisadas são vinculadas às Organizações Globo (31,5%). Essa presença transversal evidencia o caráter convergente da camada de conteúdo e também a centralização desta a partir dos atores com maior poder de mercado.
Mesmo que as empresas tradicionais de mídia reclamem dos modelos das plataformas (no início de 2018, por exemplo, a Folha de S.Paulo anunciou que iria parar de publicar conteúdos depois que o Facebook promoveu uma alteração em seu News Feed, reduzindo o alcance das publicações de páginas com o objetivo de promover uma pressão para o uso da ferramenta de conteúdos impulsionados/pagos), a aliança entre os conglomerados tradicionais e os novos conglomerados digitais tem produzido novas “zonas de solidariedade”, nas quais atuam em convergência, reforçando seus poderes no mundo digital e da informação.
Um sintoma dessa convergência são as ações que os velhos monopólios e os monopólios digitais têm feito visando legitimar a produção de notícias da mídia tradicional como “verdade” e combater o que chamam de “fake news”, como mostra a série Eleições & Desinformação, produzida pelo Intervozes.
Dessa forma, se por um lado a web facilitou a possibilidade de criar e difundir conteúdos, a sua configuração dominada por grandes plataformas e empresas de tecnologia e por conglomerados de mídia instituiu novos gargalos na distribuição de textos, vídeos e imagens. E em um ambiente em rede e extenso (diferente dos limitados canais de TV e de rádio) e em que as regras de circulação não estão claras para a maioria da população, o maior desafio não é falar, mas ser lido e ouvido pelos usuários.
*Olívia Bandeira é jornalista, doutora em Antropologia e integra a coordenação executiva do Intervozes; e Jonas Valente é jornalista, integrante do conselho diretor do Intervozes e doutorando no Departamento de Sociologia da UnB, onde estuda plataformas digitais.
Especial Monitoramento da Propriedade da Mídia no Brasil
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3 Igrejas cristãs no topo da audiência
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5 Afiliações políticas na mídia brasileira
6 Na internet, a combinação de novas e velhas formas de concentração
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