Irã, um capitalismo de monopólios
A vitória das forças de ocupação no Iraque trouxe também mudanças de valores: “o valor-riqueza e os valores materiais triunfaram”. Os monopólios foram se constituindo, assim como se consolidou a presença de corporações multinacionais. O Estado não tem mais a capacidade de se impor sobre os principais agentes econômicosRamine Motamed-Nejad
Desde o fim da guerra com o Iraque, em 1988, a relação entre a sociedade iraniana, sua classe política e o poder econômico sofreu uma transformação radical: os valores morais até então dominantes, em particular os religiosos, passaram por um recuo.
Em sua obra, o sociólogo Faramarz Rafi-Pour1 imputa essa evolução à emergência de uma minoria que não hesita mais em “exibir sua riqueza”. Uma atitude reforçada pelo governo de Ali-Akbar Hashemi-Rafsandjani, que no início dos anos 1990 incitou os empresários iranianos fixados no exterior a “voltar ao país”, a fim de contribuir para sua reconstrução.
Na outra ponta da escala social, a maioria da população sofria com décadas consecutivas de crises e assistia à erosão de seu poder de compra e ao agravamento dos problemas financeiros.
O desejo de alguns de “pôr em evidência” sua riqueza e a escalada da pobreza entre os demais deram fundamento à conclusão do autor: “Os valores materiais e o valor-riqueza triunfaram”.
A partir de janeiro de 1990, a fixação pela opulência se traduziu em reformas econômicas que levaram à privatização das empresas públicas e à liberalização do comércio exterior. Contudo, há 20 anos a imprensa e diversos relatórios oficiais denunciam “a opacidade” e as “irregularidades” envolvidas nessas privatizações.
Uma parte dos beneficiários dessas “transferências de propriedade” são os dirigentes das empresas outrora públicas, que se tornaram a nova elite econômica.
Um relatório do Parlamento de 1994 explica o processo em detalhes: segundo o texto, cerca de 50 títulos de indústrias foram cedidos aos seus diretores a “preços de cortesia” e pagos graças a empréstimos arrancados da Sociedade de Investimento das Indústrias Nacionais, ou seja, com dinheiro público. Apesar das revelações em torno dessa negociata, a prática se manteve sob os governos de Mohammad Khatami e Mahmoud Ahmadinejad.
Outra fonte de lucros para a elite iraniana está na liberalização do comércio exterior.
Ela permite rendas consideráveis, não só por meio dos circuitos oficiais, mas também pelos paralelos, dominados pelo contrabando. Os beneficiários desse fenômeno são, há anos, classificados como “máfia” pela imprensa. O termo designa os grupos econômicos que controlam a importação e a redistribuição de alimentos, bens manufaturados e drogas, e que se dedicam também ao contrabando e à exportação de produtos derivados do petróleo, ainda que dependam do monopólio da Companhia Nacional Iraniana do Petróleo (NIOC).
Assim, a elite do comércio, muito influente nos anos 1980, teve de disputar com esses novos grupos econômicos a corrida pela riqueza.
Como indicado pela pesquisadora Fariba Adelkhah, “os grandes comerciantes de bazar”, tanto quanto o pessoal político e as instituições do regime, “participam diretamente e de forma maciça desta segunda economia, visando o enriquecimento e também o autofinanciamento2”.
Os grupos dominantes do capitalismo não ficam para trás. Eles formaram grandes holdings industriais, financeiras e comerciais que, com frequência, internalizam suas fontes de financiamento, sem renunciar, contudo, aos privilégios monetários e financeiros que diversas instituições públicas ou para-públicas continuam a lhes oferecer.
Não se trata de um capitalismo de Estado, já que este se retirou de vários ramos da economia. Nem de um capitalismo de mercado, com esses grupos contornando as obrigações fiscais, comerciais ou financeiras e até mesmo entravando a chegada de novos concorrentes. Pode-se falar, contudo, de um capitalismo de monopólios.
Dois exemplos ilustram essa mutação. De um lado, está parte das grandes fundações constituídas logo depois da revolução de 1979, e que se dedicam oficialmente a ações caritativas, tais como a Fundação de Deserdados e Feridos da Guerra Irã-Iraque.
Muito ativa nos circuitos comerciais durante o conflito que opôs os dois países – em particular no comércio de armas –, ela em seguida diversificou suas atividades. Hoje compreende milhares de empresas no setor da indústria, do comércio, agricultura, turismo e ainda no da aeronáutica. Não satisfeita, fundou suas próprias instituições financeiras, consolidadas num imenso conglomerado de crédito cujo poder de financiamento é colossal. No entanto, ao recusar o qualificativo de “banco” e se denominar “fundação”, essa instituição escapa aos regulamentos erigidos e impostos pelo Banco Central. Ao mesmo tempo, ela se isenta do pagamento de suas dívidas fiscais. No comando do Executivo entre 1997 e 2005, o presidente Mohammad Khatami aprendeu a lição por conta própria, ao tentar, em vão, impor essa obrigação.
Nasce uma multinacional
O segundo exemplo da ascensão das potências econômicas é a firma industrial Iran Khodro, a maior empresa de automóveis do Oriente Médio, cujos títulos pertencem 40% ao Estado. Ela goza, junto com a empresa Saipa, do monopólio de fato sobre o mercado de automóveis – a última controlando 35% do mercado, enquanto a Iran Khodro possui mais de 55%. Com a abertura do setor às importações, a Iran Khodro acertou vários acordos de parceria com sociedades estrangeiras interessadas na expansão do mercado iraniano – foram 700 mil carros vendidos em 2004, 1,1 milhão em 2006 e 1,2 milhão em 2008.
Para a Iran Khodro, esses acordos têm o escopo de preservar e talvez ampliar sua hegemonia, ao mesmo tempo que favorecem a aquisição de novas tecnologias que podem garantir a melhoria da qualidade de seus produtos e de sua difusão em nível internacional.
A PSA Peugeot Citröen, que desde 1992 havia firmado um pacto de cooperação industrial com a Iran Khodro para a fabricação do modelo 405, deu um passo à frente ao concluir, em março de 2001, um acordo de licença para a montagem dos modelos 206 e 307.
Quanto à Renault, ela fundou, para a composição e montagem do carro Logan, uma sociedade conjunta com os dois gigantes iranianos. Trata-se da Renault Pars, da qual detém 51% de participação, enquanto a Iran Khodro e a Saipa, aliadas nessa empreitada, possuem 49%.
Assim, a Iran Khodro se posiciona como um futuro ator do mercado mundial. Prova disso é o acordo que acaba de firmar com a sociedade argelina Famoval para a montagem de um ônibus na Argélia, bem como unidades de produção por ela instaladas para a fabricação do carro iraniano Samande, na Venezuela, no Senegal, na Síria e na Bielorrússia. Esse veículo, aliás, já é exportado pela Iran Khodro para a Argélia, Egito, Arábia Saudita, Turquia, Armênia, Bulgária, Romênia, Ucrânia e Rússia.
Ademais, para mitigar o endurecimento de suas obrigações financeiras e demanda de liquidez, a Iran Khodro aproveitou o surgimento de uma leva de bancos privados no início do século XXI para fundar, junto com outras instituições, seu próprio estabelecimento financeiro, o Parsian, do qual detém 30%. Tornado o banco privado mais importante do Irã, ele totaliza 60% dos depósitos e dos créditos do setor.
Desde sua ascensão à frente do Executivo, em julho de 2005, o presidente Ahmadinejad denunciou uma parte dos bancos privados como responsáveis por empréstimos “duvidosos e discutíveis”. Ele ameaçava até revelar a lista daqueles que haviam sido beneficiados por suas liberalidades e elegeu o banco Parsian como o principal alvo dessa campanha.
O verdadeiro nó do conflito reside na recusa desses estabelecimentos em reduzir as taxas de empréstimos e, por conseguinte, o seu nível de lucro.
A situação atingiria o paroxismo em outubro de 2006, quando o governo e o Banco Central decidiram destituir o presidente do Parsian. O conjunto dos bancos privados se insurgiu contra essa medida, infligindo uma derrota indiscutível a Ahmadinejad.
Os persistentes esforços do governo para levar o crédito até a economia real resultaram na atração de certos núcleos de especulação, sobretudo na construção e financiamento de imóveis. Sem precedentes, o inchaço da bolha imobiliária criada a partir de 20053 favoreceu o nascimento do que um periódico chamou de “burguesia imobiliária4”.
Privatização e especulação
Essa bolha terminou por estourar a partir de junho de 2008, sob o efeito de uma iniciativa do governo que constrangeu o conjunto do sistema bancário a interromper sua oferta de crédito – incluindo aqueles créditos já prometidos aos clientes e, portanto, à espera do desbloqueio.
Desde então houve uma baixa drástica na demanda por moradia, uma queda dos preços e uma desvalorização, ao menos parcial, dos ativos imobiliários que os bancos públicos e privados acabavam de adquirir. As perdas foram amplificadas pela acumulação de créditos duvidosos sobre uma parte das instituições privadas e sobre o próprio Estado.
A crise que resulta daí tem duas consequências. Em primeiro lugar, os bancos não têm mais a capacidade de garantir o avanço da economia, como prova a queda de 67% do crédito bancário entre dezembro de 2007 e dezembro de 2008.5 Uma contração que alimenta o declínio da demanda por bens de consumo e dos investimentos, a erosão da produção industrial e da rentabilidade das empresas e a subutilização de suas capacidades produtivas.
Em segundo lugar, já que as perdas de valor afetam seus ativos, os bancos não podem mais, ou não querem mais, reembolsar suas dívidas junto ao Banco Central: entre setembro de 2007 e setembro de 2008 os créditos deste último (e, portanto, do Estado) aumentaram em 106%!6 A economia produtiva foi golpeada pela propagação de calotes às sociedades e aos assalariados.
A privatização fez a fortuna de alguns e expôs uma grande parte dos trabalhadores ao desemprego7 ou a uma situação financeira cada vez mais precária, em que os proprietários de inúmeras dessas empresas venderam deliberadamente o patrimônio de suas sociedades antes da declaração de falência, ou então recorreram aos calotes de salários e à demissão pura e simples de seus assalariados.8
A inflação percorreu uma curva ascendente para se situar, oficialmente, em 25% para 2008. Segundo outras estimativas, ela chegou a pelo menos 50% no ano passado e atingiu 60% no primeiro trimestre de 2009.
Desde setembro de 2005, face à progressiva queda do salário real dos grupos sociais desfavorecidos e da classe média, o governo baseou seu programa econômico na redistribuição do crédito, a fim de sustentar o consumo. A lista de diferentes formas de crédito propostas e oficialmente garantidas pelas autoridades atesta suficientemente a abrangência dessa política: ela concerne os aposentados, jovens recém-casados, estudantes, agricultores etc.
Ora, há mais de 20 anos grande parte da sociedade está mergulhada em dívidas graças à erosão da renda em termos reais. Prova disso é o crescimento sensível do número de “prisioneiros por dívidas”: são 12 mil detidos, hoje.
Contradizendo os ideais igualitários da Revolução Islâmica, essas sanções impostas aos mais humildes são acompanhadas pela incapacidade ou pela falta de vontade dos poderes públicos de cobrar seus créditos junto àqueles que detêm o poder econômico.
Ramine Motamed-Nejad é economista, mestre de conferências da Universidade Paris I – Centro de Economia da Sorbonne.