Johan Galtung e a paz por meios pacíficos
Professor e pesquisador norueguês que se insurgiu contra a naturalização da guerra na política internacional faleceu no último sábado, dia 17 de fevereiro
I
Johan Galtung, professor e pesquisador norueguês que se insurgiu contra a naturalização da guerra na política internacional e reorientou o debate acadêmico sobre a paz durante a Guerra Fria, faleceu no último sábado, dia 17 de fevereiro, aos 93 anos de idade. Galtung deixa um legado intelectual imenso, que abrange contribuições seminais sobre tópicos tão diversos como os conceitos de violência direta-estrutural-cultural, o conceito de paz negativa e paz positiva, o imperialismo e suas implicações para a paz, as noções de peacekeeping, peacemaking e peacebuilding, a resistência não violenta, bem como o conceito de transformação de conflitos.
Se nas décadas de 1950 e 1960 a reflexão acadêmica sobre guerra e paz era um monopólio dos estudos estratégicos e da corrente realista de relações internacionais ─ onde a máxima “se queres a paz, prepara-te para a guerra” era reproduzida e auto reforçada como lei universal ─, Galtung e suas duas grandes criações, o Peace Research Institute Oslo e o Journal of Peace Research, inaugurados respectivamente em 1959 e 1964, lançaram as bases conceituais, programáticas e institucionais da área que se tornará conhecida inicialmente como pesquisa para a paz e, posteriormente, pelo rótulo mais abrangente de estudos para a paz.
Em um contexto internacional obcecado pelo acúmulo de poder militar e pela ideia da prontidão para a guerra ─ que não só alimentava a corrida nuclear e as necessidades auto justificadas das burocracias de defesa, mas também nutria a tradição intelectual do realismo e da estratégia, criando um círculo vicioso entre prática política e produção de conhecimento que contribuía para a naturalização da guerra ─, a proposta de Galtung seguia um rumo diferente: criar e institucionalizar uma área de pesquisa científica centrada no conceito de paz, comprometida com a prática política transformadora, focada na prevenção, mitigação e transformação das raízes dos conflitos violentos, bem como na construção de uma ordem social mais justa, igualitária e livre da opressão e da exploração nas esferas local, nacional, regional e internacional.
Ao propor uma agenda de pesquisa como essa, Galtung tinha por ambição uma concepção de paz com P maiúsculo, definida por seus próprios méritos, que ia além das preocupações com as manifestações superficiais e diretas da guerra e chamava a atenção para a necessidade de se identificar e tratar as raízes sociais e culturais mais profundas da violência. Em um momento em que a palavra paz tinha conotações subversivas no mundo ocidental, principalmente no contexto político norte-americano, e soava no debate acadêmico como um ideal utópico descolado da lógica estratégico-realista que dominava os estudos internacionais daquele período, Galtung gritou em alto e bom som no editorial do primeiro número do Journal of Peace Research, publicado em 1964: “Não temos medo da palavra paz!”. E foi mais adiante em suas reflexões posteriores ao defender a ideia de que a paz não se definia meramente pela ausência de guerra, mas possuía contornos muito mais complexos e abrangentes. Para Galtung, a paz devia ser definida pela superação de todas as formas de violências, fossem elas físicas e diretas (com a guerra como uma de suas expressões mais extremas), fossem elas indiretas, embutidas nas estruturas injustas da sociedade (violência estrutural) ou nas expressões simbólicas da existência humana (violência cultural).
Ao trazer para o debate sobre a paz as estruturas sociais injustas, resultantes das condições desiguais de acesso a recursos e poder entre indivíduos, grupos sociais e nações, Galtung chama a atenção para um tipo de violência indireta, muitas vezes latente e nem sempre percebida como violência, mas que nem por isso deixa de constranger e bloquear o potencial de vida das pessoas. Do mesmo modo, ao destacar a dimensão cultural da violência, articulada por meio da linguagem, dos mitos, da religião, do patriarcado, do colonialismo, dos preconceitos e das mais diversas expressões simbólicas da existência humana, Galtung chama a atenção para uma forma ainda mais profunda e indireta de violência, que exerce uma função crucial na legitimação cultural das demais formas de violência direta e estrutural, fazendo com que elas pareçam aceitáveis e normais. Para Galtung, as condições para a paz dependem de um olhar atento para todos esses tipos de violência, nos seus mais diversos níveis de expressão, e requerem medidas que promovam não só a cessação dos seus efeitos diretos, mas também a transformação das causas e contradições estruturais e culturais que estão nas suas bases mais profundas.
Com isso, Galtung produz um importante deslocamento no debate sobre a paz, mostrando que a visão convencional desse conceito, focada na superação da guerra por meio de um cessar fogo, de um acordo de paz ou de uma vitória militar, lida apenas com as manifestações mais superficiais das contradições e incompatibilidade de objetivos que alimentam os conflitos armados. Se não forem conjugados com uma preocupação mais profunda e abrangente com a construção de uma estrutura de paz (isto é, de estruturas sociais mais justas que possibilitem oportunidades mais equilibradas de acesso a recursos e poder entre as partes) e de uma cultura de paz (isto é, de ações que, de um lado, desnaturalizem as narrativas, os mitos e os preconceitos que legitimam culturalmente os ressentimentos, o ódio e a violência e, de outro lado, fomentem relações de tolerância e reconhecimento entre as partes), os esforços de contenção da violência direta serão limitados e insuficientes, deixando margens para que o conflito se inflame novamente.
A equação da paz que daí emerge é complexa e levanta desafios imensos no campo da resolução de conflitos e construção da paz, apontando para a necessidade de um conjunto abrangente de medidas que engloba não só os tradicionais mecanismos diplomáticos de cessação da violência direta (negociação, mediação, acordos de paz), mas também ações mais ambiciosas, voltadas para a transformação das raízes estruturais da violência (desenvolvimento social e econômico, redução da pobreza e das desigualdades, paridade de gêneros, ampliação das oportunidades de acesso à saúde, educação, habitação e à terra, aumento da participação política, combate aos mecanismos de opressão e exploração, justiça de transição, etc.) e para a transformação das raízes culturais da violência (educação e comunicação para a paz, revisão de mitos e narrativas históricas, atividades culturais e artísticas que desconstruam estereótipos e promovam a reconciliação e a tolerância etc.).
II
As contribuições intelectuais de Galtung ─ que influenciaram o debate acadêmico e político, principalmente nos momentos finais da Guerra Fria, e posteriormente impactaram a expansão do modelo de operações de paz da ONU a partir da década de 1990 ─ adquirem uma importância renovada no momento histórico atual. Enquanto a ONU enfrenta uma crescente crise de legitimidade e vê seus mecanismos de paz serem questionados por razões normativas e de eficácia, ao mesmo tempo em que o Conselho de Segurança revive o congelamento dos tempos da Guerra Fria, tornando-se incapaz de tomar decisões por causa dos interesses estratégicos auto justificados e irreconciliáveis dos seus membros permanentes, o mundo experimenta polarizações crescentes entre as grandes potências e testemunha tensões regionais e conflitos civis dentro de Estados nos mais diversos cantos do mundo. São sinais de que transformações profundas estão em curso.
Essas transformações indicam não só uma tendência global de retorno à lógica de prontidão para a guerra, com o consequente aumento de gastos em defesa, mas também de agravamento das mais diversas formas de violência não só em nações que se encontram diretamente envolvidas em guerras interestatais ou conflitos civis (como Rússia, Ucrânia, Israel, Palestina, Síria, Iêmen, Somália, Sudão, Myanmar, República Democrática do Congo, Mali, República Centro-Africana, para mencionar apenas alguns exemplos), mas também em países que, embora não submetidos a contextos convencionais de guerra, nem por isso deixam de estar mergulhados em polarizações sociais e políticas agudas e de ser impactados por altos índices de violência direta, estrutural e cultural (como ilustram os casos dos Estados Unidos e México, Haiti e outros países da América Central, Brasil e outros Estados da América do Sul, diversos países africanos, bem como muitos Estados europeus).
Injustiças, crises econômicas, epidemias, violência nas cidades e no campo, nacionalismos exacerbados, opressão política, militarização da sociedade, misoginia, racismo, degradação ambiental, dificuldades de acesso à habitação, à terra, à saúde e à educação, proliferação dos discursos de ódio e da desinformação, e uma série de outras fontes de violência direta, estrutural e cultural fazem parte da panela de pressão que hoje se junta às guerras e à competição estratégica das grandes potências, revelando um turbilhão de crises e tensões que está longe de refletir as promessas e expectativas de desenvolvimento e estabilidade que a pax americana e a sua receita de paz liberal ─ hoje decadente e corroída por suas altas doses de auto interesse e hipocrisia ─ alimentaram ao longo das últimas três décadas.
III
Nesse contexto de desencantos, polarizações e crises exacerbadas, onde o conceito de paz novamente perde boa parte do seu apelo intelectual e político, o legado de Galtung indica-nos um farol: para não sucumbir à lógica estratégico-realista que tradicionalmente concebe a paz como mero subproduto da guerra, é preciso resgatar a multidimensionalidade e a potência crítica, transformadora e emancipatória radical desse conceito, afirmando-se o seu caráter subversivo que, em grande medida, está ancorado nas suas dimensões estruturais e culturais. Sem uma conexão mais profunda com a ideia de justiça social e com utopias coletivas comprometidas com a realização mais plena, justa e igualitária do potencial de vida das pessoas, o conceito de paz esvazia-se, tornando-se sinônimo de ordem, apatia, passividade e manutenção do status quo ─ pacificação e dominação.
De uma perspectiva mais emancipatória e crítica, nos moldes sugeridos por Galtung, até que ponto se pode falar de paz quando se olha para a questão Israel-Palestina apenas na sua superfície, meramente dentro do campo das disputas militares e das etiquetas diplomáticas, sem também considerar as desigualdades estruturais, as opressões e injustiças e as narrativas culturais que mantêm acesas as contradições que tornam esse conflito persistente e pouco permeável aos mecanismos de resolução? Como buscar a paz no caso do conflito Rússia-Ucrânia meramente do ponto de vista dos campos de força militar em disputa, sem também considerar criticamente os desequilíbrios estruturais percebidos pelas partes e as narrativas que moldam o modo como cada parte constrói o outro como um inimigo e um obstáculo ao seu florescimento? Em que sentido se pode buscar a paz articulando o terrorismo dentro de uma lógica de guerra, acreditando que uma solução pode ser alcançada por meio da mobilização dos aparatos militares dos Estados, se não forem também levados em conta os desequilíbrios estruturais, as demandas de reconhecimento e as percepções de desrespeito e impotência que movem esses grupos para a ação violenta? Esse é o tipo de questão que as reflexões sobre a paz de Galtung nos leva a fazer quando nos deparamos com os conflitos violentos que se desenrolam em todos os cantos do mundo.
Não se trata aqui de tomar partido, legitimar táticas extremistas ou justificar os comportamentos de A ou B, pois isso seria incompatível com uma agenda acadêmica normativamente comprometida com a transformação dos conflitos por meios pacíficos. A questão aqui em pauta é a necessidade de se lançar um olhar mais profundo e abrangente para o grande quadro do conflito, vislumbrando-se as raízes estruturais e culturais que geralmente nutrem a incompatibilidade de objetivos que move as partes para a disputa violenta. Sem um olhar analítico e crítico sobre essa complexidade e sem um compromisso normativo e prático com a justiça social e com a construção de uma estrutura e de uma cultura de paz que possam ser compartilhadas pelas partes em conflito ─ e aqui reside a maior riqueza do inventário de ideias que Galtung nos deixa ─, qualquer solução de força produzirá resultados parciais e limitados do ponto de vista da paz. Quando muito, as soluções de força conseguirão prover algum grau de pacificação, o que implica em reduzir a ideia de paz a uma lógica de controle e tutela, que não só domestica e mascara as contradições estruturais e culturais que estão na base do conflito, mas também reduz as margens para se resistir e questionar a ordem imposta pelo mais forte. Dessa perspectiva, os ganhos para a paz são reduzidos e as sementes de novas ondas de violência não tardarão a germinar.
Gilberto Carvalho de Oliveira é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra e professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ.
Que o legado de J. Galtung frutifique e que a luta permanente em busca da genuína paz não cesse.