Maduro em seu labirinto
A Venezuela encontra-se exaurida. A começar de parte importante da população que vem debandando do país há vários anos, com o agravamento da crise econômica e social
Passados 10 dias da proclamada vitória de Maduro nas eleições presidenciais, já temos a lamentar 24 mortes, muitos feridos, 2227 presos, sobre os quais, segundo declaração de Maduro nas TVs em 7 de agosto, cairá a mão pesada da lei contra o terrorismo. A perspectiva de muita contestação, violência nas ruas, de repressão dura por parte das forças policiais e mesmo das militares, de prisões em buscas domiciliares, continua na ordem do dia.
As atas eleitorais continuam sem publicar, mesmo depois de terem sido enviados no dia 5 de agosto para a Suprema Corte de Justiça, em obediência à solicitação feita no dia 2. Porque a Suprema Corte não as publicita, não se sabe. Supomos que as verificarão. É certo que a oposição publicou na Internet cerca de 80% das atas, em princípio cópias recolhidas pelos seus fiscais de urna. Segundo um instituto colombiano, estas atas serão legítimas e quase impossíveis de serem falseadas por terem um QR Code que é acessível pelo programa informático de totalização dos votos, gerido pelo CNE. Mas as informações contraditórias a respeito das Atas continuam em circulação.
O candidato da Oposição, Edmundo González não só não aceita os resultados anunciados ainda antes da totalização da contagem pelo CNE, como proclamou-se o vencedor com base nas atas que sua campanha publicitou pela Internet há vários dias. Maduro é o presidente legítimo segundo o CNE e aguarda uma segunda legitimação pela Suprema Corte, a quem foi solicitada uma auditoria dos resultados.
Segundo ele próprio declarou, seu poder e legitimidade assenta numa “aliança militar-policial-popular”. Tarso Genro, em artigo recente, entende que esta aliança “não investe nenhum governo de legitimidade para liderar um país em que a própria Constituição foi produto de um processo reconhecido como democrático”. Ele acrescenta em sua crítica: “não fui eu que disse, foi o presidente Nicolás Maduro que classificou esta estranha aliança, onde Estado e sociedade, sociedade civil e sociedade política não são separadas pelo perímetro da lei. Ele falou para o mundo que a sua aliança venceria qualquer contenda contra a aliança da direita, do conservadorismo tradicional, da centro-direita, da extrema direita, parte dela organizada com bandos sabidamente golpistas — sempre atuantes na Venezuela — (venceria) porque seu Governo era resultado de uma aliança militar-policial-popular, de caráter nacional e anti-imperialista, para construir um regime socialista na Venezuela”.
O impasse está estabelecido, a nível nacional e internacional. No plano internacional, as reações oficiais podem ser divididas em três grupos:
1 – Reconhecimento da vitória de Maduro (Rússia, China, Cuba, Nicarágua e outros)
2 – Desconfiados dos resultados proclamados pelo CNE: Uruguai, Argentina, Costa Rica, Equador, Paraguai, Peru e República Dominicana publicaram carta conjunta e pediram uma contagem transparente dos votos. Uns mais, outros menos, a denúncia de fraude é explícita. A reação do governo da Venezuela foi romper relações e expulsar os diplomatas destes países. Na embaixada da Argentina, há 6 dirigentes da oposição, asilados desde março, tendo a embaixada sofrido ameaça de invasão, agora neutralizada com o hasteamento da bandeira brasileira e com o Brasil a assumir a representação da Argentina. O Peru pediu o mesmo. O Chile também se somou a este grupo, com nuances.
3 – Brasil, Colômbia e México, países com grande peso diplomático e político na América Latina, mantêm o diálogo com o governo venezuelano, mas pedem a publicação das atas de todos os locais de voto como condição para o reconhecimento dos resultados. O grupo de 3 países perfila-se dia a dia como possíveis mediadores entre Maduro e a oposição, na busca de um difícil cenário conciliatório, que necessariamente acarretaria um recuo significativo de uma ou outra parte. Realizar novas eleições sob supervisão internacional seria uma possibilidade, mas que seria provavelmente rechaçada por Maduro e eventualmente aceite pela oposição.
Já os Estados Unidos, depois de um contato telefônico entre Lula e Biden, pareciam ter-se alinhado com a posição dialogante do trio Brasil-México-Colômbia. Mas, poucos dias depois, o secretário Blinken aliou-se aos poucos países que reconheceram González como presidente eleito, posição da qual recuou logo em seguida, o que manchou sua imagem. Por estes dias, parece estar mais quieto sobre a Venezuela e evidentemente mais preocupado com a situação do Oriente Médio.
A União Europeia, em particular os países com mais laços com a Venezuela – Portugal, Espanha e Itália – insiste também na apresentação das atas e não reconheceu quaisquer dos dois candidatos como o eleito. A ONU pediu o mesmo.
As eleições na Venezuela são feitas com urna eletrônica, a semelhança do Brasil. São consideradas seguras por muitos políticos e experts. No entanto, a pergunta que se coloca é porque os resultados não são publicitados imediatamente ao fechamento de cada local de voto, como acontece no Brasil, onde se pode acompanhar minuto a minuto a evolução da votação de cada candidato presidencial. Outra pergunta inquietante é porque o presidente da CNE, Conselho Nacional Eleitoral, um dos 5 órgãos formalmente independentes da República Bolivariana da Venezuela, proclamou a vitória de Maduro com 80% da apuração realizada, dando, inclusive, as porcentagens dos dois candidatos 51,2% e 44%. No dia seguinte ao anúncio deste resultado parcial, o CNE deu posse ao presidente eleito. O CNE é mesmo independente do Poder Executivo na Venezuela? O atraso em publicitar as atas deve-se à ocorrência de fraude? Ou será que esse atraso se deve a que as instâncias superiores da Venezuela não concordam com a realidade das Atas? Para Maduro e o regime, cada vez mais isolados internacionalmente, o que existe é uma enorme conspiração do “Império norte-americano e seus “lacaios” espalhados pelo mundo. Como pensa Maduro sobreviver e governar a Venezuela após estes tempos conturbados? Quantos venezuelanos abandonarão o país, sobrecarregando os vizinhos, se a “aliança militar-policial-popular” assegurar a permanência de Maduro e do PSUV e dos militares no poder?
A Venezuela encontra-se exaurida. A começar de parte importante da população que vem debandando do país há vários anos, com o agravamento da crise econômica e social. Os países da América Latina, Brasil, Chile, Colômbia, Peru, assim como os Estados Unidos, são os grandes receptores de cidadãos venezuelanos, mais de 7 milhões de emigrantes, segundo a ONU. Entre eles, muita gente qualificada, técnicos da indústria do petróleo, que, desde a famosa greve da PDVSA em 2002, a companhia de petróleo, no início do governo Chavez, vem saindo do país e se empregando na indústria petrolífera pelo mundo afora. A greve foi desencadeada em função da demissão por Chávez do presidente e de cinco diretores da PDVSA. Esta desde sempre tinha um enorme poder no país, já que gerava 70% de todas as exportações. Era quase um Estado dentro do Estado. Chavez quebrou a espinha deste poder, demitiu centenas ou milhares de funcionários e criou outra PDVSA, submissa a seu poder – não sem enormes confrontos e até a tentativa frustrada de golpe contra ele. Ele consolidou a partir daí seu estilo caudilhista e autoritário a um preço alto, pois a PDVSA nunca mais foi a mesma e a produção petrolífera veio a diminuir progressivamente, apesar das enormes reservas de crude, as maiores do mundo. O sucateamento parcial das instalações industriais da PDVSA e da empresa estatal de energia elétrica é uma realidade. Os apagões se sucedem há anos. Sou testemunha direta deste sucateamento, pois estive 6 vezes entre 2010 e 2012 na maior central termoelétrica do país, a Planta Centro, em serviço de inspeção e consultoria.
A Venezuela encontra-se exaurida economicamente, pois todos os indicadores declinaram, principalmente a partir do governo Maduro. Importa-se quase tudo, quase não há indústria, imensos recursos financeiros voaram para o exterior há muitos anos. A economia está praticamente dolarizada para se tentar neutralizar a inflação galopante. As sanções norte-americanas, sem dúvida, contribuíram para esta exaustão, mas a enorme incompetência política e técnica dos sucessivos governos, bem como a corrupção, também fazem parte dos motivos da exaustão econômica, evidenciada pela queda brutal do PIB ao longo do governo Maduro. Sem falar na questão do tráfico de drogas, que afeta vários países da América do Sul.
A Venezuela também encontra-se exaurida socialmente, a violência urbana é das maiores do mundo, a insegurança alimentar é extensa e dura anos, os privilégios de certos setores próximos ao regime são evidentes para todos. Há parte da população que recebe cestas alimentares e fica dependente das ações governamentais e do partido do regime, o PSUV. Os privilégios dos militares, das forças policiais e das milícias populares são visíveis para todos. Os militares têm empresas e até um banco.
Enfim, a Venezuela encontra-se exaurida politicamente. A revolução bolivariana, que, sem dúvida, terá feito em seu momento realizações positivas em favor das camadas mais pobres da população, deu origem a um regime autoritário e maniqueísta do tipo “quem não está conosco, está com os piores inimigos e traidores da Pátria”. Um país fraturado e entristecido, moralmente ferido. E com muita gente disposta a ir para as ruas, mesmo reprimida violentamente. Expulsar diplomatas de 7 países vizinhos só isolará ainda mais o regime, e não será a Rússia e a China que vão resolver esse isolamento. Poderão dar créditos, comprar petróleo, declarar apoio. Mas não há almoços grátis, como se sabe.
A maior parte dos votos dados ao candidato opositor, Edmundo González, não o foi por motivos ideológicos, foi por exclusão: são votos contra Maduro e o regime vigente, não são votos nas opções ideológicas dos líderes das oposições.
Nos próximos dias ou semanas, saberemos o futuro imediato da Venezuela. A confirmação do terceiro mandato de Nicolau Maduro terá um custo muito alto para a maioria da população venezuelana, incluindo muitos milhões de emigrantes espalhados pelo mundo. Novas levas de emigrantes irão se deslocar para os países próximos, caso Maduro ganhe esta parada. Infelizmente não se vislumbra uma necessária pacificação e reconciliação da nação, que passa necessariamente pelo afastamento de Maduro e de seu governo. Não há nomes consensuais ou respeitados pela maioria. O maniqueísmo do bem e do mal, proclamado e aceito por ambos os lados, envenenou, há muito, o panorama político, não só nacional, mas em quase todo o continente americano.
A ver vamos como se desenvolverá esta terrível e sangrenta crise.
Carlos Vianna é ex-presidente e co-fundador da Casa do Brasil de Lisboa.