Marçal reflete o apocalíptico espírito da civilização ocidental
Ex-coach que concorre à prefeitura da maior cidade latino-americana bebe do mesmo liberalismo econômico que os EUA propagam mas burlam nas relações internacionais
O fenômeno Pablo Marçal pode ser explicado de distintas formas. Procurarei, aqui, trazer um ponto de vista histórico e fazer uma costura analítica a partir de uma perspectiva da Economia Política Internacional (EPI), campo do conhecimento que combina economia, ciências políticas e relações internacionais.
O aspecto que destaco é que o autodenominado “ex-coach” que concorre à prefeitura de São Paulo reflete, em essência, o espírito da civilização ocidental construído a partir da formação dos Estados Unidos e amplamente difundido à medida que o país foi se firmando como potência hegemônica global, ao longo da segunda metade do século 20.
Trata-se de um credo fundamental que combina religião, individualismo e liberdade, conforme explicou o cientista político norte-americano Samuel Huntington em Who we are: the challenges to America’s national identity”.
Sustentando que os EUA são uma nação profundamente religiosa, Huntington afirma que a cultura protestante – a qual enfatiza o papel do indivíduo na aquisição de conhecimento de Deus diretamente da Bíblia, sem intermediação da hierarquia clerical – fez dos americanos o mais individualista dentre os povos de nações industrializadas, o que guarda uma estreita relação com a força da meritocracia no país.
“O sonho americano com o qual todos fomos criados é simples, mas poderoso: se trabalharmos arduamente e respeitarmos as regras, teremos a oportunidade de ir tão longe quanto as nossas capacidades divinas nos levarem”, escreve o autor.
Na ausência de uma estrutura hierárquica rígida como, em geral, havia nos locais de origem dos imigrantes europeus que colonizaram os EUA, “a realização das oportunidades dependeria da energia, sistema e perseverança individuais, em resumo, na capacidade e vontade de trabalhar”, completou Huntington.
Pois bem: situado sob o guarda-chuva geopolítico e cultural dos EUA, o Brasil também bebeu dessa fórmula, que encontrou terreno fértil em uma sociedade historicamente marcada por extremas desigualdades. Mas o credo do self-made man messiânico ganhou especial força com o crescimento do número de evangélicos no país, em um contexto de neoliberalização das relações socioeconômicas e profusão das redes sociais.
Uma vez que uma enorme massa populacional se vê desamparada pelo Estado, na medida em que se achatam ou mesmo extinguem mecanismos de seguridade social e direitos constitucionais básicos em nome de ideais fiscalistas e monetários, parte dela passa a enxergá-lo como potencial inimigo e a apoiar a ideologia que prepara seu próprio calvário.
O que querem os jovens de hoje? Empreender e ser seu próprio CEO. Nada de “amarras” regulatórias ou trabalhistas impostas por este ente corrupto e ineficiente que vive de abocanhar as riquezas que geramos via tributos. Afinal, o caminho para o sucesso está aberto, desde que o Estado não atrapalhe e eu conte com um bom coach/ influencer para ativar o mindset do sucesso em mim.
Importa ter em conta, no entanto, que os EUA – os mesmos que enfiaram o neoliberalismo goela abaixo da América Latina a partir da década de 80 com o Consenso de Washington – não renunciam a estratégias nada liberais a fim de garantir vantagens relativas no sistema internacional.
O caso mais evidente é a utilização de sua máquina de guerra para, por exemplo, assegurar a exploração de recursos energéticos em outros países e impedir o acesso de seus rivais.
Em paralelo, os EUA mantêm-se, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, como país emissor da moeda internacional, o que lhes permite controlar a liquidez internacional e influenciar a divisão internacional do trabalho¹.
Esse bolo conta com uma cereja, que foi o rompimento unilateral dos EUA, em 1971, com o acordo de Bretton Woods, pondo fim à paridade fixa entre o dólar e o ouro. Assim, o valor do dinheiro passou a ser avalizado pelo poder político-militar dos norte-americanos, arbitrando, pelo movimento competitivo de sua taxa de juros, o valor de sua e de outras moedas nacionais².
A exemplo do imperialismo europeu, em meio à instauração da ordem liberal baseada no padrão libra-ouro, no século 19, as ações “fora das quatro linhas do jogo” do liberalismo econômico perpetradas pelos estadunidenses compensam, ao menos parcialmente, os efeitos deletérios do neoliberalismo sobre sua própria sociedade.
Deixo, portanto, uma provocação: o que pretende alcançar o Brasil – uma nação periférica, com elevados níveis de pobreza, insegurança alimentar e injustiças sociais, desprovida de moeda forte, colonizada por dívida e incapaz de fiscalizar suas próprias fronteiras de maneira adequada – com os fundamentos neoliberais, que seguem limitando as ações do Estado em prol dos interesses nacionais e fomentando o egoísmo e uma ambição descontrolada por bens materiais em um mundo que atravessa uma crise ambiental sem precedentes?
Estaríamos dispostos a incorrer em uma aventura imperialista pela América do Sul e o Oeste Africano para garantir um mínimo de bem-estar social em nosso país? Vale afanar a riqueza dos outros em benefício próprio, como fez Marçal ao participar de uma quadrilha de fraude bancária?
Tenhamos em mente que a festa acabará quando não houver mais água e ar próprios para consumo humano, o que parece já não ser uma realidade tão distante assim.
João Montenegro é Jornalista, mestre e doutorando em Economia Política Internacional pela UFRJ.
[1] MEDEIROS, C. & SERRANO, F. Padrões monetários internacionais e crescimento. Em J.L. Fiori (org), Estados e Moedas no desenvolvimento das nações, Editora Vozes, 1999.
[2] FIORI, J. Estados, moedas e desenvolvimento”. Em J.L. Fiori (org), Estados e Moedas no desenvolvimento das nações, Editora Vozes, 1999.