Marco Temporal: presente de branco…
Não existe espaço para se omitir nem tempo para postergar: se posicionar contra o ataque a indígenas é um dever
Quem diria que após mais de cinco séculos de colonização e extermínio, estaríamos aqui. De pé, como nossas florestas, cantando e empunhando nossos maracás, em resistência pela vida e pelo bem viver de toda a humanidade (APIB – Associação dos Povos Indígenas do Brasil)
Em 09 de agosto, comemorou-se o Dia Internacional dos Povos Indígenas. Para celebrar a data, o Secretário-Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), António Guterres, emitiu uma mensagem oficial, exaltando a importância dos indígenas e, ao mesmo tempo, denunciando a “violência” que eles sofrem.
Os indígenas – lembra Guterres –, embora sejam “cerca de 6% da população mundial”, dão “uma contribuição descomunal para a nossa comunidade global”, pois “salvaguardam a biodiversidade do planeta”. Entretanto, “são vítimas de ameaças e violência”, de “setores extrativos, como a mineração, a agricultura e os transportes”.

Créditos: Rafa Stédile
Em entrevista à ONU News, na mesma data, a Ministra brasileira dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, falou sobre “biodiversidade” e “territórios indígenas protegidos”. “A presença indígena é certeza de água limpa, de alimentação sem veneno, de floresta em pé, da biodiversidade protegida. Então, como não considerar tudo isso?”
Ainda assim, o Congresso Nacional insiste no Marco Temporal. Discute-se, desde o ano passado, a “Proposta de Emenda à Constituição n.º 48/2023” (PEC da Morte, como a denominam os povos indígenas de todo o Brasil), que pretende tornar constitucional o Marco – implementado à força pelo Congresso Nacional (em 2023).
Em sua justificação, o Senador Dr. Hiran (PP/RR) advoga a tese de que sua proposição “busca trazer clareza e segurança jurídica para o processo de demarcação de terras indígenas no Brasil”. O estabelecimento da data 5 de outubro, no entendimento do parlamentar, coadunaria com o espírito da constitucional da Carta Magna de 1988.
O Marco Temporal evitaria “conflitos e incertezas”, no discurso do Senador. Para Hiran o Marco não só respeitaria “os direitos históricos das comunidades indígenas”, mas – ainda nas suas palavras – garantiria “a estabilidade das relações sociais, econômicas e territoriais em nosso país”.
Todavia, distanciam-se as palavras do senador das reais intencionalidades da proposta por ele defendida. O Marco Temporal – em uma breve explicação – só considera território passível de demarcação aquele no qual havia indígenas em 5 de outubro de 1988, ignorando o histórico opressor deste país com os povos originários.
Expropriados de suas terras desde 1500, os indígenas, não raro, tiveram de optar por se descolar de seus territórios para sobreviverem e permanecerem na luta por outras vias (inclusive judicial) ou morrerem diretamente assassinados ou, ainda, falecerem indiretamente por contaminação provocada pela poluição a suas áreas.
É pertinente citar um exemplo, na cidade de São Paulo: os indígenas de Tekoa Kalipety, na Terra Indígena de Tenondé Porã. Eles foram obrigados a abandonar suas áreas no início de 1980, para evitar conflitos com os Juruá (brancos) em razão de não haver – naquele momento – reconhecimento do poder público de seus territórios.
Apesar de se situar na maior cidade brasileira (imaginem nos fundões), os indígenas de Kalipety foram alvos de variadas formas de violência. O reconhecimento da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) só ocorreu em 2012. Em princípio, o Marco poderia tornar instável a posse das terras desse povo Mbya Guarani.
Na Carta dos Povos Indígenas do Brasil aos Três Poderes do Estado, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) exige ações contra o Marco Temporal. O poder Legislativo implementou-o, em 2023 – mesmo após o Supremo julgar inconstitucional, o Executivo vetar sua aprovação e a sociedade civil discordar.
A APIB, na missiva, ressalta que “a entrada em vigor da Lei no 14.701/2023 é o maior retrocesso aos nossos direitos desde a redemocratização e resulta no derramamento de sangue indígena em todo o país. […] A nova lei proporciona a ‘legalização’ de crimes e premia os invasores dos territórios”.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil alerta para o aumento da violência que o Marco Temporal promove, diferentemente do que argumentam seus defensores, como o senador Hiran, trazendo dados relativos a crimes cometidos contra os povos originários e ao ecossistema brasileiro.
“Apenas no primeiro mês da Lei no 14.701/2023, a expansão do agronegócio e o arrendamento de terras para monoculturas e garimpo causaram 09 assassinatos de indígenas e 23 conflitos em territórios localizados em 07 estados e 05 biomas”. A lei já tem cerca de um ano; os números, portanto, são muito mais alarmantes nos dias de hoje.
Estrategicamente, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado adiou para outubro deste ano a votação da PEC48/2023. A justificativa oficial é que, acatando a sugestão do senador Paulo Paim (RS), se aguardará pelo resultado da Comissão de Conciliação do Supremo.
A decisão dos senadores, na verdade, só deixa o embate para depois das eleições municipais deste ano. Como a preocupação, nesse período, é o pleito eleitoral, foi o pragmatismo – não a prudência, muito menos a ética – que, efetivamente, conduziu a casa legislativa a protelar a votação da PEC da Morte.
Várias entidades nacionais – como lideranças cristãs, o Instituto Alana e o Observatório do Clima – e internacionais – como a ONU e o Greenpeace – são contra o Marco. Não existe espaço para se omitir nem tempo para postergar: se posicionar contra o ataque a indígenas é um dever – e, quiçá, garantirá as vidas deste país.
Fábio Roberto Ferreira Barreto é Mestre em literatura pela USP e professor da rede municipal de ensino de São Paulo.