Metrópoles pós-pandemia exigem novas políticas públicas
Desde a década de 1980, quando a racionalidade neoliberal foi se impondo enquanto dominante, o estado de crise deixou de ser um fenômeno pontual e abrupto e tornou-se permanente. As crises passaram a justificar a afirmação da racionalidade neoliberal de redução do tamanho do Estado, destruição de direitos e de políticas sociais, aprofundando a concentração de riquezas ao redor do globo
A pandemia evidenciou tanto a necessidade de coordenação interinstitucional e articulada quanto a dimensão complexa das desigualdades nas grandes metrópoles brasileiras. Repensar a articulação dos espaços e a geração de um sistema diferente de governança das políticas econômicas, sociais e urbanísticas é fundamental para que haja coerência entre os espaços da economia, os espaços da política e a vida na cidade.
Esse momento de crise pode ser uma oportunidade de reavaliar as cidades e seus problemas e propor futuros planos que priorizem a “economia circular”, equacionem a necessidade de garantir “prosperidade sem crescimento” e considerem resiliência como parte de um processo de busca de futuros sustentáveis, minimamente estáveis, ancorados em recursos locais e que, sobretudo, proponham intolerância radical aos padrões de desigualdade que vivemos até agora.
O desafio será, sem abrir mão das redes globais de troca, reconhecer e valorizar oportunidades que beneficiem prioritariamente a sociedade local. Trata-se de um meio termo entre protecionismo e globalismo a ser desenhado com engajamento político e compromisso social. Para tanto, fica evidente a necessidade – para espanto dos defensores da liberdade econômica acima de tudo – de fortalecimento das instituições e da regulação estatal, nos moldes da reconstrução ocorrida nos anos 1930 e das políticas de industrialização dos anos 1950 no Brasil. Desta vez, tendo em conta uma sociedade conectada em tempo real, com um elevado grau de financeirização do capital e passando por um processo de desindustrialização desde o final dos anos 1980, acelerado nos anos 2010.
As crises multissetoriais, dentre elas a pandemia, não são situações necessariamente contrapostas a um quadro de normalidade. Desde a década de 1980, quando a racionalidade neoliberal foi se impondo enquanto dominante, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida, o estado de crise deixou de ser um fenômeno pontual e abrupto, passível de ser superado, e tornou-se permanente. As crises passaram a justificar a afirmação da racionalidade neoliberal de redução do tamanho do Estado, destruição de direitos e de políticas sociais, aprofundando a concentração de riquezas ao redor do globo.
Repercussões no Brasil
A emergência da guerra entre a Ucrânia e a Rússia tem sido apontada como o ponto crítico de uma possível reconfiguração geopolítica internacional. O processo de globalização da circulação de mercadorias está em xeque, e mesmo a financeirização vem sendo questionada desde antes da explosão da guerra em questão. Tais tendências repercutem no Brasil, com impactos no comércio internacional e nas trocas cambiais, gerando desabastecimento interno e inflação. Agrava-se assim uma crise política que antecedeu a pandemia, com a destruição de parte das conquistas sociais do início dos anos 2000, e confirma-se a necessidade de lidar com os desafios deste lugar de economia da periferia do sistema-mundo capitalista.
A forma de emprego clássica, com relações salariais e contratuais, entra em colapso, configurando novas maneiras de ganhar a vida. A ideia de “empreendedorismo” e empresário de si mesmo esconde as já elevadas condições precárias de desemprego, desalento e exclusão da atividade econômica de muitos trabalhadores. As novas gerações, quando conseguem entrar no mercado, não experimentam as mesmas políticas de bem-estar que as anteriores, e torna-se rara a constituição de carreiras profissionais lineares e duradouras. A exclusão desse imenso precariado do mercado de consumo desacelera ainda mais a capacidade produtiva nacional, que fica refém do mercado internacional de commodities, num ciclo de inflação crescente e de risco de desabastecimento.
A pandemia fez com que a participação das pessoas com 14 anos ou mais na força de trabalho caísse para menos de 59,5% no final de 2020, bem abaixo do padrão de pouco mais de 63% dos anos anteriores (2017 a 2019), segundo a PNAD contínua do IBGE. A taxa de desocupação, que vinha crescendo desde 2014, chegou a impressionantes 14,2% em 2020 – mais que dobrou em relação aos 6,3% de 2013. Entre aqueles que conseguiram se manter ocupados, os empregados caíram de 70% em 2013 para 67,1% em 2022, e os que se declararam trabalhadores por “conta própria” cresceram de 22% em 2013 para 26,5% em 2022. Parte destes últimos foram obrigados a buscar alternativas “empreendedoras” para garantir sua sobrevivência na falta de um emprego de melhor qualidade. A proporção de trabalhadores por conta própria ultrapassa 1/3 dos ocupados na região Norte do país (33,4%) e quase isso no Nordeste (29,8%). Importante observar que o rendimento médio dos empregados em 2022 (R$ 2.808) é R$ 945 maior que o dos trabalhadores por conta própria (R$ 1.935).
Desde o último quarto do século XX, vêm se processando profundas modificações na ação do Estado com o surgimento do que Pierre Dardot e Christian Laval chamaram de uma “nova razão do mundo”, uma nova racionalidade estruturada pelo neoliberalismo, que não significa simplesmente um laissez-faire no campo econômico – mas, especialmente uma transformação da ação pública e a construção de uma afinidade cada vez mais profunda entre os sentidos das esferas pública e privada. O neoliberalismo operou uma transformação da esfera pública, movendo-a da solidariedade para a competição.
Tendo esse contexto como pano de fundo, a pandemia da Covid-19 impôs um certo retorno da ação pública nas políticas de saúde, mas também na elaboração e acompanhamento de políticas de distanciamento social, auxílio socioeconômico, entre outras. Felizmente, o Brasil tinha a expertise do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), o que acelerou a resposta na concessão de auxílios emergenciais, assim como o Sistema Único de Saúde (SUS), que permitiu a organização da rede de atendimento em hospitais e, num segundo momento (relativamente tardio), a distribuição de vacinas. Essa realidade recolocou a necessidade de um debate sobre o papel do Estado não apenas no enfrentamento à pandemia, mas também aos seus impactos, que serão sentidos nos próximos anos.
Tais impactos não se restringem aos sistemas de saúde, mas são sociais, econômicos, culturais e políticos. A circulação de pessoas nas cidades passou a ter restrições e os cuidados sanitários entraram para o cotidiano. A retomada de diversas atividades econômicas tem sido lenta, e das atividades culturais, de turismo e artísticas ainda mais, com o receio de aglomerações e a redução da capacidade de financiamento dos empreendimentos e dos consumidores. A eficácia política da gestão de ações necessárias para contenção da mobilidade social, como isolamento e quarentena, bem como a velocidade e urgência de testagem de medicamentos e vacinas desafiam a estrutura dos poderes públicos vigentes e colocam implicações éticas e de direitos humanos na pauta legislativa e dos movimentos sociais.
Cabe ao Estado por meio de políticas públicas tornar o decrescimento estável, reduzir as desigualdades, e garantir acesso universal à saúde, educação, segurança. A valorização dos sistemas públicos de prevenção e acesso à saúde, do planejamento da saúde coletiva e das redes de proteção social ficou clara, colocando em xeque os discursos defensores da mercantilização da saúde.
Funções reveladas do Estado
A economista brasileira Laura Carvalho apresenta, à luz do contexto brasileiro, “cinco funções do Estado que a pandemia ajudou a revelar. São elas: estabilizador da economia, investidor em infraestrutura física e social, protetor dos mais vulneráveis, provedor de serviços à população e, por fim, empreendedor”. O desafio é maior que repensar as funções do Estado, mas trata-se de ir além da perspectiva economicista e repensar a dinâmica urbana e social, numa perspectiva sistêmica. A complexidade não se restringe à economia, mas às relações sociais de trabalho e geração de renda, que tem características específicas nas diferentes regiões metropolitanas brasileiras. As formas de atuação do Estado devem, portanto, considerar essas especificidades regionais para garantir a reversão da tendência cada vez mais rápida de empobrecimento nacional.
Nessa linha, podemos considerar que os governos atuais deverão rever suas estratégias de investimentos, para trazer de volta aos processos de tomada de decisão as políticas sociais e a “desmercantilização” dos bens públicos, como saúde, educação, saneamento, transporte, infraestrutura e logística. Para tanto, a democratização das decisões sobre políticas sociais, com participação ampliada da população na tomada de decisões é um caminho inevitável. Os direitos sociais são vistos como fundamentais para a cidadania e o processo de “desmercantilização” nada mais é que a oferta de serviços como direitos, quando uma pessoa pode manter seu meio de vida sem depender do mercado.
Na pandemia da Covid-19 essa discussão ficou bem clara: pergunta-se como garantir condições mínimas de sobrevivência às pessoas que mais precisam, sem criar barreiras que dificultam ainda mais o seu acesso a condições como renda mínima emergencial e cestas básicas, por exemplo. Dois exemplos e barreiras recentes no processo de combate a pandemia no Brasil:
1 – A solicitação de atualização de cadastro (como o Cadastro Único Nacional ou Cadastro de Pessoa Física – CPF) para acesso a auxílio emergencial evidenciou que os mais necessitados não estavam nesses cadastros, permaneciam invisíveis para o Estado;
2 – O controle em nível municipal do acesso a vacinas fez com que fosse exigida a atualização do cadastramento no Sistema Único de Saúde (SUS), gerando aglomerações em pontos físicos presenciais, uma vez que os que mais precisam nem sempre têm acesso à internet para atualização remota, ou mesmo são aqueles que estão morando nas ruas, sem domicílio a comprovar, conforme exigido pela burocracia estatal.
A estes, restou a resposta coletiva das redes de apoio comunitárias, que conseguiram articular acesso à alimentação e aos itens básicos de saúde para os mais necessitados de modo relativamente rápido, quando comparados ao tempo da resposta estatal e institucional. Essas redes coletivas comunitárias, sejam familiares, de vizinhança, ou em organizações e movimentos sociais, sempre estiveram presentes na sociedade brasileira e são consideradas um verdadeiro “colchão” de proteção em momentos críticos como os que passamos. Ainda assim, sua importância não é contabilizada para a produção e reprodução da sociedade brasileira. A articulação entre essa economia e redes do cuidado com as políticas sociais é um potencial a ser acolhido ao se pensar o futuro das cidades.
Os efeitos da (falta de) coordenação na pandemia
Em diferentes metrópoles, o processo de propagação da doença e a os óbitos derivados dela mostram semelhanças e diferenças bastante significativas que podem ser explicadas, ao menos em parte, pela forma de enfrentamento das autoridades locais e estaduais, pela coordenação (ou falta dela) político institucional de estados e municípios e pela capacidade (ou carência) dos sistemas de saúde locais e pela maior ou menor conectividade espacial das metrópoles. A figura mostra a distribuição temporal dos óbitos por Covid-19 nos municípios do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, em que se percebe a semelhança entre elas e suas diferenciações, como o grande número de mortes ocorridas no Rio de Janeiro em 2021, que segundo dados do registro civil teve nesse ano mais mortes do que nascimentos.
No Brasil, as iniciativas públicas de gestão da crise pandêmica esbarraram no processo de destruição do Estado e das políticas sociais, cada vez mais evidente desde 2016 e acelerado a partir de 2019. No Boletim Direitos na Pandemia foram levantadas mais de 4,5 mil normas relativas à pandemia entre janeiro de 2020 e setembro de 2021. O que ficou evidente na análise foi a desconexão entre a normatização do governo federal e as tentativas de resistência de entes federativos, instituições independentes e da própria sociedade. Apesar da quantidade de normas criadas e focadas em tratar a pandemia, as necessidades da população não foram atendidas. Mais: não houve participação da sociedade civil organizada, ou mesmo articulação com entes federativos estaduais e municipais.
Uma expansão do sistema de saúde privado sobre o sistema público se revela inadequada a este novo cenário. O sistema privado baseia sua eficiência em ocupação de instalações próxima a 100%, o que faz com que não tenha capacidade para receber o aumento súbito de demanda por serviços hospitalares que uma pandemia causa. A lógica de prevenção em saúde também é contrária à realização de lucros em multiplicação de consultas por planos de saúde e de procedimentos hospitalares emergenciais. A centralização da produção de insumos importantes para o combate à pandemia em um único ou poucos países, tornam evidente a necessidade de redução de dependência ou da instituição de formas de governança global para um evento que desconhece fronteiras.
Problemas setoriais estão interrelacionados
As políticas públicas que podem responder à crise multissetorial em que estamos imersos devem ser também elas multissetoriais. Os problemas podem ser vistos como setoriais – habitação, mobilidade, saúde, ambiente – mas estão interrelacionados. Uma urbanização dispersa e de baixa densidade, na forma de “enclaves residenciais”, amplia a segregação socioespacial, o consumo de solo, a degradação ambiental, o custo de implantar e manter redes de infraestruturas técnicas e as dificuldades de operação e financiamento dos sistemas de mobilidade coletiva urbana e metropolitana. Políticas habitacionais que induzem a periferização e expansão horizontal das cidades como o Programa ‘Minha casa Minha Vida’ (MCMV) e seus sucedâneos, têm impactos consideráveis no meio ambiente, na mobilidade, na estruturação espacial das metrópoles e têm potencial para agravar desigualdades socioespaciais existentes. Do mesmo modo, políticas de transporte baseadas no incentivo ao transporte individual, como construção e duplicação de vias e viadutos, frequentemente levam à deseconomias e aumento do tempo de viagens e das distâncias percorridas cotidianamente em percursos casa-trabalho.
É nesse contexto de crises múltiplas e permanentes, cenário pandêmico global e acirramento de conflitos internacionais que pensar as transformações metropolitanas se traduz em considerar a vida em comunidade, enfatizando qualidades que conectam e nutrem pessoas e lugares. As transformações devem ser analisadas sob a ótica do conhecimento interdisciplinar e multidimensional da vida urbana, incluindo (infra)estrutura, comportamentos previsíveis, mudanças dinâmicas e eventos disruptivos – crises, pandemias e conflitos geopolíticos.
A pandemia explicitou os conflitos entre demandas do presente no enfrentamento da crise sanitária, como as necessidades de isolamento social, de migração das atividades (educação, trabalho, lazer) para formatos digitalizados, mobilidade segura e inclusiva, com as possibilidades que a metrópole contemporânea oferece para seus habitantes, que estão ancoradas num legado histórico de passivos socioambientais acumulados.
O papel do Estado e da comunidade no provimento e na gestão dos bens comuns deve ser valorizado na construção de ações coletivamente construídas que levem em conta a complexidade das metrópoles, suas estruturas e especificidades. Tornou-se fundamental repensar e atualizar a agenda da reforma urbana e do direito à cidade, tal como estabelecido na Constituição de 1988, e no Estatuto da Cidade. Novas questões despontaram – pandemias, emergência climática, aquecimento global, digitalização dos espaços e das relações sociais – e velhas permanecem na agenda pública como problemas não resolvidos – pobreza, vulnerabilidade socioambiental, mobilidade, moradia. Uma virada epistemológica, cultural e ideológica faz-se necessária para que seja criado um novo senso comum.
Gilberto Corso Pereira, professor da Universidade Federal da Bahia, professor visitante da Universidade Federal do Ceará e coordenador do Núcleo Salvador do INCT Observatório das Metrópoles.
Claudia Monteiro Fernandes, bolsista do IPEA e pesquisadora do Núcleo Salvador do INCT Observatório das Metrópoles, do Programa “A Cor da Bahia” (FFCH/UFBA) e do Grupo de Pesquisa Periféricas (FFCH/UFBA). Mãe de Clarice.