Meu chefe é um robô
Os primeiros estudos sobre algoritmos não conseguiam demonstrar como Alphabet, Meta, Amazon, Netflix e Uber os utilizariam para potencializar seus lucros, prever comportamentos, vigiar pessoas e gerenciar trabalho
Um mundo dominado por máquinas era um apocalipse de ficção científica presente em livros e filmes. A visão de uma sociedade sendo gerida, vigiada e punida por uma legião de robôs era pouco provável. Ainda é se considerarmos a materialidade desses robôs, em vez de enxergar sua imaterialidade. Parece loucura, ainda, que algo que não podemos ver possa ter domínio sobre lazer, trabalho e até democracia?
A ficção científica não conseguiu prever, com exatidão, aquilo que é conhecido como algoritmo, mesmo que esse conceito seja datado do século passado. Mais precisamente, os primeiros estudos sobre algoritmos não conseguiam demonstrar a sua usabilidade para diferentes fins e como, décadas depois, big techs como Alphabet (Google), Meta (Facebook, Instragam e Whatsapp), Amazon, Netflix e Uber os utilizariam para potencializar seus lucros, prever comportamentos, vigiar pessoas e gerenciar trabalho. Passamos, então, a “algoritmizar” a vida?
Bem, é provável que as escolhas por séries, filmes e até músicas possam ter grande influência de algoritmos. Bem como quais informações (ou fake news) receber, qual produto está melhor adequado ao seu estilo e qual jantar está mais aderente à dieta que você está seguindo. Os algoritmos têm como uma característica facilitar a vida de pessoas.
Para melhor facilitar, o usuário precisa entregar informações essenciais e, com isso, será sempre bonificado. Afinal, só um algoritmo poderá indicar para alguém aquele filme palestino que é uma relíquia, enquanto abre um pacote do japonês que essa pessoa pediu no iFood, pois hoje é promoção só para os shushi lovers e tudo isso depois de pegar um Uber saindo do trabalho para casa para evitar o transporte público cheio.
Essa visão descrita acima é de um típico consumidor de produtos e serviços que utilizam algoritmos. Mas, perceba, que entre alguns serviços há uma relação de trabalho envolvida. O motorista do Uber e o entregador do iFood, por exemplo, foram demandados através de plataformas que usam algoritmos para conectar oferta e demanda.
O algoritmo, porém, não é uma mera “ponte” entre cliente e ofertante, ele determina o preço e a forma que será entregue o serviço, gerenciando o trabalhador enquanto ele estiver na plataforma. O algoritmo entrega relatórios da jornada de trabalho, os ganhos do trabalhador e quais punições e premiações recebeu ao longo do seu expediente. Assim, o algoritmo é o robô imaterial que se torna chefe de quase 2 milhões de pessoas, segundo o Ipea.
O trabalho plataformizado vem sendo discutido nos últimos anos nas universidades e há relativo pouco tempo nos espaços políticos. No Brasil, houve pouco avanço na legislação sobre o tema, trabalhadores estão sem direitos básicos como férias, 13º e FGTS. A Uber começou suas operações no país em 2014 e, quase uma década depois, esses trabalhadores estão mais precarizados e desalentados.
O presidente Lula começa a direcionar um olhar para esses trabalhadores e está correto em afirmar que não são microempreendedores. Essa fala é importante, justamente, para contrapor uma ideia etérea dessas empresas de que esses trabalhadores seriam empreendedores e chefes de si mesmos. Por anos, transferem todo tipo de ônus para essas pessoas que passam muito mais de 8 horas diárias (há relatos de 12 e 16 horas de trabalho por dia) para terem ao fim de um mês um modesto ganho.
Os algoritmos recebem parcela dos valores pagos aos trabalhadores, que fica como lucro para as empresas que os criaram. Sua função é garantir que esse trabalhador estará disponível o maior tempo possível e que, mesmo com todas as precariedades, possa entregar um serviço cinco estrelas, a ser julgado pelo cliente. Se não entregar um serviço de pontuação máxima, será reprimido, advertido, punido e pode até ser expulso da plataforma. Ou seja, será desempregado por um algoritmo que na verdade nunca o empregou de verdade.
Para que não sejam vistos como trabalhadores das plataformas, surge o discurso de empreendedor. A pessoa que busca ganhos na plataforma se torna parceira ou “fazedora de bicos”, na linguagem popular ou Gig Worker, na linguagem do mercado. A pessoa, então, está disposta a abrir mão de direitos pois como empreendedora ela assume riscos para potencializar ganhos. Quando não recebe o esperado, vem a dor da moralidade meritocrática: ganhou pouco pois não mereceu ganhar mais.
O discurso da meritocracia, então, se torna combustível para a gamificação, que é construir, dentro das plataformas, estruturas de ganhos através de pontuações e criam status que fazem sentido dentro daquele ecossistema. Assim, para que um trabalhador normal possa se tornar um platinum, silver, gold ou diamante, ele precisa cumprir algumas tarefas e “desbloquear” ganhos, como em um jogo de vídeo game. O resultado são horas exaustivas de trabalho, adoecimento e, comumente, frustração por não conseguir atingir objetivos.
Antes, contudo, o trabalho algoritmizado era restrito ao profissional sem necessidade de qualificação. Um motorista precisa de uma carteira. Um entregador de comida, nem de uma bicicleta pois ele pode alugar uma, sem onerar o algoritmo, pois o custo desse aluguel é do próprio trabalhador. Talvez, a leniência de políticas públicas está, justamente, no desprezo ao trabalhador informal sem um diploma. Mesmo que um advogado ou um engenheiro vá fugir do desemprego trabalhando na Uber, sua função ali é dirigir dentro das orientações do algoritmo, o seu chefe.
O trabalho algoritmizado, porém, está avançando para profissionais qualificados. Hoje é possível ver plataformas oferecendo serviços de psicólogos, designers, jornalistas e advogados. Isso quando a Inteligência Artificial não substitui alguma dessas atividades. Ora, parte do levante de recém-desempregados de Big Techs (mais recentemente a Alphabet) é de trabalhadores que serão substituídos por algoritmos. O algoritmo pode substituir tarefas rotineiras ou as funções de gestores.
É preciso, então, entender que não existe trabalhador de plataforma e sim, trabalhador algoritmizado, que é gerido e tem seu trabalho controlado por um algoritmo. Pois, ao colocar essa pessoa como alguém que utiliza uma plataforma para seu sustento, reforça a ideia de parceria ou de micro empreendedorismo, jamais de exploração, trabalho exaustivo com supressão de direitos.
Entender a relação algoritmo e trabalhador é fundamental para construir robustez em políticas públicas para essa relação de trabalho. Não se deve esquecer que é uma prática neoliberal o esvaziamento do trabalhador como indivíduo com direitos e o empreendedorismo é parte desse arcabouço. Dizer que o trabalhador algoritmizado é um empreendedor é colocá-lo como detentor dos meios de produção, apenas, por possuir um carro.
Há nas ações e falas do novo governo uma esperança para que o cenário de desemparo promovido pelos aplicativos de trabalho mude. É provável que haja um esforço de Lula para que esses trabalhadores tenham direitos e isso é um avanço após anos de desprezo dos dois (des)governos anteriores. O foco, porém, deve ser compreender a dimensão da capacidade algorítmica de substituir, gerenciar e controlar o trabalho e o trabalhador. A plataforma é a caixa e o seu conteúdo é que deve ser o foco das políticas.
Já estamos vendo uma ampliação do trabalho algoritmizado. Não será tão demorado ver outros profissionais qualificados como médicos, arquitetos, professores, profissionais de TI, contadores e tantos outros sendo geridos por algoritmos. A regulação, portanto, não deve ser, apenas, das plataformas mas dos algoritmos.
Os algoritmos regulam nosso lazer, moldam nossos interesses, gerenciam nossos trabalhos e têm potencial nocivo nas democracias. Não estamos no apocalipse dos robôs como previam as ficções, porém, não é possível dizer que vivemos em um paraíso. Devemos olhar para o futuro e buscar alternativas ou continuaremos a ver o avanço dos algoritmos em nossas vidas.
Herbert Salles é doutorando em Economia.