Mídia e democracia na América Latina
Os meios de comunicação desempenham papel fundamental na construção de sentido social: é a partir deles que construímos a ideia de bem-estar e progresso, realizamos intercâmbio de sentido. Os meios de comunicação não nos dizem o que fazer, mas apontam caminhos – por isso constituem um campo de disputa social e políticaMaria Pía Matta
A desigualdade ainda é o problema crucial da América Latina. Mesmo quando os indicadores oficiais marcam índices positivos e crescentes de renda per capita, a desigualdade entre o setor mais rico e o mais pobre da população aumenta e se expressa na má distribuição da renda, na iniquidade e na exclusão. Essa situação recrudesceu nos anos 1990 e, na média, permanece invariável na década atual. As políticas públicas para enfrentar a desigualdade na região deveriam considerar e incentivar a participação da sociedade civil. Combater esse problema depende também da capacidade dos Estados – para além de sua legitimidade democrática – de promover inclusão e distribuição das riquezas.
Num cenário como esse, é fundamental analisar a repercussão da liberalização e concentração econômica dos meios de comunicação sobre a liberdade de expressão cidadã, e o obstáculo que esses processos representam para o desenvolvimento do terceiro setor das comunicações.
De acordo com o sociólogo Armand Mattelart, os processos atuais de concentração e monopólio dos meios de comunicação são determinados pela incorporação do capital financeiro, gestão empresarial, poder dos acionistas e integração das indústrias das telecomunicações com os meios e a cultura. Essa integração de caráter horizontal, vertical e multimídia constituiu polos regionais e nacionais das indústrias da cultura e da comunicação. As políticas estatais favorecem a construção de grandes grupos nacionais de comunicação (Clarín, Televisa, Globo) capazes de rivalizar com outros gigantes do mercado global e se inserir em outros âmbitos financeiros.
a lógica da concentração
A mesma lógica de concentração atinge todos os setores: discográfico, editorial, impresso, radiofônico, televisivo. Esse cenário se configurou no final dos anos 80, e um dos marcos foi o ano de 1998, quando o processo de liberalização das telecomunicações se generalizou a partir dos acordos da Organização Mundial do Comércio.
Nesse contexto, as rádios comunitárias travaram longa e decidida batalha contra a desigualdade no acesso aos meios (frequências de rádio e TV) e pelo direito à comunicação. A Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc) trabalhou na formulação de quatorze princípios por uma radiodifusão democrática (http://legislaciones.amarc.org), que buscam o reconhecimento dos meios comunitários e o fomento à pluralidade e à diversidade no sistema dos meios de comunicação.
São centenas de rádios que compartilham a missão de democratizar as comunicações, e nas quais organizações da sociedade civil exercem papel fundamental com princípios e gestão que não visam lucro nem proselitismo político ou religioso. São meios que representam os interesses da comunidade onde estão inseridos, seja uma pequena localidade ou um amplo setor social. Podem trabalhar com alta ou baixa potência, com voluntariado ou trabalhadores contratados. Têm como missão centrar a comunicação em questões sociais, ressignificar o trabalho comunicacional e contribuir para remover a inércia do sistema de comunicação atual. A propriedade coletiva e não lucrativa ocupa o centro dos debates que questionam o viés mercantil dos grandes meios de comunicação.
Os meios de comunicação desempenham papel fundamental na construção de sentido social: é a partir deles que construímos a ideia de bem-estar e progresso, realizamos intercâmbio de sentido. É também nesses espaços que se concretiza a visão e representação das relações sociais, e é construída a ideia de sujeito e de desenvolvimento democrático. Os meios de comunicação não nos dizem o que fazer, mas apontam caminhos – e por isso constituem um campo de disputa social e política.
Na estrutura atual do sistema de meios de comunicação, a indústria formou consórcios que privilegiam o lucro em detrimento do serviço, e instituiu uma forte padronização de formatos e lógicas uniformes na produção de conteúdos de entretenimento e informação. Nesse sentido, Catalina Botero, relatora sobre liberdade de expressão na Corte Interamericana de Direitos Humanos, afirma que o guarda-chuva da liberdade de expressão aumentou, pois hoje não se deve proteger apenas a liberdade individual dos emissores (os “donos dos meios”), mas toda a cidadania.
A Amarc defende que a regulação das concessões e frequências de rádio e TV seja indicadora para analisar e valorar a situação de liberdade de expressão – tema cuja relevância tem crescido na agenda regional. No relatório de 2009 da Relatoria de Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, foi incluído um capítulo sobre radiodifusão e liberdade de expressão. Em 2010, o relatório estabeleceu critérios de liberdade de expressão para uma radiodifusão livre e inclusiva. No âmbito mundial, a Relatoria Especial para a Liberdade de Opinião e Expressão da ONU incorporou o tema no segundo relatório apresentado ao Conselho de Direitos Humanos.
Existem avanços legislativos referentes às rádios comunitárias em alguns países da região, porém via de regra os sistemas regulatórios de rádio e TV violam a liberdade de expressão ao permitir práticas arbitrárias e discriminatórias na adjudicação de frequências. O resultado é a concentração da propriedade dos meios de comunicação sem qualquer limite ou contrapartida, e a imposição de barreiras ao acesso a esses meios por organizações sociais. Sem acesso equitativo, vários segmentos da população deparam-se com limitações técnicas e econômicas que impedem o desenvolvimento de atividades comunicacionais e, em última análise, silenciam vozes dissidentes.
O último ano se caracterizou por intensos debates sobre projetos de lei ou leis aprovadas relativos à radiodifusão e aos serviços de comunicação audiovisual. Atualmente, a disputa pelo poder político passa necessariamente pela repartição do espectro eletromagnético utilizado no gerenciamento das agendas informativas.
Direito à comunicação e à expressão
No processo de afirmação dos direitos à comunicação como parte dos direitos humanos, a ciência jurídica realizou uma síntese que considera a liberdade de expressão um direito de mão dupla: individual e social. Implica o direito a difundir informação e o direito dos demais cidadãos em recebê-la sem qualquer discriminação ou censura. Não se trata de um direito declamatório, e sim de contar com os meios técnicos para seu exercício. Supõe uma dimensão do direito individual e coletivo que obriga o Estado a promovê-lo – justamente porque se trata de um direito que possibilita a deliberação pública, a expressão das diferenças e o questionamento da aparente neutralidade. A conquista desse direito coloca à disposição da sociedade discursos que expressam a assimetria dos poderes existentes e permite a aparição de novas formas de deliberação como parte da vida em democracia.
Isso não significa tornar o consenso impraticável, nem legitimar a desigualdade em nome da diversidade. Trata-se de reconhecer a heterogeneidade na representação e entendimento dos assuntos públicos como um valor positivo. A Convenção Interamericana assinala no artigo 13º as condições que conferem o estatuto de direito à liberdade de expressão: pesquisar, receber e difundir informação por qualquer meio. Desses critérios, derivam dois princípios de universalidade: a universalidade dos sujeitos, e a dos suportes. O Estado tem mais obrigações que a mera abstenção da censura. Para cumprir obrigações de direitos humanos, o Estado não pode estabelecer mecanismos de restrição indireta, como o abuso de controle sobre o papel para periódicos ou sobre as frequências de rádio e TV. Não importa o suporte, o que importa é a proteção do direito à expressão livre.
Por oposição, outra doutrina afirma que o único papel do Estado na radiodifusão é ordenar as emissões como um código de trânsito, ou seja, impedir que as emissoras se choquem. Mas diversas declarações de organismos internacionais de defesa da liberdade de expressão apoiam a regulação como ferramenta de promoção da diversidade e pluralismo de vozes. Em 2007, a relatoria de liberdade de expressão da ONU recomenda aos Estados legislar a favor da existência de três setores de radiodifusão: privado, público e comunitário sem fins lucrativos.
A cidadania e a luta pela liberdade
A luta pela liberdade de expressão está presente há muito tempo na construção cidadã, e foi chamada “a mãe de todas as batalhas pela liberdade”. No século XX, uma demanda importante foi que o Estado não exercesse controle sobre a expressão. Com o tempo, os movimentos pela liberdade de expressão e de rádios comunitárias definiram a comunicação como direito cidadão e fundamental, conceito que levou o tema para o direito internacional e permitiu a construção de marcos de exigência e critérios relativos à liberdade de expressão como direito humano. Esse processo se vale da experiência de muitas rádios comunitárias que fizeram do direito à comunicação um espaço de construção de outros direitos e o transformaram em direito cidadão, assim como a diversidade, a cultura e a identidade.
Todas essas considerações supõem assegurar a expressão no sistema de meios com diferentes tipos de narrativa que convivem no coletivo. Novamente, não se trata de tornar o consenso impraticável. Trata-se de reconhecer a heterogeneidade na representação dos assuntos públicos como valor positivo, e isso só é possível pela expressão pública da diversidade – que só existe quando a comunicação é reconhecida como um direito humano.
A pergunta é: como garantir a comunicação como direito da cidadania? O tema poderia ser considerado complexo, porém uma das chaves está em evitar o monopólio e equilibrar a representação da diversidade de interesses e atores sociais no debate público. Isso requer um sistema de meios de comunicação integrado por meios públicos, privados e comunitários sem fins lucrativos. Um sistema de meios composto dessa forma coloca à disposição da população representações diferentes que possibilitam o papel deliberativo das cidadãs e cidadãos, cuja origem está no direito de se expressar, estar informado e se comunicar.
Trata-se de um sistema que não restringe a liberdade de expressão à não interferência do Estado na livre circulação da informação, e obriga o poder público a garantir as condições para o desenvolvimento dos meios pelos diferentes atores (representantes da composição da comunidade política e da pluralidade que forma o universo temático do público).
Nas ações afirmativas do direito à comunicação, o reconhecimento do direito dos atores comunitários é fundamental: são eles que levam adiante experiências de participação, no sistema de meios, de setores com menos poder e que representam, muitas vezes, culturas e identidades marginalizadas.
Maria Pía Matta é jornalista e presidente da Associação Mundial da Rádios Comunitárias (Amarc).