Mídia, Justiça e empresários do Brasil, uma fábrica de demagogos
A situação geral demonstra o que as elites norte-americanas, britânicas e europeias, traumatizadas com a eleição de Trump e com o Brexit, sempre se negam a admitir: o autoritarismo não nasce do nada. A aposta da elite brasileira está condenada ao fracasso e acelera a chegada ao poder de um personagem que encarna uma verdadeira ameaça
Com a mão no peito, a mídia, a Justiça e os empresários brasileiros lamentam o tamanho da corrupção. Há três anos, eles a transformaram no principal problema do país. Sua preocupação é tamanha que, em 2016, reuniram suas forças – sem se preocupar com vozes dissonantes – para sustentar a medida mais drástica que se poderia tomar em uma democracia: destituir a presidenta Dilma Rousseff, reeleita em 2014. No entanto, essa indignação com a corrupção e a criminalidade não passou de um pretexto para desencadear o processo de destituição. Ao se desembaraçarem de Dilma, os atores dessa série B de qualidade ruim alavancaram verdadeiros criminosos, pessoas cujas ignomínias e comportamento mafioso relegam as acrobacias orçamentárias da ex-presidenta ao plano da falta sem gravidade. No festival de proezas criminosas que caracterizam o Brasil no “pós-Dilma”, as inumeráveis manipulações que justificaram sua destituição parecem tão ingênuas que nos perguntamos como seus inimigos políticos e os jornalistas estrelas da Rede Globo ficam sérios quando simulam sua indignação.
No lugar da dirigente do Partido dos Trabalhadores (PT, de esquerda), instalaram Michel Temer, de quem a corrupção é uma segunda pele. Muito rapidamente, a população descobriu que havia uma gravação que revelava que ele havia ordenado o pagamento de propinas a Eduardo Cunha para comprar o silêncio deste. Cunha, que só pode ser descrito como um gângster, tinha coordenado a campanha contra Dilma quando presidia a Câmara dos Deputados. Ele cumpre agora uma pena de quinze anos e quatro meses de prisão por corrupção, lavagem de dinheiro e evasão ilegal de divisas. Há dois anos, os deputados que fizeram a presidenta cair disputando lirismo em suas denúncias de malversações pelas quais ela seria culpada aceitam, sem a menor resistência, os envelopes que Temer lhes entrega para abafar as acusações de malversações – frequentemente sustentadas por registros reveladores1 – que pesam sobre ele.
Durante a campanha, que termina em 28 de outubro (em caso de segundo turno), para a eleição do novo presidente, as estrelas televisivas e as famílias oligárquicas que detêm os grandes meios de comunicação perderam os últimos vestígios de credibilidade que tentavam preservar. A operação comandada pela imprensa atingiu tal nível de corrupção e de forma tão aberta que choca até as mentes menos desconfiadas.
A imprensa oligárquica se uniu ao candidato Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo, membro do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB, de direita) e encarnação da elite do país. Ele é tão sem carisma que muitas vezes é comparado a um chuchu, legume que lhe deu um apelido. Alckmin faz manobras no meio político há décadas, recebe favores do mundo dos negócios, que ele trata com cuidado, ocupando de maneira inofensiva todos os cargos possíveis, confortavelmente acomodado e se beneficiando das boas relações que tem com o sistema neoliberal que alimenta a corrupção e lubrifica o sistema político. Para os poderosos, é impossível imaginar um melhor guardião do status quo.
Não é por acaso que a estratégia de Alckmin consiste em se esconder. Ele não organiza encontros, pois ninguém, a não ser os que sofrem de insônia, participaria deles. Sua busca pelo poder se baseia apenas em acordos por trás dos bastidores, impulsionados pela fortuna dos oligarcas cujos interesses são por ele atendidos; em suma, o tipo de corrupção legalizada que causa gangrena no mundo político e parece só ter começado a atormentar os jornalistas recentemente. No entanto, as bajulações da imprensa ainda não chegaram a fazê-lo atingir 10% das intenções de votos. Como em outros lugares do mundo, a rejeição das elites políticas atingiu um nível tal que a população se distancia cada vez mais dele.
Preso após uma acelerada condenação por corrupção, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, favorito de acordo com as pesquisas, não foi autorizado a se candidatar. Até o último minuto, a estratégia do PT consistiu em contar com uma mudança a seu favor, sob a pressão popular. A candidatura de seu suplente e antigo correligionário Fernando Haddad, anunciada em 11 de setembro, é acompanhada de um esforço que visa permitir que ele desfrute da popularidade de Lula.
Nessas condições, restam três candidatos vistos, com toda a razão, como personalidades estranhas ao sistema: o deputado de extrema direita Jair Bolsonaro,2 que não esconde desejar a volta dos militares ao poder, como na ditadura de 1964 a 1985, e que nas pesquisas lidera as intenções de voto após a saída de Lula; Marina Silva, uma ecologista negra, evangélica e conservadora;3 e Ciro Gomes, um dirigente político de esquerda, hábil e com experiência, mas sem aliados ou coalizão (dada a amplitude das divisões entre os progressistas) e vítima de sua imagem de independente imprevisível.
Em um contexto de pânico da elite, o “chuchu” anunciou ter formado uma grande coalizão em torno do que as mídias chamam de “bloco centrista” – em outras palavras, “todo mundo, exceto Lula e Bolsonaro”. Ele também tem uma correligionária na chapa, candidata à Vice-Presidência: Ana Amélia Lemos, do Partido Progressista (PP), de extrema direita.
A natureza “centrista” da caminhada não impressiona imediatamente. O PP acolheu Bolsonaro até 2015 e tem suas raízes no apoio à ditadura militar, que tomou o poder em 1964 por meio de um golpe de Estado sustentado pelos Estados Unidos. Na época, Lemos era jornalista, escrevia a favor da junta e era casada com um senador designado pelos oficiais. Suas convicções atuais a colocariam decididamente na extrema direita no terreno da disputa política nos Estados Unidos ou na Europa. No verão de 2018, quando o presidente do PT deu uma entrevista à rede Al Jazeera, ela tomou a palavra no Senado para criticar o PT – em uma mistura sutil de xenofobia e ignorância – por estar ligado aos terroristas: ela confundiu Al Jazeera com Al-Qaeda.
A coalizão de Alckmin foi concebida de modo a garantir-lhe a maior parte do financiamento público e do tempo de TV durante a campanha, com a esperança de que uma avalanche de propaganda eleitoral acabaria com as reticências da população. E pouco importa, para a mídia, se o partido de Lemos se revela um dos mais envolvidos nos escândalos que sacodem o país.4 Dos 56 deputados filiados ao PP, 31 são acusados de corrupção. Até mesmo Bolsonaro, para se candidatar à Presidência, achou melhor se distanciar desse partido que, cada vez mais, lembra uma cloaca política. Embora não seja incomodada pela justiça, Lemos também não se distingue por seu senso de ética: sua carreira política teve início com uma nomeação, graças a seu marido, para um posto em tempo integral que não requeria dela nenhum trabalho.
É esse o clã que quer tomar as rédeas do país. Graças ao apoio de meios de comunicação privados que não param de condenar a corrupção, dois dos partidos políticos mais corruptos da América Latina pretendem chegar ao poder no maior país da região, que conta com mais de 200 milhões de habitantes. A poucas semanas de uma eleição imprevisível, Bolsonaro cristaliza a atenção: favorito, ele registra também o maior índice de rejeição, de tal maneira que nenhuma pesquisa o anuncia vencedor de um segundo turno – a não ser que a facada de que foi vítima em 6 de setembro, durante uma manifestação de apoio, suscite uma onda de simpatia, cenário que não está totalmente excluído.
Essa situação geral demonstra o que as elites norte-americanas, britânicas e europeias, traumatizadas com a eleição de Donald Trump e com o voto a favor da saída do Reino Unido da União Europeia, sempre se negam a admitir: o autoritarismo não nasce do nada. Os demagogos não podem florescer no meio de instituições funcionais, justas e imparciais. Ameaçar a democracia e as liberdades políticas só é possível quando a população perde a confiança que tinha nas instituições.
É porque a aposta da elite brasileira – juntar-se em torno de uma enorme coalizão de corruptos para proteger o “velho mundo” – está condenada ao fracasso e poderá acelerar a chegada ao poder de um personagem que encarna uma verdadeira ameaça. Compreender por que a democracia brasileira poderá balançar implica menos denunciar Bolsonaro do que se perguntar sobre as disfunções profundas da sociedade e das instituições do país.
*Glenn Greenwald e Victor Pougy são jornalistas do site norte-americano Intercept, que publicou uma primeira versão deste artigo. Greenwald é autor de Sem lugar para se esconder. Edward Snowden, a NSA e a espionagem do governo americano, Sextante, Rio de Janeiro, 2014.