Minha filha tinha com a Vale um compromisso, mas a empresa não teve a mesma responsabilidade com ela
Confira artigo de Maria Regina da Silva, mãe de Priscila Elen Silva, vítima do desastre-crime da Vale em Brumadinho, e integrante da diretoria da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (Avabrum)
Nos últimos quatro anos, informações e agitos nos fazem refletir sobre a situação do passado, da nossa vida e da jornada de trabalho para cuidar dos meus cinco filhos. Uma preocupação com o cuidado, de construir uma vida melhor para eles. Eu mesma construí nossa casa em Brumadinho, sempre trabalhando em prol deles.
Com o desastre-crime houve uma separação entre o dia 24 de janeiro e o 25 de janeiro. No dia 25, eu levantei de madrugada, fritei meu salgado e fui entregar. De manhã a minha filha Priscila me mandou mensagem indo para o trabalho. Eu estava bem, liguei para ela logo depois e não consegui falar. Fui resolver outros problemas. Chegando em casa fui a pé encontrar minha mãe no Fórum. Foi uma sexta-feira clara e do nada ela escureceu em um instante no céu. Eu estava na fila no Fórum e uma pessoa chegou na janela e disse: se alguém aqui conhece pessoas que moram perto do rio, corram para tirar porque a barragem rompeu. Eu lembrei dos meus filhos, Pedro e Priscila, que trabalhavam na mina Córrego do Feijão. Liguei para Priscila e ela não atendeu. O desespero se instalou. Brumadinho virou um agito e um cenário de guerra. Não tinha como atravessar a estrada. Desorientei e não sabia para onde ir… Meu desespero apagou a minha memória.
Consegui falar com Pedro. Ele me disse no telefone que tinha acabado tudo abaixo da barragem, onde Priscila estava…
Esses quatro anos para nós ficaram escuros como naquele dia 25. Essa nuvem ainda está em cima da gente. Perder uma filha não é fácil. De qualquer forma que se fale em perda de filho não é fácil. Da forma que foi, foi pior. Foi pior pela injustiça, por saber que a Vale S.A tinha certeza de um futuro rompimento, pois há provas na investigação policial de que a empresa tinha conhecimento de que a barragem ia se romper. O rompimento foi um crime. Isso nos revolta porque poderia ter sido evitado.
Nunca poderemos esquecer esses quatro anos. São quatro anos de luta constante internamente: você coloca 5 filhos no mundo, enquanto mãe solo, criados para o caminho do bem. E minha filha Priscila tinha uma profissão que ela amava. Ela tinha com a Vale S.A um compromisso e a empresa não teve a mesma responsabilidade com ela. Essa revolta está cravada em nós, familiares das vítimas fatais. E imaginar que os profissionais e técnicos da empresa sabiam e não foram capazes de tirar os trabalhadores de lá é inaceitável. A Vale e seus responsáveis foram omissos em relação ao dano e da certeza de que a barragem se romperia.
A Vale não enganou os funcionários apenas, mas toda população de Brumadinho. Ela tirou o melhor das comunidades e das pessoas, devolvendo desespero, choro, tristeza, ausência e… corpos dilacerados. Levei anos cuidando de minha filha, e a Vale pega essa pessoa que entrega resultado e coloca o lucro em cima da vida, devolvendo partes de uma única pessoa. Então, de forma interna, esses quatro anos são desesperadores, são de agonia, e a luta interna continua.
Já na luta externa não temos tempo de viver o luto, de chorar o quanto queremos. Quando choramos precisamos engolir e continuar. É uma luta que não dá trégua. Nossa família precisou mudar de Brumadinho em razão do adoecimento e pressão social diante do cenário da reparação. Precisamos sair para continuar a luta externa. Nossa vida virou de cabeça para baixo.
Houve uma invasão da cidade de Brumadinho após o crime em razão da indenização pelos danos, como um êxodo urbano, em que as pessoas que chegam após 2019 não possuem vínculo afetivo com o território. Há uma ausência de pertencimento e desrespeito com a população. Essa situação ampliou o índice de violência da cidade, principalmente contra as mulheres.
Sobre as famílias, entendo que cada pessoa tem seu tempo e o seu processo. A luta interna acontece com todas as pessoas que perderam um familiar que dorme e acorda pensando nele. Dorme para esquecer e acorda para lembrar. Cada um de nós, sem poder abrir o caixão, com minutos cronometrados; é muito cruel. Foram minutos que eu não lembro. Não consigo ver o que eu fiz. Os familiares estão adoecidos, assim como um pai que morreu no dia 25 de novembro de infarto, por não visualizarem a justiça. As famílias apresentam dificuldade de caminhar e seguir adiante.
Quando conversamos com outros familiares vemos a descrença na justiça em razão da demora do processo criminal, apesar da rapidez da Polícia Federal de apurar o que aconteceu. Esse tempo de espera e de inércia processual adoeceu os familiares. É inconcebível que não tenha um juiz, um advogado, uma pessoa nas instâncias superiores conscientes e certos de que são 272 mortes. Não são números. São vidas reais. Entendemos a dificuldade, que não é fácil diante da imensidão dos fatos, provas e quantidades de pessoas mortas e indiciadas. Porém, entendemos também o poder financeiro da empresa que dificulta o andamento do processo. Eu, enquanto mãe, quero alguém que se comprometa com a finalização do processo condenando os culpados indiciados pelo inquérito policial. Eles devem ser levados a julgamento para comprovar o dolo. Queremos justiça! Quando percebemos que os nossos familiares foram mortos, não sabíamos o caminho. No entanto, o maior desespero vem depois que vemos que há um trabalho de apuração das provas do crime que já estão no processo, e precisam ser encaminhadas. Cabe a uma pessoa que tenha discernimento da justiça para levar os réus a julgamento.
A falta de comprometimento da justiça, esse jogo estratégico de alteração de competência nos adoece. A nosso ver é a direção da empresa quem está comandando o processo. A Vale S.A articulou para que a justiça inserisse outro crime na apuração dos fatos, escolhendo o local da competência e inserindo em sua defesa a assunção de que cometeu mais um dano material ao patrimônio cultural. Pense, como um réu assume em sua defesa que realizou mais um crime para se beneficiar em relação à competência do processo? Isso não tem sentido. A justiça aceitar essa tese nos adoeceu ainda mais. Porém, eu acredito que a justiça será feita! Em momento algum me permito pensar ao contrário.
Hoje, nesse caminhar de luta pela justiça célere, em busca da memória, porque “o que a memória ama fica eterno”, nós lutamos para que esse crime não seja esquecido. Todo dia 25, nós, familiares de vítimas, realizamos um ato em memória das vítimas e em busca das pessoas que não foram encontradas, para que as famílias tenham um momento digno com o seu familiar. Quanto à justiça, estamos seguindo em frente na diretoria da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (Avabrum), articulando, lutando por justiça com força e legitimidade, e também por memória e encontro. A Avabrum nos abriu portas e garante nossa legitimidade para fazermos o trabalho de memória, encontro e justiça e nós seguiremos em luta.
Maria Regina da Silva, mãe de Priscila Elen Silva, vítima do desastre-crime da Vale em Brumadinho, e integrante da diretoria da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (Avabrum).