Na Argentina, os fundos abutres são postos em xeque
Devemos permitir que um punhado de especuladores tome 40 milhões de argentinos como reféns? A Justiça norte-americana respondeu que “sim”, semeando a desordem mesmo entre investidores. Ao fragilizar os mecanismos que permitem aos Estados aliviar o peso da dívida, essa decisão ameaça desequilibrar o sistema financeiroMarc Weisbrot
rigaque opõe a Argentina aos “fundos abutres”, empresas especializadas em especular com dívidas duvidosas, lembra algumas séries da televisão norte-americana. Exibe todos os seus ingredientes: mistério, intrigas políticas, lances teatrais e “vilões” absolutamente nojentos – entre eles, um bando de antigos altos funcionários com seus chinelos de lobistas, sobre os quais o jornalista Mark Leibovich diz: “Agarram-se a Washington como mariscos ao rochedo”.1
O episódio final começou em 21 de novembro de 2012, num tribunal federal do distrito de Nova York, quando o juiz Thomas Griesa ordenou à Argentina que entregasse a soma de US$ 1,33 bilhão a diversos fundos especulativos, um deles a NML Capital, comandada pelo empresário norte-americano Paul Singer… As implicações dessa decisão ultrapassam rapidamente a disputa entre um país e os mercados financeiros. A intriga se tece agora em torno da relação mundial de forças entre nações endividadas e credores. Ela ilustra, além disso, a discordância dos responsáveis pela política externa norte-americana quanto a uma questão dolorosa: que fazer diante de governos sul-americanos agora dispostos a reivindicar sua independência geopolítica?
Como sempre, entender os últimos desenlaces requer conhecimento das temporadas anteriores. Tudo começou em 2001. Ao fim de mais de três anos de recessão, Buenos Aires confessou ser incapaz de pagar uma dívida de quase US$ 100 bilhões. Declarou-se insolvente e, após longas negociações, propôs aos credores trocar suas obrigações por novos títulos “reestruturados” com valor 70% menor que o dos originais. Do total, 76% seriam pagos em 2005 e 93%, em 2010. Não havia do que se queixar: Buenos Aires se mostrava bom pagador. Até 30 de julho último…
Um novo “calote”?
Acontece que, entrementes, os fundos abutres – o sobrenome vem de muito antes do episódio argentino – entraram em cena. Encabeçados pela NML Capital, eles compraram os títulos que a Argentina não resgatara com um desconto médio de 80%: pagaram apenas 20 centavos por cada dólar da dívida adquirida. A ideia? Processar Buenos Aires para exigir o reembolso total, o que significava – levando-se em conta os juros do período – um lucro sobre o investimento de 1.600% (contra os 300% da reestruturação proposta por Buenos Aires). E eis-nos de volta ao episódio de 21 de novembro de 2012, quando o juiz Griesa voou em socorro dos abutres determinando seu reembolso prioritário… Em seguida, para surpresa geral, a Suprema Corte dos Estados Unidos anunciou, em 16 de junho de 2014, que corroborava a decisão de Griesa. Um mês e meio depois, os pagamentos de Buenos Aires a seus credores reestruturados foram bloqueados: a imprensa alardeou um novo “calote” da Argentina…
Esta, no entanto, oferecia um modelo aos países endividados. Reduzindo o fardo de suas dívidas para estimular a economia, permitira aos investidores aproveitar-se dessa recuperação para garantir reembolsos regulares. As publicações econômicas, porém, não perdoaram essa política heterodoxa. Daí, talvez, a cobertura negativa que o país sofre há uns dez anos. Com base em medidas de inflação independentes – mais elevadas que as do governo –, a Argentina reduziu a pobreza em mais de 75% de 2002 a 2011. As desigualdades também diminuíram: entre 2001 e 2010, a relação entre os ganhos mais altos (95o percentil) e os mais baixos (5o percentil) caiu de 32 para 17.
Quase dobrando a produção interna de 2002 a 2011, Buenos Aires se saiu melhor que a Grécia: sob a tutela da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional (FMI), o país europeu enfrenta há mais de seis anos recessão, desemprego e corte nos investimentos em saúde. A despeito dos incontáveis “planos de resgate” que aceitou, a Grécia ainda ostenta uma dívida equivalente a 170% de seu PIB, e ninguém espera que a produção de riquezas chegue ao nível de 2007 antes de, pelo menos, uma década.
Durante os últimos três anos, a economia argentina encontrou dificuldades. A inflação chegou a 38% anuais,2 enquanto, no mercado negro, o dólar alcançava um valor de troca de 70% a mais que a cotação oficial. As explicações são muitas. A economia mundial vem se arrastando desde 2010 (o crescimento caiu de 5,2% em 2010 para 3% em 2013), sem poupar os dois principais parceiros comerciais de Buenos Aires: Brasil e Europa. Não bastasse isso, após a série de processos movidos por Singer e seus amigos, o país não consegue empréstimos nos mercados internacionais de crédito, o que o torna mais vulnerável que os outros aos desequilíbrios da balança de pagamentos. Sem contar que as cassandras da mídia encorajam a fuga maciça de capitais…
Como, então, explicar as motivações do juiz Griesa? Sua sentença não contraria o princípio fundamental do sistema jurídico norte-americano, a propriedade privada? Impedindo os credores reestruturados de receber as somas que lhes são devidas, Griesa não infringiu tal princípio? No mundo inteiro, a perplexidade foi tal que Brasília, Cidade do México, Paris e a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) deram seu apoio a Buenos Aires. Mas ainda assim a Corte de Apelação decidiu validar a sentença do juiz Griesa em segunda instância.
A essa altura do enredo, olhemos para Washington. Num primeiro momento, o Departamento do Tesouro apoiou a Argentina. Em 17 de julho de 2013, a diretora do FMI, Christine Lagarde, deixou entrever que o fundo também iria apoiar a Argentina junto à Suprema Corte. Em 23 de julho, porém, o Conselho de Administração do FMI – no qual a influência do representante dos Estados Unidos é decisiva – assumiu outra postura, deixando embaraçados Christine e vários outros funcionários, que não esconderam sua irritação. Durante uma entrevista organizada em 24 de julho, o porta-voz do FMI, William Murray, foi interrogado sobre esse lance teatral. Sua resposta bombástica: “Perguntem aos caras do Departamento do Tesouro, eles é que sabem!”.
Em Washington, inúmeras pessoas – a começar por Christine – avaliam o perigo da sentença do juiz Griesa. “A direção e as equipes do FMI continuam preocupadas com as amplas implicações sistêmicas dessa decisão”, explicou Murray em 25 de julho. Mesmo a International Capital Market Association (ICMA), organização que representa os interesses dos atores dos mercados de capitais, mostrou-se inquieta. Em 29 de agosto de 2014, ela anunciou que vai rever suas diretrizes relativas à emissão de dívidas de Estado, na tentativa de aparar as asas dos fundos abutres.
Nos Estados Unidos, como na maior parte dos países (inclusive a França), as leis contemplam a possibilidade, para os tomadores incapazes de pagar suas dívidas, de declarar falência e recomeçar do zero. Nenhum mecanismo desse tipo existe em escala internacional para os Estados. A fim de evitar os calotes caóticos, o sistema financeiro internacional só conta com os processos de reestruturação negociada. Ora, o julgamento de Griesa poderia complicar essas operações mesmo em caso de acordo: um punhado de descontentes (ou especuladores) bastaria para inviabilizá-las.
Uma questão persiste: quem convenceu o Departamento do Tesouro a mudar de ideia e influenciar de tal modo o FMI? Como no jogo de tabuleiro Detetive, suspeitos é que não faltam. Os fundos abutres contam com seu próprio lobby, o American Task Force Argentina. Valendo-se dos préstimos de ex-funcionários de alto escalão do governo Clinton, a organização despendeu mais de US$ 1 milhão para defender o dossiê de Singer em 2013. Entre os atores principais desse retorno, figuram sem dúvida representantes neoconservadores do Congresso norte-americano, notadamente a ala direitista anticubana da bancada da Flórida. Não contentes em atrapalhar o presidente Barack Obama toda vez que ele entrevê uma possibilidade de melhorar as relações dos Estados Unidos com a América Latina, eles pretendem livrar a região de todos os seus governos progressistas (do Brasil inclusive). Do apoio discreto de Washington ao golpe militar hondurenho3 em 2009 ao incentivo às manifestações contra o governo na Venezuela em 2013,4 a história recente mostra que eles conseguem, quase sempre, impor suas prioridades.
Desde 30 de julho de 2012, a imprensa vem divulgando que a Argentina deu o calote pela segunda vez em treze anos: não é verdade. O governo fez todos os pagamentos previstos, que foram, porém, bloqueados nos bancos por ordem do juiz Griesa. A Argentina procura uma maneira de se entender com seus credores fora da jurisdição norte-americana. Já adotou medidas legislativas nesse sentido para permitir aos portadores dos bônus reestruturados trocá-los por títulos novos, emitidos na Argentina.
De seu lado, quase todos os países ricos rivalizaram no afã de apoiar a elite financeira. Em 9 de setembro de 2014, a Assembleia Geral das Nações Unidas foi chamada a votar um texto que visava estabelecer um mecanismo de reestruturação das dívidas soberanas, proposto pelo “Grupo dos 77” países em desenvolvimento mais a China. Os Estados Unidos e seus aliados (Israel, Canadá, Austrália, Alemanha) votaram contra, e a maior parte dos países europeus se absteve (inclusive a França). Apesar disso, o texto foi aprovado por 121 votos (onze contra e 41 abstenções).
Os países em desenvolvimento andariam preferindo emitir seus bônus em outras jurisdições que não a dos Estados Unidos. A sentença do juiz Griesa mostra que, optando pelos norte-americanos, esses países expõem-se às decisões de uma justiça imprevisível, capaz de preferir os interesses de meia dúzia de especuladores à sorte de milhões de pessoas. Em 2009, 70% das obrigações dos mercados emergentes eram emitidas em Nova York. Mas o Reino Unido e a Bélgica possuem leis que tornariam impossível a decisão de Griesa. Sem dúvida, se as emissões de dívidas de Estado começassem a fluir para outros centros financeiros, o legislador norte-americano se apressaria em adaptar suas leis às normas internacionais.
Marc Weisbrot é diretor-associado do Center for Economic and Policy Research e presidente da Just Foreign Policy.