No Kings: um movimento histórico contra o autoritarismo nos EUA
Parece que o American Dream está com seus dias contados. Essa reflexão surge na esteira da construção do inimigo imaginário do soldado como interno que Trump tem mobilizado por meio da sua caça contra imigrantes
O ano de 2025 tem sido bem turbulento em diferentes setores do governo Trump 2.0. Não diferentemente, essa turbulência também estaria pairando sobre as Forças Armadas norte-americanas. A última semana foi bem tumultuada em relação às Forças Armadas, marcada pelo uso da Guarda Nacional em Los Angeles, incluindo a possibilidade de Trump acionar os fuzileiros navais também para conter manifestantes contra sua política migratória.

A retórica autoritária e violenta tem sido a principal característica desse novo governo. Antes mesmo da sua posse, ainda em 2024, o presidente eleito Trump já dava indícios de que seu novo governo seria totalmente diferente da sua primeira passagem pela Casa Branca. Entre eles, destacam-se a ameaça de anexação do Canadá como 51º Estado norte-americano, a retomada do Canal do Panamá e o rompimento histórico com a aliança transatlântica europeia, por exemplo. Esses eventos demonstram um novo estilo de governo um tanto distinto das últimas décadas em relação aos ex-presidentes dos Estados Unidos.
Em abril, em razão dos drásticos cortes impostos nos serviços federais sob o comando de Elon Musk por meio do Departamento de Eficiência Governamental (Doge, na sigla em inglês), surgiram os protestos Hands Off!. Esse movimento reuniu mais de 3 milhões de pessoas contrárias ao novo governo Trump em 5 de abril. Assim, ao mesmo tempo que o governo Trump 2.0 avança ao longo dos seus mais de cem dias, protestos contra o governo também. Uma das causas pode ser identificada por meio da não aceitação da política migratória que Trump tem imposto desde o seu primeiro dia de governo.
Desse contexto, depreende-se o desenrolar a ser analisado neste breve texto: como as políticas migratórias têm endossado uma retórica autoritária e violenta de Trump a partir da militarização das suas ações de repressão contra os atos civis? Para isso, o ponto de partida é o emblemático caso da parada militar marcada para 14 de junho. Dia esse ambíguo para a política norte-americana, já que é a data que marca os 250 anos da criação do Exército norte-americano, bem como o aniversário de 79 anos do presidente em meio às ondas de protestos em Los Angeles. Com efeito, os protestos na Califórnia têm sido inflamáveis e se espalhado para demais cidades do país e, possivelmente, apresentam uma nova trajetória para os Estados Unidos que, até 2024, era considerado o símbolo da democracia nos moldes norte-americanos.
Parece que o American Dream está com seus dias contados. Essa reflexão surge na esteira da construção do inimigo imaginário do soldado como interno que Trump tem mobilizado por meio da sua caça contra imigrantes. O caso de Los Angeles pode ser considerado como emblemático, já que é uma cidade que atraiu muitos imigrantes nas últimas décadas. A ideia discursiva que Trump tenta mobilizar nessa questão está relacionada à construção do inimigo imaginário do soldado como interno. Isto é, a construção do combate ao imigrante pelo combate por meio da atração. O que isso significa? Trump ataca a deportação, deixando a vida do imigrante mais difícil, o que foi diferente da atuação do modelo de repulsa que o governo Clinton (1993-2001) colocou em prática por meio do Nafta, que reduziu a presença de mexicanos nos Estados Unidos. Aqui, o atual presidente inflama uma retórica violenta e autoritária, testando a competência das instituições. Além disso, sublinha-se que Trump não descartou acionar a Lei de Insurreição promulgada em 1807. Essa legislação, de forma bem geral, concederia a ele poderes para mobilizar as Forças Armadas quando necessária para conter a repressão da agitação civil. Essa Lei foi utilizada pela última vez pelo presidente George H. W. Bush (1989-1993) em 1992, quando o governador da Califórnia solicitou ajuda militar para conter os protestos após o julgamento dos policiais que espancaram o motorista negro Rodney King. Desde então, não foi mais acionada. Já a Guarda Nacional foi acionada pela última vez em 1965, quando o presidente Lyndon Johnson enviou tropas para proteger manifestantes pelos direitos civis no Alabama, sem um pedido de um governador.
É importante destacar que nem a Guarda Nacional nem as Forças Armadas podem prender. A justificativa do envio tanto da Guarda Nacional como dos fuzileiros é atuar na “proteção de funcionários e propriedades federais”. No entanto, não podemos deixar de destacar o papel do Project 2025 e do projeto MAGA (Make America Great Again, em inglês) que estabelecem como prioridade que as Forças Armadas devem fornecer o apoio necessário às operações de proteção das fronteiras do Departamento de Segurança Interna, caracterizando a proteção das fronteiras como uma questão de segurança nacional.
Em meio a essa turbulência no país, Trump promoveu uma parada militar no sábado (14). Para os democratas, há uma apropriação da comemoração do aniversário do Exército por Trump. Aqui, há um outro aspecto desse autoritarismo em curso nos Estados Unidos: a tentativa de politização das Forças Armadas, ou pelo menos a tentativa de fazer essa instituição atender às vontades do então presidente. É importante lembrarmos que, durante o primeiro governo, Trump tentou que o Pentágono estudasse uma celebração também durante seu aniversário, já que o Exército foi criado em 14 de junho de 1775, um ano antes mesmo da independência do país. Na época, a celebração foi mais simbólica, com a exposição de tanques e outros veículos blindados no feriado de 4 de julho em Washington. Isso nos dá indícios de uma separação bem-marcada de não envolvimento político das Forças Armadas de qualquer tentativa de associação com o governo, em especial com a imagem do presidente.
Vale recordar que os desfiles militares nos Estados Unidos são raros. O último aconteceu 1991, quando soldados desfilaram junto com tanques por Washington para celebrar a expulsão do Exército iraquiano de Saddam Hussein na Guerra do Golfo.
Diferentemente do primeiro governo, nesse segundo fica marcada a intenção de não distanciamento dos militares da política, portanto, sendo um exemplo da politização dos militares no governo Trump 2.0. Isso também marca uma contradição trumpista, que tanto critica os gastos “desnecessários” com a defesa e que tem governo investido no setor de certa forma, apesar das demissões em massa do governo federal. Assim, o segundo governo Trump é mais marcado pela ideia de dar ao presidente o que ele quer independente de ser o melhor em curto e/ou longo prazo, embora possa não ser um consenso dentro das Forças Armadas. Contudo, a noção é de colaborar com o governo mesmo que não gostem.
É nesse contexto que os protestos do dia 14 de junho surgem e ganham o título de “Sem Reis” (No Kings, em inglês). O cerne do protesto está nas ações contra imigrantes e a militarização na repressão utilizada contra os atos civis. Desse modo, marcando um autoritarismo que, historicamente, os Estados Unidos condenavam dentro do seu próprio país e contra sua população.
Os eventos conturbados não pairam por aqui. Sem dúvida, 14 de junho de 2025 entrará para a história do país que se considerava como “pai da democracia”. Ironicamente, o presidente presidiu o desfile militar, evento tão característico de países ditatoriais, e protestos – No Kings – contra o autoritarismo, a militarização da democracia e a violência política, que infelizmente aconteceu em Minnesota. Esse último fato aconteceu na manhã de sábado, quando a congressista democrata estadual, Melissa Hortman, e seu marido Mark, foram assassinados em Minnesota, marcando o temor que assola os Estados Unidos desde que Trump assumiu o seu novo mandato: a violência política. Os dias estão cada vez mais sombrios pelos Estados Unidos, entretanto, não há como prever o futuro, mas o que se pode inferir desses últimos acontecimentos é que há uma agenda política ultraconservadora e militarizada da democracia que irá pairar sobre os ares de Washington e todo o país durante o governo Trump 2.0.
Yasmim Abril M. Reis é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), pesquisadora colaboradora no OPEU nas áreas de Segurança e Defesa, líder de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC/EGN) e Pesquisadora de geopolítica da América do Norte e Central para o Boletim Geocorrente, no Núcleo de Avaliação da Conjuntura (NAC/EGN). Contato: [email protected].
Referências
BISCHOFF, Wesley. ‘Sem Reis’: como protestos contra Trump se espalharam para além de Los Angeles e ganharam a atenção de famosos. G1. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/06/12/sem-reis-como-protestos-contra-trump-se-espalharam-para-alem-de-los-angeles-e-ganharam-a-atencao-de-famosos.ghtml. Acesso em: 14 jun. 2025.
DICKINSON, Tim. “Sem Reis”: milhões protestam contra “desfile de aniversário estilo ditador” de Trump. Rolling Stone. 2025. Disponível em: https://rollingstone.com.br/politica/sem-reis-milhoes-protestam-contra-desfile-de-aniversario-estilo-ditador-de-trump/. Acesso em: 14 jun. 2025.
- Milhares protestam nos EUA contra políticas de Trump. DW. 2025. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/milhares-protestam-nos-eua-contra-pol%C3%ADticas-de-trump/a-72913017. Acesso em: 14 jun. 2025.
MASCARENHAS, Lauren. Trump faz aniversário neste sábado (14); milhões de pessoas devem protestar. CNN. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/trump-faz-aniversario-neste-sabado-14-milhoes-de-pessoas-devem-protestar/. Acesso em: 14 jun. 2025.
REIS, Yasmim Abril M. A diplomacia do medo: trump 2.0, canadá, groenlândia e panamá. Trump 2.0, Canadá, Groenlândia e Panamá. Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU). 2025. Disponível em: https://www.opeu.org.br/2025/01/21/a-diplomacia-do-medo-trump-2-0-canada-groenlandia-e-panama/. Acesso em: 15 fev. 2025.