Novas configurações políticas
Nos países do Sul, muitas mudanças políticas recentes foram feitas com o propósito de promover a descolonização. Provavelmente, ainda estamos por conhecer uma nova estratégia conservadora de integração regional, que fará frente às iniciativas lançadas nestes últimos anos
Estamos diante de novas configurações políticas no processo boliviano e no geopolítico regional em um período de turbulências econômicas e financeiras do sistema capitalista mundial.
Este é um tempo de incertezas e inseguranças, sobretudo para aqueles modos de governo e de gestão que se acostumaram e se adaptaram, nas últimas décadas, a uma tecnologia da “governabilidade”.
Com o período das pós-ditaduras e suas respectivas aberturas democráticas, a região sul-americana vive uma fase institucional democrática modernizadora – na Bolívia de 1985 a 2005 – em plena sincronia com a ascensão da hegemonia neoliberal e de seus ajustes estruturais para atender às exigências dos investimentos estrangeiros.
Estão em crise esses esquemas e procedimentos, a hegemonia neoliberal está em xeque há uma década, mas tampouco podemos afirmar que esteja sepultada ou superada e, por isso, abrem-se tempos de turbulência. Ainda que as marcas do neoliberalismo continuem presentes, o sistema econômico mundial se encontra na urgência de estabelecer reorientações para preservar e defender as lógicas da dinâmica capitalista.
Provavelmente essa é uma das maiores crises do sistema capitalista e estamos apenas começando a entrar na turbulência, desconhecemos seus efeitos e suas consequências e, além disso, sua duração e temporalidade. Tudo isso gera um desconcerto em todos os sentidos e incentiva um instinto meramente conjuntural e prático de sobrevivência, ou seja, cínico e depredador, diante da opção de ser a próxima vítima ou meramente um sobrevivente. O cálculo é com base zero: tudo ou nada, ganhar ou perder, viver ou morrer.
Essa é uma face da moeda da crise e, talvez, a versão dos que apostam na sua retificação ou reformulação para que retome seu caráter sistêmico autorregulado e autonormativo. Para eles, é uma questão de ajustar, reformar o sistema capitalista.
A outra face da moeda são os que não a aceitam, e, por isso mesmo, lutam contra o sistema capitalista. Para estes, a crise a que assistimos atualmente não vem apenas das contradições e dos desarranjos do sistema – que de modo otimista podem ser funcionalmente solucionados – mas ela é resultado da potência e da força das lutas desenvolvidas contra a lógica do sistema capitalista. Portanto, a crise atual é a oportunidade de entender e amadurecer alternativas para continuar a luta contra o capitalismo; não é o fim do capitalismo, mas sim as brechas e as potencialidades para dar início e institucionalizar outros modos de socializar, produzir e viver.
Portanto, devemos considerar alguns traços existentes naqueles processos de mudança da região – que se denomina “da guinada política”– e que, talvez, estejam mais acentuados ou explicitados no processo boliviano:
1) a transformação do Estado, eliminando componentes e normas neoliberais e, também, suas características e persistentes estruturas coloniais, garantindo o espaço do indígena e também, cada vez mais forte, do afroamericano;
2) as configurações políticas para reconhecer e legitimar práticas e discursos não institucionalizados, nem tornados visíveis por formas que reterritorializam ou desterritorializam a política e, consequentemente, tendem a metamorfosear o político;
3) os cenários geopolíticos para estabelecer vínculos e a coordenação de prioridades estratégicas energéticas e econômicas, e, também, cultivar redes e circuitos de reciprocidade e comércio justo.
É claro que, em um ou outro país da região, esses temas são colocados e priorizados de maneira diferente e com medidas ou efeitos desiguais, mas são aspectos estratégicos que configuram e possibilitam tratar do surgimento do bloco geopolítico sul-americano.
As três fases
No caso boliviano, poderíamos caracterizar as três fases nas quais está se desenvolvendo o processo de mudança. A velocidade da política está modificando as tensões e as contradições de uma sociedade que se pôs em movimento de forma intensa e vertiginosa; por isso mesmo, é possível indicar forças e potencialidades como tendências, mas que ainda não foram cristalizadas nem instituídas.
A Constituição Política do Estado, promulgada em fevereiro de 2009, é o referencial e o marco político do processo, tanto em seus avanços como em suas limitações e silêncios eloquentes.
Primeira fase
A emergência dos movimentos sociais e indígenas foi uma etapa do ciclo de lutas que começou no ano 2000, passou pelo outubro de 2003 e chegou até a vitória eleitoral do MAS-IPSP com Evo Morales. Os acontecimentos na Venezuela, Brasil, Equador e Argentina teceram um espírito de mudança na região, junto aos sucessivos Fóruns Sociais Mundiais. As mudanças de governo ocasionadas pelas vitórias nas diversas eleições permitiram assumir a crise e a morte do neoliberalismo, ao menos com um maior protagonismo estatal.
Segunda fase
A construção de uma alternativa de transformação estatal e de uma transição política democrática para cumprir o mandato da agenda de outubro foi implementada aos poucos, desde a posse do governo de Evo Morales, em 2006: as medidas de nacionalização do petróleo e do gás; a dificultosa trajetória de finalização da Assembleia Constituinte e os contínuos enfrentamentos regionais, cívicos e com as prefeituras, que se mobilizam por conta da reivindicação de autonomias departamentais quase “de fato”, até o massacre de Pando e as modificações do texto constitucional pelo Parlamento para viabilizar a consulta cidadã de aprovação ou não das autonomias.
A criação da Alba (Aliança Bolivariana para as Américas) como mecanismo interestatal de cooperação é uma ferramenta nova e decisiva para as intervenções em setores esquecidos como saúde, educação e serviços públicos. Os trabalhos encaminhados para construir e consolidar a UNASUL têm um horizonte amplo em temas econômicos, financeiros, produtivos, energéticos, alimentares e de serviços, que só começam a ser considerados. Mas sua maior eficácia foi verificada nas declarações políticas de respaldo aos processos democráticos da região e a busca de espaços de diálogo e entendimento, apesar de sua incapacidade a respeito do golpe em Honduras.
Terceira fase
A implementação de um plano e de um programa hegemônicos de mudança, por meio das vitórias eleitorais, de consulta cidadã e da eleição das respectivas autoridades, assim como da redefinição da agenda política do governo de transformação.
A contundente vitória eleitoral, com 64% dos votos e praticamente 2/3 da Assembleia Legislativa Plurinacional para o MAS-IPSP, em dezembro passado, se confronta com o claríssimo SIM às Autonomias Departamentais, em consulta cidadã levada a cabo nos territórios que apenas quatro anos atrás não as apoiaram; o discurso de campanha oficial orientado para o “salto industrial” e a extensão dos direitos sociais e culturais; tudo isso abre novas questões sobre a leitura da conjuntura eleitoral e a estratégia de mudança.
Entretanto, se essa primeira brecha ainda não é suficiente, vamos nos deparar com maiores incertezas frente às listas dos candidatos para governador e prefeito das capitais, porque evidentemente a seleção destes priorizou uma leitura de aberturas e alianças – que podem ser decisivas para uma tendência política hegemônica, mas perigosas e desconcertantes para o rumo do processo. Esses indícios de uma possível brecha entre a conjuntura eleitoral e a estratégia de mudança estão intimamente ligados às formas de entender e de praticar a política. Ou seja, a política é o espaço que concentra ou determina – neste momento de transição – as orientações, temporalidades e capacidades das diferentes esferas estatais e não estatais que articulam as dinâmicas sociais em jogo: econômicas, financeiras, de serviços, obras públicas, saúde, educação, justiça e direitos.
A maneira de enfocar a política e seus múltiplos exercícios cidadãos, institucionais, normativos e participativos, possibilita considerar e avaliar seus alcances e potenciais de democratização, que em nossas realidades do sul global – sul-americanas, africanas e asiáticas – são impulsionadas pelo propósito de promover a descolonização e, portanto, relacionadas a um chamado radical para repensar e reelaborar os paradigmas e conceitos com que nos habituamos a denominar nossas realidades e seus horizontes.
Ainda que tenhamos de contemplar o rápido crescimento dos setores conservadores, que se autodeclaram de “direita” na região, as eleições no Chile, as próximas na Argentina e no Brasil, nos dão sinais de que há pressa em estabelecer e consolidar medidas que fortaleçam a mudança geopolítica da região, os chamados “governos progressistas ou de esquerda”. Provavelmente ainda estamos por conhecer uma nova estratégia conservadora de integração regional para fazer frente às iniciativas lançadas nestes últimos anos que buscam alternativas frente à crise, já não só do sistema, mas da própria civilização capitalista.
A partir dessa perspectiva de descolonização se organizarão as agendas sobre energia, meio ambiente e aquecimento global, e também sobre os direitos dos povos e das nações indígenas, agendas articuladas com a necessidade de enfrentar as desigualdades, discriminações e injustiças tanto no sul como no norte global. E também a pressa para blindar como hegemônica a liderança e o governo de Evo Morales diante da possível falta de apoio e de solidariedade na região.
De todo modo, é necessário avaliar cuidadosamente a guinada centrista e industrialista como tática da consolidação do processo de mudança, alteração que não é meramente de discurso, já que existem ações que implicam a definição da orientação do processo. Ou não se debaterá a orientação?
As reiteradas menções no discurso de posse do Vice-presidente e do Presidente, há poucos dias, sobre seu declarado anticapitalismo e seu horizonte socialista, silenciaram o amplo espectro de alternativas que se debatem, como a emergência de outros horizontes, horizontes de vida e de civilização, do viver bem e da construção do coletivo.
O socialismo, por mais retificado e ideal, foi desnudado por sua implacável lógica produtiva e, finalmente, funcional ao sistema capitalista. O muro foi derrubado pelas ações coletivas, e os chineses trabalham com muita disciplina para atender ao nosso apetite insaciável de consumo. Cuba – nossa incerteza e indecisão – é novamente uma ilha para pensar e atuar politicamente.
De que salto estamos falando?
Estamos diante de um dilema entre vida e capitalismo, sem cair em dramatismos e nem em tons apocalípticos, porque as consequências e os efeitos do sistema estão contínua e persistentemente presentes em nossa vida cotidiana. Ou, como já disse um pensador, a origem está diante de nós. Não temos que indagar nem rastrear raízes e fontes para entender o mal-estar da civilização.
Estamos frente a ele e as respostas, talvez, também estejam aqui, aninhadas e resistindo, esperando o momento, a oportunidade, o porvir… Defender e cultivar a vida significa assumir plenamente, em todas as suas consequências, a diversidade do que vive, o pluralismo inerente a todas as formas de vida e do vivo.
Estaremos diante de uma nova fase de modernização e de um salto industrial, porque a conjuntura da divisão social do trabalho nos dá a oportunidade de uma aposta espetacular no mercado de preços dos recursos naturais em um período cíclico mais ou menos breve? E ensaiaremos, uma vez mais, uma industrialização que responde a uma fase anterior das modernizações, porque indubitavelmente o chamado “salto” está hoje em outros setores da cadeia de produção e distribuição e nas mudanças das matrizes energéticas, aprofundando assim nossos abismos produtivos e ampliando as dependências?
A preocupação é que estejamos diante de uma nova fase de modernização a partir de um modelo produtivo extrativo que determina as outras economias existentes. E, principalmente, dá alento a uma profunda expansão das lógicas capitalistas, tocando fronteiras até agora alheias ou resistentes à sua dinâmica.
Mas também podemos assinalar, no horizonte do processo de mudança, o aprendizado e a formulação dos movimentos sociais e indígenas como produção do coletivo da vida e para a vida, o viver bem. Como estabelece em seus princípios a Constituição Política do Estado, o propósito é pluralizar os modos de produção econômica existentes e garantir o seu desenvolvimento e crescimento para fortalecer as capacidades de se ampliar as alternativas à lógica capitalista de acumulação.
Desafios que não podem ser tratados no marco “nacional” de economias, no território doméstico, mas que podem ser potencializados e fortalecidos pelo desempenho geopolítico, ou seja, regional.
Se o principal antagonismo que nossas sociedades enfrentaram durante o século XX se deu entre capitalismo e democracia, hoje em dia ele se dá entre capitalismo e vida. O que nos leva diretamente ao centro da encruzilhada dos horizontes: a política. Qual política está em jogo? Qual política estamos colocando em jogo?
Retomo aqui apenas duas heranças, por uma economia de argumentação, mas também porque são as tendências latentes do processo de mudança. Elas foram muito explícitas e visíveis em todo o processo constituinte boliviano ao debater sobre o Estado e o caráter de constituição política a que se aspira.
Por um lado, a política é direção e condução, ou, mais simplesmente, ordem e obediência ao comando. Esta é uma longa tradição sobre a autoridade e a hierarquia, ou, melhor dito, sobre a usurpação e o monopólio do mando, e uma infinidade de reflexões sobre a disciplina e o poder. A política é uma questão de mando e direção ou, dirão outros, uma arte da dominação.
Por outro lado, existe também uma herança – talvez mais subterrânea, mas não menos antiga – na qual a política se dá entre iguais e a luta para reconhecerem-se como iguais se dá entre distintos e diferentes, nunca os mesmos ou idênticos, pois aqueles estão marcados pela sua origem plural e seu devir plural. Então, a política é o espaço para disputar e dirimir suas diferenças, desigualdades e partes que os fazem formar um incessante todo, uma totalidade nunca acabada, uma incompletude aberta.
Então, onde nos encontramos? Qual política está em jogo? Quais posições encontramos na encruzilhada? Que posição tomaremos?
Neste momento de transição constitucional é uma responsabilidade pensar, atuar e fazer coletivamente para produzir o que é comum a todos e acrescentar o plural, sinais do vivo e da vida.
*Oscar Vega Camacho é membro do Grupo Comuna. Foi colaborador da Representação Presidencial para a Assembleia Constituinte da Bolívia (REPAC). Publicou diversos ensaios políticos e tem uma coluna no jornal estatal Cambio.