O desafio das redes de defesa e garantia de direitos na Amazônia
A grande maioria das cidades da Amazônia brasileira encontra-se alijada de muitas políticas governamentais em execução no país. Elas são excluídas ou secundarizadas, o que priva suas populações do acesso a bens, serviços e equipamentos públicos importantes para lhes garantir boa qualidade de vidaAldalice Otterloo
(Casa flutuante na região de Manaus)
Um dos grandes desafios para o enfrentamento das desigualdades sociais hoje no mundo é construir mecanismos de interlocução entre as organizações e entre governo e sociedade. Redes e fóruns são novas formas de articulação de atores diversos, de relacionamento interinstitucional e de organização, expressando uma nova concepção de ação política e estratégica para a defesa de direitos.
Numa região continental como a Amazônia, os protagonistas do modelo desenvolvimentista globalmente imposto tornam-se cada vez mais potentes e capazes, superando a complexidade das distâncias geográficas, da diversidade de biomas e povos da floresta. Alimentam com eficácia a espoliação cada vez mais ampla dos recursos naturais, promovem as mudanças climáticas e intensificam a violação de direitos dos povos amazônicos, pois atuam segundo o princípio da desigualdade e, portanto, da subordinação da região e seus povos aos interesses hegemônicos no Brasil e no mundo.
As redes contestadoras desse modelo desenvolvimentista hegemônico buscam corresponder, como formato organizacional e interativo, a novas utopias de democracia: relações de caráter mais solidário, mais horizontalizadas, mais abertas ao pluralismo, à diversidade e à complementaridade, em consonância com uma nova ética política, transnacional, que vem sendo gestada.1 Essa nova concepção da ação política e cidadã tem muitos nomes e tipos, com maior ou menor grau de institucionalização, e constitui-se como redes temáticas, de informação e de reflexão, de intercâmbio de experiências, entre outras.
Para Manuel Castells,2 uma rede é “um conjunto de nós conectados, e cada nó, um ponto onde a curva se intercepta. Por definição, uma rede não tem centro, e ainda que alguns nós possam ser mais importantes que outros, todos dependem dos demais na medida em que estão na rede”.
Por ser um espaço coletivo amplo que, por natureza de sua organização, se submete à conjuntura política e à dinâmica de suas entidades-membros e seus interesses, a rede é um tipo de organização que vem ganhando cada vez mais importância num mundo complexo e inter-relacionado, dominado por um capitalismo cada vez menos industrial e cada vez mais informacional e financeiro, e onde temáticas locais e regionais se submetem necessariamente às nacionais e internacionais ou globais.
Porém, essa ponte entre o global e o local que buscamos para construir uma sociedade de fato democrática, expressa na vivência de igualdade de direitos, é um desafio cada vez mais urgente. Para que uma rede dê conta de seu propósito, é necessário que seus fios sejam fortalecidos, ou seja, que as entidades-membros se apropriem dessa missão e desse propósito e sejam partícipes dessa construção, para garantir novas formas de integração dos sujeitos envolvidos nos processos, fortalecendo uma cultura de direitos.
Todo esse esforço para que a democracia igualitária se fortaleça exige a construção de formas de participação e articulação interinstitucional que possam contribuir para dinamizar e consolidar movimentos de resistência. É preciso superar as divergências internas estimuladas pela pressão da concepção desenvolvimentista hegemônica, que na Amazônia se evidencia principalmente pelos grandes projetos de infraestrutura, de exploração mineral e da monocultura do agronegócio. De outro lado, é importante estimular o resgate das diversas experiências de outros modos de produção e convivência em curso no Brasil e na Amazônia, baseados na agroecologia, na segurança alimentar e nutricional, consolidando elementos de um desenvolvimento que atenda às reais necessidades humanas, e não exclusivamente às do mercado.
Fomentar essa cultura de rede de direitos iguais exige necessariamente compreender o sentido e o significado das redes para o fortalecimento da democracia e de uma sociedade que respeite a dignidade de cada ser humano, independentemente de cor, gênero, crença, raça, orientação sexual, priorizando a defesa e valorização da vida e a sociobiodiversidade.
A rede é o contrário da hierarquia, e capacidade de operar sem ela é uma de suas mais importantes propriedades distintivas. Em outras palavras, a teia da vida é formada por redes dentro de redes. Em cada escala, sob estreito e minucioso exame, os nodos da rede se revelam como redes menores.3
A dinâmica de rede é a produção das conexões. A rede existe pela realização contínua das conexões apenas na medida em que ligações estejam sendo estabelecidas. Uma rede pode ter muitos níveis, camadas, círculos, dimensões. As redes se interpenetram e se combinam.
A maioria das redes de organizações da sociedade civil tem como objetivo favorecer a circulação e a troca de informações; o compartilhamento de experiências; a colaboração em ações e projetos; o aprendizado coletivo e a inovação; o fortalecimento de laços entre os membros; a manutenção do espírito de comunidade; e a ampliação do poder de pressão do grupo pela defesa de direitos e exercício da cidadania ativa, fortalecendo a democracia e a participação social no controle da gestão pública.
A rede funciona quando age como um todo, um organismo, uma só “entidade”, mediante a participação de todos (ou de muitos), inclusive para garantir sua sustentabilidade política e financeira. Cada integrante da rede recebe um investimento de confiança e poder. Todo o poder da rede converge para cada nó, conforme as circunstâncias. Mas isso depende dos processos de comunicação. A articulação das múltiplas lideranças e a devida coordenação de suas ações diferenciadas só é possível mediante a troca de informação. A comunicação é o elemento regulador do sistema. A democracia é a base da desconcentração de poder, do respeito à autonomia, à diversidade e à multiliderança. É por meio da via democrática, da coordenação, da cogestão e da codecisão que a rede “controla” as ações que realiza. O autogoverno na rede é possível porque ela é, antes de mais nada, uma “comunidade de propósitos”. E é esse propósito que fornece a essência da ação.
Entretanto, mesmo no nosso caso, como redes de direito com compromisso, com identificação de propósitos e clareza de objetivos, é preciso mobilizar recursos para garantir seu funcionamento como sujeito político na luta pela democratização da sociedade, na promoção e defesa de direitos, e no combate a todas as formas de desigualdade, discriminação e violência. Recursos que permitam a produção de conhecimentos e o fortalecimento institucional de seus integrantes, em favor de políticas públicas inclusivas e sustentáveis sob todos os aspectos (ambiental, social, econômico e cultural). Para chegar a essas propostas é preciso realizar a crítica radical ao modelo hegemônico de desenvolvimento no Brasil e, especificamente, na Amazônia.
Uso e controle de territórios
A Amazônia tem sido palco de grandes disputas quanto ao acesso, uso e controle de territórios. Hidrelétricas, portos, aeroportos, hidrovias, rodovias, gasodutos, sistemas de comunicação, redes de energia e postos de fronteira estão sendo introduzidos para garantir a expansão acelerada do capital em nossa região, cujos impactos socioterritoriais têm sido nefastos às populações tradicionais e outros segmentos, em particular mulheres, jovens, indígenas e quilombolas.
Denúncias de operários submetidos a condições análogas à escravidão, violência sexual, prostituição de adolescentes, disseminação do consumo de drogas, particularmente do crack, assassinatos e outras formas de violência são comumente registrados nas áreas onde estão sendo executados os empreendimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). É o que ocorre, por exemplo, nas regiões impactadas pelas hidrelétricas Santo Antônio e Jirau no Rio Madeira, em Rondônia, e em Belo Monte, no Pará.
No Pará, o índice de homicídios de crianças e adolescentes cresceu mais de 350% na última década, passando de 4,3 no ano de 2000 para 19,2 assassinatos a cada 100 mil pessoas em 2010. O Mapa da Violência do Ipea, de 2012, aponta que mais da metade dos óbitos juvenis registrados no Estado foi causada por assassinatos, que não estão mais restritos aos grandes centros urbanos, mas seguem a tendência nacional de interiorização.
Comunidades de agricultores familiares, quilombolas e ribeirinhos convivem com ambíguas políticas governamentais que, de um lado, promovem o fortalecimento da produção de base familiar e, de outro, fomentam o avanço do monocultivo do dendê e de outras oleaginosas, por meio do Programa Federal do Biocombustível, provocando dessa forma conflitos fundiários e agrários permanentes, exclusão social, violência, marginalização, assalariamento da agricultura familiar, bem como surgimento de pequenos empresários agrícolas disputando espaço com agricultores familiares.
Em relação às cidades da Amazônia brasileira, a grande maioria encontra-se alijada de muitas políticas governamentais em execução no país. Elas são excluídas ou secundarizadas, o que priva suas populações do acesso a bens, serviços e equipamentos públicos importantes para lhes garantir boa qualidade de vida, atingindo violentamente as juventudes tanto rural quanto urbana.4
A força acentuada da globalização torna cada vez mais necessário um enfrentamento em nível local, regional, nacional e internacional. A atuação em escala hoje é indispensável e deve ser desenvolvida essencialmente pela construção das redes sociais em defesa dos direitos. Infelizmente, neste exato momento decisivo de enfrentamento, as organizações sociais que estão compondo e/ou deveriam compor essas redes estão se enfraquecendo por falta de condições objetivas de sustentabilidade, seja pelo recuo da cooperação internacional, seja pela criminalização dessas organizações pelos governos, que as tratam como se fossem clandestinas, corruptas.
A resistência do governo brasileiro em negociar um marco regulatório de acesso a fundos públicos por entidades de defesa de direitos, que visam ao fortalecimento da sociedade civil e o controle social do Estado, nos faz pensar que, apesar dos avanços conquistados a partir dos princípios democráticos e da luta contra a ditadura nas décadas passadas, os interesses do capital ainda prevalecem na atual conjuntura. Cresce na Amazônia a disputa territorial, que se traduz também numa disputa entre concepções, entre propostas, entre projetos de sociedade.
Buscar se articular para mudar a parte dura dessa realidade e fortalecer as redes que lutam por justiça (Associação Brasileira de ONGs – Abong, Fórum da Amazônia Oriental – Faor, Fórum da Amazônia Ocidental – Faoc, Grupo de Trabalho Amazônico – GTA, Fórum de Mulheres, Fórum dos Direitos da Criança e Adolescente – DCA, entre outras) e por uma cultura de direitos é um bom caminho. Mesmo fragilizadas, essas redes de organizações ainda resistem, mas sem muito fôlego para ações de impacto. O que lhes dá força são as entidades e movimentos que as integram.
Há, na floresta amazônica, ações de resistência por parte especialmente dos povos indígenas e das comunidades quilombolas em sua determinação de defender suas terras, sua cultura e sua vida. Elas esperam a solidariedade de todos aqueles que, no plano internacional, nacional e da Amazônia, se somam na luta por sociedades justas, democráticas e sustentáveis.
Aldalice Otterloo é Educadora e coordenadora-geral do Instituto Universidade Popular e membro da coordenação executiva do Fórum da Amazônia Oriental (Faor).