O Dilúvio de Al Aqsa e a assimetria bélica na Faixa de Gaza
A possível escalada do conflito pode dar início a uma guerra convencional. Até o momento, o que pudemos observar foi um verdadeiro massacre, quase que unilateral
Vivemos um risco real de agravamento das tensões no Oriente Médio. A possibilidade de novos atores adentrarem nos conflitos, a exemplo do Irã, levanta a possibilidade de uma escalada cujas consequências são difíceis de serem mensuradas.
Qualquer analista de política internacional, ao se deparar com eventos de grandes magnitudes, buscaria começar suas explicações pelo início. Mas quando é o início? No dia 7 de outubro de 2023, o mundo observou uma ação ofensiva do braço armado do Hamas sobre os territórios israelenses. Imediatamente, foram divulgadas inúmeras reportagens condenando tais ações e classificando-as como um evento terrorista. Essa “ação inicial”, legitimou, aos olhos dos Estados ocidentais e da grande imprensa internacional, uma “reação legítima”, justificada na busca aos reféns (israelenses e de outras nacionalidades) e principalmente na caçada implacável aos chamados terroristas.

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Essa reação, convencionou-se chamar de: Guerra Israel x Hamas. Contudo, não parece sensato aceitar acriticamente esta denominação, ao considerar que o Estado de Israel esteja combatendo apenas um grupo, enquanto toda a região de Gaza encontra-se submetida a bombardeios que atingem escolas, hospitais e civis de forma indiscriminada. A imprensa noticiou diversas vezes o disparo de bombas de 907 kg – maior volume desde a Guerra do Vietnã – que possuem capacidade de abrir verdadeiras crateras no solo em uma região com uma enorme densidade populacional, além de bombardeios a escolas e hospitais.
Também não parece ser sensato chamar de guerra um conflito tão assimétrico e com um número absolutamente desigual e desproporcional de mortos para cada lado. Isso sem levar em consideração que apenas um lado possui programas de defesa como o sistema antimíssil Arrow e o famoso Domo de Ferro (Iron Dome). Em outras palavras, nas raras vezes em que ataques aéreos são feitos contra Israel, os projéteis são imediatamente destruídos pelos eficazes interceptadores hipersônicos, enquanto os palestinos recebem diariamente bombardeios sobre suas cabeças.
A assimetria bélica pode ser observada no processo de militarização da Inteligência Artificial (I.A.). Diversos dispositivos tecnológicos como: veículos não tripulados (Uncrewed vehicles), satélites de observação, além de aeronaves com sofisticados sistemas de alerta (Hawkeye), têm sido amplamente utilizados. Softwares de inteligência artificial como o “Lavender” e o “Evangelho” fazem parte do cotidiano dos palestinos. Os programas estão relacionados ao uso de tecnologias para monitoramento e controle na Faixa de Gaza. Trata-se de uma ferramenta de vigilância usada para identificar e rastrear indivíduos em Gaza com base em dados encontrados de várias fontes, como câmeras de segurança, sistemas de reconhecimento facial, drones e comunicações digitais. Contudo, o que chama mais atenção é o software chamado “Onde está o papai?” (Where’s daddy?) que pode estar relacionado com o grande número de “suspeitos” bombardeados dentro de suas casas, juntamente com seus familiares. Se isso realmente pode ser chamado de guerra, trata-se de uma guerra assimétrica e colonialista, uma vez que um lado controla, subalterniza e subjuga o outro. Esse debate sobre privacidade, militarização da inteligência artificial e seu impacto sobre a população civil palestina precisa ser travado com urgência.
Se quisermos nos ater à questão do sequestro, temos de considerar o sequestro da militante palestina Ahed Tamini, presa sem mandado pelas forças de segurança de Israel para interrogatório, ou ainda Wisam Tamimi, preso na Cisjordânia sem acusação formal. Israel segue julgando crianças e adolescentes em tribunais militares. Desde os anos 2000, cerca de 13 mil menores palestinos foram detidos, interrogados, julgados e presos em Israel. Vale lembrar que na contagem oficial de ataques terroristas, o governo de Israel inclui o arremesso de pedras por parte de crianças.
O que se observa em larga escala pelos analistas internacionais do mainstream, é considerar a ação de Israel como uma reação, ignorando a perspectiva árabe. Ignora-se que os atos do dia 7 de outubro, são denominados pelos palestinos como Dilúvio de Al Aqsa, em uma analogia à mesquita de mesmo nome, invadida e atacada por Israel em diversas oportunidades, mesmo em períodos de paz, lavando a morte de centenas de palestinos no passado.
Também se ignora, que o Dilúvio de Al Aqsa seja uma resposta a outros massacres passados. Neste sentido, cabe uma reflexão final: não teria o Dilúvio de Al Aqsa sido orquestrado para o dia 6 de outubro de 2023, data exata do aniversário de 50 anos da Guerra do Yom Kippur (iniciada em 6 de outubro de 1973) e isso esteja sendo ignorado pelos analistas internacionais e abordado simplesmente pela data de propagação e/ou divulgação como 7 de outubro, desconsiderando a história e narrativa árabe? Não deveríamos pensar, ao menos, no caráter simbólico desta data? Não se trata de um rigor desmedido ou um preciosismo em função da diferença de apenas um dia, e sim de um secular processo de apagamento das histórias e vivências do povo palestino, por parte do ocidente.
A possível escalada do conflito, com a entrada do Irã, pode dar início a uma guerra convencional, pois, até o momento, o que pudemos observar foi um verdadeiro massacre, quase que unilateral, se considerarmos os números absolutos de mortes para ambos os lados. Até o presente momento, aproximadamente 40 mil palestinos foram mortos, em maioria mulheres e crianças – quase 2% da população de Gaza. Fica aqui um apelo humanitário por um cessar-fogo total e imediato. Neste momento, a cidade de Gaza se enquadra perfeitamente nas palavras de Frantz Fanon: “é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão e de luz. A cidade do colonizado é uma cidade acocorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade de árabes” (FANON; 1968 p. 29).
Juan Filipe Loureiro Magalhães é professor, historiador e internacionalista. Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).