O fator Bolsonaro e seu significado nas eleições municipais
A capacidade de Bolsonaro em influenciar as eleições municipais é difícil de medir, mas uma combinação de resultados de surveys e de pesquisas qualitativas ajuda a iluminar o que está ocorrendo
O assunto mais recorrente nos comentários sobre as eleições municipais tem sido o fator Bolsonaro. Ele pode ser pensado de duas maneiras: em primeiro lugar, pela eficácia do presidente em produzir efeitos eleitorais para os candidatos a prefeito que apoia Brasil afora, em segundo, por seu significado como sinalizador de tendências para as eleições de 2022.
Neste texto examinaremos o primeiro aspecto. Desde o começo da campanha, muito se especulou sobre a capacidade de Bolsonaro em influenciar as eleições municipais em favor dos candidatos de sua preferência. Tal influência de fato é difícil de medir, mas uma combinação de resultados de surveys e de pesquisas qualitativas ajuda a iluminar o que está ocorrendo.

Tomemos as duas maiores cidades do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro, como exemplo. A primeira é a capital do estado natal do presidente e que mais votos rendeu para sua vitória em 2018, a segunda é seu domicílio e base eleitoral atual. Em São Paulo, Celso Russomanno (Republicanos) reclamou o apoio de Bolsonaro no primeiro momento da campanha. Segundo as pesquisas do Datafolha, o candidato começou liderando a corrida, com 29% das intenções de voto no final de setembro, e acabou ficando em quarto lugar, com 10,5% de votos válidos. É importante notar que essa é a terceira vez que Russomanno tem esse tipo de desempenho: começa liderando e acaba não indo para o segundo turno. A queda recente de popularidade do presidente no Sudeste, inclusive em São Paulo, certamente não ajudou o candidato. A campanha de Russomanno deletou todos os traços do apoio presidencial, mas isso não foi suficiente para estancar a queda. Em suma, ainda que não possamos mensurar as diversas causas do mal desempenho de Russomanno, o fator Bolsonaro, se houve, não foi suficiente para preveni-lo.
No Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos) também foi apoiado pelo presidente, com a diferença de que o ex-bispo da Universal agarrou-se ao patrocínio de Bolsonaro até o final da campanha, irmanados em nome de Deus, como os spots de TV não cansaram de repetir, enquanto ao fundo se ouvia o refrão do jingle: “Aleluia porque a guerra continua”. Se é possível uma comparação entre as estratégias de campanha adotadas pelos candidatos apoiados por Bolsonaro nas duas cidades, retirar ou não menções ao apoio no meio da campanha não surtiu efeito.
Mas a diferença entre Crivella e Russomanno não se restringe à estratégia de campanha. O candidato paulista é um homem de mídia sem qualquer experiência administrativa, enquanto Crivella está tentando a reeleição após uma gestão catastrófica. Crivella começou com 14% das intenções de voto no começo de outubro, flutuou em torno dessa marca até a última pesquisa e conseguiu subir a 21% nas urnas. Esse patamar baixo no início se deve à má avaliação de sua gestão, que é patente nas pesquisas qualitativas sobre a eleição e tem reflexo direto no seu índice de rejeição, de 62%, o dobro do segundo colocado mais rejeitado, que é Eduardo Paes (DEM). Crivella conseguiu chegar ao segundo turno, depois de ser acossado nas pesquisas por Martha Rocha (PDT) e Benedita da Silva (PT). Mas tal façanha deve ser creditada menos ao apoio do presidente e mais à fidelidade do eleitorado evangélico e ao esforço de seus pastores em arrebanhar votos – ação fundamental uma vez que o nível de abstenção na cidade do Rio de Janeiro foi de um terço do eleitorado!
Os números falam por si. Dos doze candidatos a prefeito apoiados por Bolsonaro em suas lives, ao longo da campanha, apenas quatro foram eleitos ou passaram para o segundo turno. Um desses candidatos “vencedores” foi Crivella, que tem grande probabilidade de perder de lavada no segundo turno contra Eduardo Paes. As outras vitórias do presidente foram Mão Santa (DEM) em Parnaíba (PI), Gustavo Nunes (PSL) em Ipatinga (MG) e Capitão Wagner (PROS), em Fortaleza, que terá bastante dificuldade de vencer Sarto (PDT), apoiado por aliança entre seu partido e o PT de Luizianne Lins, terceira colocada no pleito. O fracasso político de Bolsonaro foi certificado por ele mesmo, ao deletar de sua conta do Facebook post que havia feito na véspera da eleição, indicando a lista de políticos apoiados.
Mas porque será que o fenômeno eleitoral Bolsonaro testemunhado em 2018, que inclusive ajudou a catapultar via coattail effect candidatos desconhecidos como Wilson Witzel (RJ) e Romeu Zema (MG) ao governo de seus estados e a eleger uma gorda bancada de deputados do PSL na Câmara, não está se mostrando eficaz na campanha de 2020?
As causas prováveis são muitas. Primeiramente, não há coattail effect dessa vez, pois Bolsonaro não participa diretamente da disputa. O eleitor teve, portanto, que ir à urna convencido de que o candidato escolhido seja de fato apoiado pelo presidente em uma eleição da qual ele não está na “cédula”.
Outro fator é a maneira hesitante e tíbia com a qual Bolsonaro prestou apoio aos candidatos. O caso de Crivella chegou a ser inusitado, com o presidente liberando o voto do eleitor carioca e elogiando Eduardo Paes em vídeo gravado dois dias antes de Crivella fazer-lhe visita de campanha para gravar apoio. No vídeo resultante dessa visita, o único de fato que Bolsonaro fez para a campanha, postado ad nauseam nos spots do ex-bispo, vemos o presidente com cara constrangida, falando mecanicamente palavras vagas sobre Deus e a pátria para um Crivella obsequioso. Para aumentar a confusão cognitiva do eleitor, é preciso notar que dois outros candidatos na eleição carioca se apresentavam como apoiados por Bolsonaro: o deputado Luiz Lima (PSL) e a juíza Glória (PSC).
Devemos também levar em conta a natureza diversa das eleições municipais, em relação à nacional majoritária. Bolsonaro se elegeu com um discurso fortemente calcado em valores e em slogans abstratos, genéricos, explorando a imagem de outsider da política partidária. Nas eleições municipais, e isso todo grupo focal mostra, os eleitores estão preocupados com questões concretas da cidade. Na de 2020, a saúde é de longe o tema mais importante, seguido pela educação, transporte e segurança. Bolsonaro não teve propostas concretas nessas áreas quando era candidato e não se preocupou em construí-las depois de eleito. Em outras palavras, tem muito pouco a oferecer de suporte a seus candidatos nesses temas candentes.
Por fim, Bolsonaro não investiu na construção de um partido político. Concorrendo pelo PSL, o ex-capitão obteve enorme votação e ajudou a eleger três governadores, quatro senadores e 52 deputados federais em 2018. Da noite para o dia o PSL foi de partido nanico a uma das mais importantes agremiações partidárias do país. Contudo, Bolsonaro acabou rompendo com governadores que se associaram a ele para se eleger, acumulou inúmeras rusgas com políticos e a burocracia de seu partido, e terminou por deixar a legenda em novembro de 2019, permanecendo até o momento sem partido. Dado o imenso capital político e eleitoral que amealhou no pleito de 2018, sua incapacidade de colher assinaturas suficientes para criar a Aliança pelo Brasil só pode ser produto de falta de determinação. Tudo indica que Bolsonaro não quer partido. É claro que essa atitude reforça sua imagem de inimigo da velha política, a qual ele luta para preservar mesmo depois de se associar ao centrão a fim de prover o Executivo com um mínimo de governabilidade e de escapar de potenciais processos de impeachment.
O milagre da vitória eleitoral sem estrutura partidária, operado pelo ex-militar em 2018, não foi replicado nas eleições deste ano pelos candidatos apoiados por Bolsonaro e nem por outros outsiders. No contexto municipal, partidos políticos parecem ainda preservar funções importantes no processo de convencimento do eleitorado. Ademais, o tamanho das bancadas das agremiações na Câmara dos Deputados é variável fundamental para determinar o montante de verbas do fundo eleitoral e o tempo alocado ao candidato no horário gratuito da propaganda eleitoral (HGPE) – importante meio de comunicação com o eleitor em cidades maiores que têm transmissão própria de televisão. O efeito das redes sociais, tão sentido em 2018, parece ter esmaecido, seja devido às regulações mais estritas das empresas que prestam esse serviço ou à maior precaução da população em relação às fake news.
Reza o chavão de que na política não há vácuo. De fato, partidos de direita tradicional, como DEM, PP, PSD, PSDB, e o recém-convertido MDB, se beneficiaram do espaço deixado por Bolsonaro, capturando votos de eleitores conservadores e antipetistas.
Se o ex-capitão se compraz em se apresentar como campeão na luta contra a velha política, suas opções e ações concretas estão produzindo exatamente o efeito oposto: a volta de partidos bastante tradicionais ao poder municipal no país. Diga-se de passagem, tais partidos são exatamente aqueles que podem acirrar a competição eleitoral em 2022 por votos no campo da direita. Mas, como dissemos, esse assunto fica para artigo futuro.
João Feres Júnior é cientista político na Poliarco Inteligência Política. Professor e diretor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), doutor em Ciência Política pela City University of New York, Graduate Center, e coordenador do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) e do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA).