O fetichismo da mercadoria e a China
Fomos todos vendidos. Só na aparência é o consumidor que é consumista, pois é a mercadoria que consome o ser humano no processo de produção e no consumo
Um rei em Nova York
Em Um rei em Nova York, que Chaplin produziu em resposta ao macarthismo, o rei deposto pergunta ao menino prodígio o que ele está lendo. “Karl Marx”, responde o menino. “Certamente você não é comunista?” indaga perplexo o rei. “Eu tenho que ser comunista para ler Karl Marx?” e segue um veemente discurso libertário do nosso pequeno leitor.
A partir dos estudos de Adam Smith e David Ricardo, Marx empreendeu a análise da economia capitalista como um sistema. A questão não era meramente a lógica dos capitalistas, ou mesmo a lógica do capital ou do dinheiro, mas a lógica da aparentemente inocente mercadoria, que subordina as pessoas, as relações sociais e todas as instituições, sendo, apesar de sua aparência inocente, simplesmente selvagem. Em O fetichismo da mercadoria (O Capital, LI:1.4), Marx afirma que, em uma sociedade mercantil, prevalecem relações materiais entre as pessoas e relações pessoais mediadas por coisas: as mercadorias.
O conceito de alienação derivado do fetichismo da mercadoria extrapola o conceito de alienação dos trabalhadores de seus meios de produção e vida em vigor em uma economia capitalista, onde os trabalhadores são livres para escolher entre se submeter ao capital ou cair na mendicância. Particularmente, para o sistema, pouco importa quem personifica o capital, se é um capitalista, tecnocratas a serviço de acionistas anônimos ou mesmo os próprios trabalhadores organizados em cooperativa.
Marx vislumbrou nos movimentos operários de meados do século XIX, a superação do capitalismo e teorizou a “Lei de Tendência” à queda da taxa de lucro, que levaria o sistema ao seu esgotamento nas economias capitalistas desenvolvidas. O capitalismo, enquanto sistema arquitetado sobre a mercadoria, seria auto implosivo.
Para o filósofo, o valor das mercadorias era mensurado na mercadoria dinheiro, dentro do padrão-ouro adotado pela Inglaterra, o país capitalista então hegemônico. No decorrer do século XIX, o valor das mercadorias, mensurado em dinheiro, efetivamente caía com o aumento da produtividade (deflação), o que sustentava a afirmativa de que o aumento da produtividade reduzia o valor das mercadorias, atravancava e atrofiava o processo de acumulação do capital. Contudo, a partir do século XX, com a quebra do padrão-ouro e a constituição do novo padrão administrado por bancos centrais e política monetária, o valor das mercadorias mensurado em dinheiro deixou de cair, até passou a subir (inflação), mesmo com o aumento da produtividade. Ou seja, a partir do século XX, o aumento da produtividade não leva mais à redução do valor das mercadorias mensuradas em dinheiro; e a produção (o fluxo de renda, trabalho vivo) não mais necessariamente decresce em relação ao estoque de capital (trabalho pretérito). A acumulação do capital ganhou flexibilidade, revogou a “Lei de Tendência” à queda da taxa de lucro, o capitalismo deixou de atravancar o desenvolvimento das forças produtivas e o sistema deixou de ser auto implosivo.
Depois da morte de Karl Marx, Friedrich Engels introduziu o conceito espúrio de aburguesamento da classe operária inglesa, decorrente da exploração imperialista dos proletários nos países periféricos. Vladimir Lenin, por fim, introduziu a exótica Teoria do Imperialismo e da revolução socialista nos países periféricos, o elo fraco do imperialismo, fase superior do capitalismo. A não concretização da profecia de Marx (socialismo no capitalismo de ponta, desenvolvido) deu margem ao “comunismo dos pobres”, à revolução liberal tardia e “socialista” precoce na Rússia e, na sequência, na China.

O fetichismo
Voltemos ao fetichismo e à mediação das relações sociais pela mercadoria, que, soberana, submete e nos aliena a todos. A mercadoria, em seu processo de generalização, invade todos os espaços, todos os nichos, fisga um a um, aprisiona, cria novos produtos e necessidades inúteis que atingem o status de essenciais. A mercadoria também sempre justifica o progresso técnico, escondendo-se atrás do dever de atender as necessidades dos pobres, eternamente mantidos pobres para que continuem justificando o progresso. Os pobres estão fadados a passar necessidades básicas em meio à opulência e ao desperdício dos ricos, que vivem cercados por uma parafernália de produtos supérfluos. E o império da mercadoria transborda as relações produtivas e transforma tudo em mercadoria, até florestas, montanhas e rios (Ailton Krenak que o diga).
Além disso, a mediação das relações sociais pela mercadoria acabou por atomizar a sociedade em indivíduos “livres”, em efetivo isolamento social. Somos todos livres, todos articulados pela batuta da mercadoria, que nos governa, abastece, cega e hipnotiza. Na segunda metade do século XX, a mercadoria já havia nos transformado em uma sociedade de consumo, mas agora nos transformou em uma sociedade em que, muito melhor do que consumir, é sair comprando tudo que está a nosso alcance, até mesmo sem sequer sair de casa. Ser livre, exercitar o livre-arbítrio, é poder escolher um dos 30 sabores expostos nas vitrines das sorveterias, uma entre as 70 combinações de pizzas do extenso cardápio online e vasculhar a Amazon.com em busca da felicidade. No limite, a generalização da mercadoria leva todas as pessoas a se transformarem em agentes econômicos autômatos a seu serviço.
Vladimir Safatle faz referência ao processo de socialização no capitalismo neoliberal contemporâneo, que reduziu toda relação social à figura da concorrência e da competição e implodiu as relações elementares de solidariedade. Tudo vira mercadoria. Até o mal-estar provocado pela sociedade mercantil que nos aliena a todos pode ser comercializado. A psicologia e a psiquiatria apressam-se em criar categorias e diagnósticos clínicos para “tratar” as pessoas que apresentam sofrimentos psíquicos decorrentes do isolamento social derivado do processo de alienação sistêmica.
Apanhe um ônibus, não muito vazio, mas também não muito lotado, em que todos estão ocupados em assegurar o seu espaço. Um ônibus em que as pessoas estejam sentadas, relativamente relaxadas, absortas em seus pensamentos. Note o semblante das pessoas, a grande maioria com os sulcos dos lábios caídos, indicando preocupação e frustração.
A China
Ao que tudo indica, depois da Inglaterra e dos Estados Unidos, a civilização mais antiga do mundo será a herdeira do projeto civilizatório orquestrado pela mercadoria. A China já era civilizada quando os ocidentais ainda andavam de calças curtas. Os chineses são pragmáticos e, para se vingarem da humilhação sofrida nas Guerras do Ópio em meados do século XIX, se armaram contra o ocidente com a utilização do próprio padrão ocidental mercantil.
O Partido Comunista da China atraiu o capital estrangeiro a investir e implantar unidades industriais em seu território para abastecer o mercado consumidor internacional, valendo-se da mão de obra chinesa autômata, do baixo nível de consumo de seus trabalhadores e da taxa de câmbio administrada pelo estado. E, assim, os produtos chineses ganharam o mercado mundial. Os consumidores ocidentais reclamavam que os produtos chineses eram descartáveis, mas, na prática, preferiam seguir comprando e comprando a parafernália de produtos descartáveis a baixo preço.
Os ocidentais, que tinham conseguido conquistar os direitos trabalhistas para os seus cidadãos, se refestelaram com a invasão dos produtos descartáveis da China, sem estarem minimamente interessados nas condições de trabalho e vida dos chineses que produziam essas mercadorias, quantas horas trabalhavam ao dia, qual o ritmo e segurança no trabalho, remuneração, descanso semanal a que tinham direito, férias e outros direitos trabalhistas.
O mundo ocidental abasteceu seu mercado consumidor com produtos importados da China, aniquilou o poder competitivo de sua indústria e o feitiço virou contra o feiticeiro. O Partido Comunista, com inconteste elevado grau de centralização política e controle da população, foi extremamente bem sucedido em sua administração, garantindo a satisfação de seus cidadãos. O Partido Comunista governa a China e, acima de todos, é a mercadoria que, soberana, governa o Partido Comunista.
Em suma, fomos todos vendidos. Só na aparência é o consumidor que é consumista, pois é a mercadoria que consome o ser humano no processo de produção e no consumo. O trabalhador se submete a ser um mero apêndice do processo produtivo, um comportado funcionário que se dedica à produção, em prol de gerar mercadorias que vão levar a China e o resto do mundo ao paraíso mercantil.
A alienação e a passividade que o sistema governado pela mercadoria nos impõe tendem a nos transformar todos em autômatos. E o que a vida quer da gente é coragem, dizia Guimarães Rosa. A alegria de viver transborda durante os movimentos sociais libertários. George Orwell vivenciou a solidariedade humana na Guerra Civil Espanhola, que reforçou a sua crença na decência dos seres humanos. Antonio Candido louvou os militantes que resistiram à Ditadura Militar no Brasil, esta gente intemerata que dignifica a condição humana. Os jovens das Jornadas de Junho de 2013, que ocuparam as ruas, desafiando o governo e as forças policiais, também vivenciaram a solidariedade, o desprendimento, a liberdade e a alegria de viver. A atual campanha pelo fim da jornada de trabalho 6×1 e a forma com que o movimento está sendo organizado pelos jovens trabalhadores é algo novo no horizonte que merece atenção. Melhor mesmo é a denominação do movimento, VAT – Vida Além do Trabalho.
Em dezembro de 2024, a denúncia de trabalho escravo nas obras do conglomerado chinês BYD, Company Limited na Bahia, foi amplamente divulgada pela mídia. Contudo, há quem defenda que a China, em seu ímpeto de desenvolver as forças produtivas, vai mesmo conseguir levar a classe operária ao paraíso. Por outro lado, além dos protestos contra a jornada 996, efetiva em muitas unidades, apesar de ilegal (das 9 às 21h por 6 dias, ou seja, 72 horas de trabalho por semana), surgiram outros movimentos pacíficos entre os jovens, Tang Ping (fique deitado de barriga para cima) e Bai Lan (deixe apodrecer), que já estão preocupando as lideranças políticas da China.
A China “comunista”, herdeira do projeto civilizatório orquestrado pela mercadoria, é hoje uma potência mundial em que o progresso e a riqueza convivem, lado a lado, com a crescente desigualdade social. O despotismo das autoridades governamentais e a submissão da classe trabalhadora, que bate continência ao mundo da mercadoria, ganham dimensões distópicas. E, já que adentramos no terreno da distopia, poderíamos também pensar em introduzir a utopia, vislumbrar que a China estaria fadada a ser a última etapa do capitalismo. O “comunismo” chinês, por linhas tortas, poderia enfim cumprir o seu ideal, implodir e superar o reino da mercadoria.
Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de 1968, sonhos e pesadelos.
“A mercadoria é quem consome o consumidor”