O futuro do Brasil nas operações de manutenção da paz da ONU
Em 2012, o país chegou a ocupar a 12ª posição no ranking de países contribuintes de tropas e policiais, e hoje está na 21ª colocação. Com o término da Minustah e a gradual retirada de todas as tropas, aliados à conjuntura econômica e política desfavorável no plano doméstico, é de se esperar oscilação quanto ao número de tropas brasileiras, o que deixaria o país em torno da 50ª posição
Nos últimos anos, tem aumentado de forma alarmante o número de conflitos armados ao redor do mundo – tanto as guerras protagonizadas pelos Estados quanto aquelas onde atores não estatais ocupam posições de destaque. Estima-se que, em 2015, cerca de 120 mil pessoas perderam suas vidas em conflitos armados e, desde então, milhões vêm sendo deslocadas. Vivemos a pior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, os conflitos estão se tornando mais complexos, com a atuação crescente de redes criminosas e de inspiração extremista, o que apresenta novos desafios para a sua resolução.
Embora as Nações Unidas sejam alvo de diversas críticas, a organização permanece o principal sistema existente para lidar com os conflitos armados. E, nesse contexto, as operações de manutenção da paz têm sido essenciais, em muitos casos ajudando a evitar a recorrência ou a intensificação de guerras. O mundo anda violento mesmo com a existência da ONU, mas seria bem pior sem ela.
O Brasil participa das missões das Nações Unidas desde a primeira iniciativa, na fronteira entre o Egito, Península do Sinai, e Israel em 1947/1948. Desde então, o país já participou de 47 operações de manutenção da paz, tendo contribuído durante esse período com cerca de 50 mil militares e policiais. No início do século XXI, o Brasil aumentou de maneira significativa o número de tropas sob a bandeira da ONU e tornou o seu engajamento mais estratégico, não apenas assumindo a liderança militar no Haiti (2004-presente), mas também encabeçando a Força-Tarefa Marítima no Líbano (2011-presente) e comandando o braço militar da missão na República Democrática do Congo (2013-2015), entre outras contribuições. Essa estratégia ganhou força com a criação de um centro de treinamento de militares, policiais e civis designados para atuar em missões de paz e atividades de desminagem humanitária. O hoje denominado Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB) já se tornou uma importante referência na região e no mundo.
Apesar das recentes contribuições, o Brasil hoje se encontra em uma encruzilhada. A missão no Haiti, que já passou por várias retrações, vai chegar ao fim ainda este ano, o que diminuirá a participação brasileira em operações de paz. Em 2012, o país chegou a ocupar a 12ª posição no ranking de países contribuintes de tropas e policiais, e hoje está na 21ª colocação. Com o término da Minustah e a gradual retirada de todas as tropas, aliados à conjuntura econômica e política desfavorável no plano doméstico, é de se esperar oscilação quanto ao número de tropas brasileiras, o que deixaria o país em torno da 50ª posição, faixa não tão prestigiosa já ocupada pelo Brasil nos anos 1990 e no início da década de 2000.
Diante de tal situação, o país perderia influência nos principais debates sobre segurança internacional, inclusive sobre a reforma do Conselho de Segurança, consolidação da paz e prevenção de conflitos – temas tradicionais na política externa brasileira. O engajamento nas operações de manutenção da paz é fundamental para que o Brasil participe ainda mais ativamente das discussões regionais e globais sobre segurança. A participação nas missões também fortalece a sua credibilidade e ajuda a garantir o acesso aos principais espaços normativos e políticos, inclusive sobre o uso da força e a proteção de civis. Ademais, a participação nesse tipo de operação fortalece a defesa brasileira, ao capacitar militares e policiais, por exemplo, quando os expõe a contextos e terrenos bastante desafiadores, ou quando promove o intercâmbio com outras forças armadas e com a própria ONU.
Além disso, o Brasil não tem tradição isolacionista. Como outras grandes economias em desenvolvimento, o país entende a sua responsabilidade de contribuir para a segurança internacional, tanto dentro de sua própria região quanto fora de seu entorno. Entre os princípios que regem as relações internacionais do país, segundo o Artigo 4º da Constituição Federal, estão a defesa da paz, a solução pacífica de conflitos e a cooperação entre os povos. Além disso, há forte demanda por parte da ONU e de vários países do Norte e do Sul Global para que potências regionais como o Brasil fortaleçam o seu papel no âmbito da paz e da segurança internacional.
O Itamaraty e o Ministério da Defesa continuam analisando as possibilidades de engajamento em outras missões a partir de 2018. A análise de cada caso leva em conta fatores como recursos financeiros e humanos, nível de risco às tropas brasileiras, potencial para inovação, reflexos para a defesa do Brasil, proximidade geográfica e acesso logístico. É natural que, como outros países, o Brasil considere também interesses econômicos e políticos relevantes na área de conflito. Mas é essencial que o país no mínimo mantenha ou até mesmo amplie a sua atuação em outras missões de manutenção da paz.
E não basta contribuir com números significativos de pessoal. É igualmente necessário que o Brasil fortaleça as suas capacidades a fim de contribuir de forma adequada às missões de manutenção da paz. Isso requer, entre outras melhorias, uma abordagem mais abrangente na composição das equipes brasileiras que participam de tais missões. É fundamental que as tropas militares continuem engajadas e devidamente capacitadas, mas chegou a hora de dar mais atenção à integração de outros grupos igualmente relevantes para as missões da ONU, como policiais, mulheres e civis, de maneira a contribuir para a construção de uma paz efetivamente sustentável.
No caso dos policiais, os atuais mecanismos de participação são insuficientes e anacrônicos. Por exemplo, as regras permitem exclusivamente a participação de policiais militares, que são escalados para desempenhar funções que também poderiam ser cumpridas por policiais federais ou civis. Esse tipo de restrição gera desincentivos para que policiais brasileiros participem de missões de paz. Dos 50 mil brasileiros uniformizados que já participaram de missões da ONU, apenas 422 são policiais (0,84%). Portanto, é necessário que o Brasil desenvolva novos incentivos para a participação e capacitação de seus policiais em missões de paz.
No que diz respeito às mulheres, elas participam dos quadros complementares das forças armadas brasileiras há pelo menos trinta anos. Desde 2013, mulheres também compõem a linha militar bélica nas três forças. No entanto, são extremamente baixos os números de brasileiras nas operações da ONU, girando em torno de 1%. O país deve aproveitar a oportunidade criada pelo primeiro Plano Nacional de Ação para Mulheres, Paz e Segurança, lançado em 2017, para aumentar a participação de mulheres nas operações de paz.
Quanto aos civis, o Brasil ainda não possui mecanismos que permitam identificar, preparar e enviar especialistas civis para missões coordenadas por organismos internacionais, como já é feito por vários países desde os anos 1990. Embora a maioria dos conflitos armados hoje exija missões com participação de civis em todos os níveis institucionais, do estratégico ao tático, o Brasil ainda precisa de processos que promovam maior inclusividade nas suas contribuições.
O sistema de governança global na área da segurança internacional traz benefícios para o Brasil, na medida em que promove a paz e estabilidade também em sua região e nas áreas de seus interesses. Assim, a participação brasileira em operações de manutenção da paz representa não apenas uma oportunidade, mas também garante que o país cumpra com suas responsabilidades. Se o Brasil quer ser um ator influente na paz e segurança internacional e contribuir de forma efetiva para a prevenção e resolução dos conflitos armados, precisará se manter engajado e desenvolver capacidades adequadas para os desafios enfrentados pelas missões da ONU no século XXI.
*Adriana Erthal Abdenur e Eduarda Hamann são do Instituto Igarapé.