O golpe de Estado contra os direitos
Se alguém tinha dúvidas sobre a má-fé e os objetivos reais do impeachment, os primeiros dias de governo do presidente interino foram muito didáticos.Paulo Sérgio Pinheiro
O Congresso que derrubou a presidenta Dilma Rousseff agora deita e rola na condição de herdeiro solitário do Poder Executivo. Uma tragédia anunciada para todos que defendem a democracia no Brasil. Deter esse processo de rápida degradação institucional não pode ser mais visto como um objetivo da esquerda ou de um partido; é uma questão de princípios para quem acredita na democracia.
Se alguém tinha dúvidas sobre a má-fé e os objetivos reais do impeachment, os primeiros dias de governo do presidente interino foram muito didáticos. O impeachment foi um sórdido pacto de conspiração para fuga da justiça de muitos que operaram sempre à revelia da lei. Também foi visto como melhor caminho para passar reformas que jamais teriam apoio popular e liquidar os direitos conquistados na esteira da constitucionalidade de 1988.
Por isso nossa situação é tão grave. Estamos no pior dos mundos. Um bando de gângsteres políticos, que jamais saiu do poder nas três décadas de democracia, vendeu ao establishment econômico que o apoiou a tramoia insana de derrubar uma presidenta pela acusação bizarra de pedaladas fiscais, que jamais constituiriam um crime de responsabilidade. Por meio de um processo viciado presidido por um criminoso, réu em vários processos, com a benevolência do Supremo, que a tudo assistiu num obsequioso silêncio, somente quebrado ao suspender de suas funções o presidente da Câmara de Deputados, quando o golpe do impeachment já estava ultimado.
Não é apenas um golpe sobre um partido ou um programa ideológico, mas um golpe que visa reverter os mínimos ganhos que o Brasil teve nas últimas três décadas de relativa estabilidade institucional. No pacto entre o Boi, a Bala, a Bíblia e os Bancos, o establishment rastaquera do novo milênio revive os mesmos arranjos na coxia, nas sombras das casas-grandes de Brasília, onde não faltam parlamentares acusados de explorar mão de obra escrava, em uma tentativa de juntar todo mundo, o Supremo, militares, políticos, jornais e “estancar essa sangria”; e, além disso, passar medidas que eles sabiam jamais sobreviveriam ao crivo do voto.
Claro, deve-se reconhecer que quase todos os governos anteriores foram coniventes e, por vezes, responsáveis pelo reinado nas sombras dos jucazitos de sempre. O PMDB não está aí com a maior bancada por acaso. Mas, para o bem ou para o mal, sob a presidência de Dilma (ou sob Lula e Fernando Henrique Cardoso) ao menos existia uma pressão contrária que variava muito de intensidade e eficácia, dependendo da conjuntura, mas fazia algum contrapeso progressista e de promoção dos direitos humanos ao conservadorismo e a cleptocracia que marcam nosso establishment político partidário. Enfim, o PMDB jamais exerceu a hegemonia no bloco de poder como agora nesse governo golpista.
A presidência da Câmara de Deputados e do impeachment por uma figura como Eduardo Cunha já dispensava qualquer necessidade de alarme sobre o apodrecimento institucional reinante. Para termos uma ideia mais abrangente da decadência do nosso legislativo atual, basta lembrar que 57% dos congressistas têm problemas na justiça por questões criminais (o líder do governo é acusado de tentativa de homicídio) ou relativas à administração pública/eleições. Bancadas ruralista e evangélica fundamentalista juntas representam quase 35% dos votos – seriam talvez o maior partido. Sem falar nos partidos nanicos, que servem para todo tipo de achaque, graças à nova contribuição do Supremo, que vetou a cláusula de barreira segundo a qual os partidos deveriam contabilizar um mínimo de 5% dos votos nacionais para terem representantes do Congresso.
Para os direitos humanos, o desastre é total. Além do rebaixamento de ministérios, o grupo que chega ao poder traz uma armada de projetos que sonha dinamitar tudo que se construiu desde 1988. Tem projeto de lei para tudo que é gosto. Diminuição da idade laboral e da maioridade penal, suavização da definição de trabalho escravo, derrubada do Estatuto do Desarmamento, proibição do aborto para mulheres que sofrem estupro. Não há diálogo possível com um grupo tão transparente em sua associação ao crime e tão despudoradamente alheio a qualquer manifestação da vontade popular.
Para piorar, nessa situação de crise, as duas forças que seriam cruciais para garantir o espaço democrático dão mostras de total conivência com a degradação em curso. O Judiciário alterna omissão e intervenções deliberadas em favor do pacto elitista. A grande mídia dispensa qualquer análise crítica, pois abraçou e adulou o golpe desde o primeiro dia.
A única saída está na resistência e na mobilização da sociedade civil dentro e fora do Brasil. Nosso consolo nessa luta difícil é que o governo interino vive nas trevas dos gabinetes em que nasceu. O ministério foi essa vergonha de homens brancos e investigados não só para garantir o pacto de sempre, mas para perverter o curso da ação da justiça. O próprio presidente interino foi diretamente mencionado numa acusação de solicitar recursos ilícitos para financiar a campanha política de um aliado seu em São Paulo.
Nossos artistas deram o exemplo na primeira semana e dobraram a estupidez do rebaixamento da cultura com a força da música e da imagem nas ocupações. Funcionários da antiga Controladoria-Geral da União deram novo exemplo, enxotando o ministro da Transparência, pego em obscuras conversas da turma do grande pacto. Os estudantes vêm há tempos dando muitos outros exemplos no plano estadual. As universidades e a comunidade acadêmica começam a se mover mais.
Agora, é fundamental que todos os movimentos não se fragmentem. Não tenho dúvida de que as forças do golpe apostarão todas as suas fichas nisso. Serão agrados aqui e acolá. Pedidos de desculpas, medidas revogadas. Apontarão também para as naturais diferenças de agenda das várias correntes progressistas. Para além de cada bandeira, como a dos direitos da mulher, dos afrodescendentes, sem teto, da saúde, cultura, educação, o ponto central deve ser “fora, Temer”. Esse é o eixo que nos une agora. Enquanto vivermos na anomalia institucional, o diálogo será impossível.
Não tenho bola de cristal ou receita mágica para dobrar esse caos. Obviamente, com um Congresso tão gangsterizado, será impossível qualquer governo minimamente progressista se estabelecer. É fundamental que os senadores voltem à razão e votem contra o impeachment de Dilma. Mas que sejam logo chamadas eleições gerais para renovarmos esse quadro político apodrecido que temos atualmente. E, claro, a médio prazo não podemos perder a chance dessa crise para pensar uma reforma política que limite o poder assustador das forças conservadoras de sempre, com a cláusula de barreira e o controle do financiamento privado das campanhas políticas para impedir que mandatos sejam comprados por grupos de interesses, como hoje ocorre. Direitos não são arrancados sem trauma ou grito. E, principalmente, direitos não podem ser tocados por um governo imoral e ilegítimo como esse governo interino. Por isso, mais do que nunca cabe repetir “fora, Temer” e exigir que os senadores não mancomunados com o golpe votem contra o impeachment, para a volta da presidenta Dilma e pela convocação de eleições gerais.
Paulo Sérgio Pinheiro foi membro da Comissão Nacional da Verdade e ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso.