O Islã é expansionista?
Duas tendências se distinguem no renascimento religioso atual: por um lado, o “islamismo de mercado”, com sua moda, música pop e até refrigerantes próprios, que refletem uma afirmação a partir da cultura de massa; por outro, o neofundamentalismo que defende o êxodo da Europa como forma de romper com o Ocidente
Uma pergunta deixa a Europa inquieta: o Islã é intrinsecamente expansionista e conquistador? Sim, alegam, na Suíça, os que promoveram um plebiscito contra a construção de minaretes, baseados nos escritos de uma nova corrente crítica ao Islã.1 Esse expansionismo seria sustentado por um desejo de hegemonia política atribuída à natureza da “ideologia islâmica” – que seria pró-natalidade, proselitista e invasora – e às estratégias de alguns de seus atores (os “islâmicos” e seus “projetos”2). Yusuf Al-Qaradawi, o mais popular dos xeiques sunitas moderados, parece dar-lhes razão quando dedica seu programa na rede de televisão Al-Jazeera, o “Sharia e a Vida”, ao referendo suíço, garantindo que a conquista ocorrerá, e que todos os seres humanos se reencontrarão, unidos pela palavra de Deus.
As dúvidas sobre o Islã têm, em parte, legitimidade: em última análise, como o cristianismo, ele se proclama a salvação da humanidade, e sua mensagem como a palavra final na história das profecias. Mas o que significa na prática um expansionismo religioso? Do ponto de vista sociológico, ele pode estar baseado em uma abordagem militante (política, propagandista ou militar), no desenvolvimento da religiosidade (os revivals ou conversões) ou simplesmente na demografia (ver box).
Na Europa, apenas a Irmandade Muçulmana e a organização turca Milli Görüs3 têm um projeto político. Receptáculos de um imaginário, não só universalista (o Islã representa uma religião para todos), mas com vistas à dominação (o objetivo de serem “guias do mundo”, segundo declarou Hassan Al-Banna, o fundador da Irmandade Muçulmana), eles pretendem criar um “Estado islâmico”. Esse, porém, não foi o motivo pelo qual se refugiaram na Europa a partir de 1950: esta seria uma base para servir de retaguarda nas batalhas em curso no Norte de África e no Oriente Médio.
Por isso, a implantação consecutiva de populações muçulmanas permanentes no Velho Continente os tomou de surpresa, ao mesmo tempo em que lhes criou um problema. O fato de ser minoria na Europa invalidava qualquer perspectiva estratégica para os agentes do Islã político, colocando-os em um dilema: a pregação ou o lobby? A pregação os levava a um terreno já em grande parte ocupado pelo movimento salafista ou pela organização Tabligh4 – grupos designados pelo cientista político Olivier Roy5 como “neofundamentalistas”. O lobby, por sua vez, tem a dificuldade de obrigatoriamente encontrar um número significativo de adeptos no contexto europeu e incentivá-los a assumir papéis significativos na sociedade – com a desvantagem de limitar a sua influência em nível local, expondo-os à suspeita de compromissos com o poder.
A situação da Irmandade Muçulmana mostra isso bem: jogando a cartada das instituições, ela tem perdido, com o passar do tempo, seu verbo revolucionário, abandonado as grandes causas e renunciado a se mobilizar por causas delicadas, como a Palestina ou o uso do véu na França. Com isso, sofrem críticas de jovens muçulmanos, que chegam ao ponto de se desvincular deles por seu “aburguesamento” ou suas negociatas com as autoridades. Até Tariq Ramadan foi repudiado por alguns de seus antigos defensores quando entrou, em 2005, num grupo de trabalho do governo britânico de Tony Blair para estudar como conter o extremismo religioso.
As dificuldades dos defensores do islamismo político em desenvolver uma estratégia crível no Ocidente beneficiam os neofundamentalistas que, por sua vez, rejeitam os compromissos políticos tradicionais. Na nebulosa formada por esses movimentos predomina o salafismo wahhabi “científico” (salafiyya Hawza), nascido na Arábia Saudita. Caracterizado por um rigor sectário e um radicalismo dogmático, mas afastado de qualquer noção de jihad, a guerra santa, este salafismo atrai um grande número de decepcionados com o islamismo político e demais grupos neofundamentalistas estabelecidos há mais tempo no continente europeu, como o Tabligh. Mas, longe de oferecer uma versão mais atual de programa de hegemonia política, ele oferece o fruto amargo de um Islã despolitizado, com um discurso ideológico que advoga afastamento e enclausuramento em relação às sociedades ocidentais.
Assim, a comunidade da fé substituiria a comunidade cultural (tunisiana, marroquina etc.), estabelecendo-se uma lógica de seita. Omissos quanto à questão do véu, seus seguidores não organizam qualquer apoio quando seus imãs são expulsos e não se envolvem nas manifestações de solidariedade aos palestinos.
Esse isolacionismo se dá menos no âmbito familiar e comunitário que nos jovens reintroduzidos ao Islã, vistos como “grupo de sobreviventes” (firqa nâjiyya). Crítico com as famílias e desafiando os imãs tradicionais, o salafismo se coloca em oposição ao mundo muçulmano real e tem muito sucesso entre os mais novos, ainda que obtenha poucos adeptos nas comunidades onde a solidariedade é forte, como comorenses e turcos.
A conceituação de um projeto político viável, porém, é dificultada por um contexto minoritário. Assim, a dinâmica missionária não reflete um processo de “conquista islâmica” e muito menos o ativismo da Jihad pelas armas – posto que, na Europa, o jihadismo é visto como uma missão de sacrifício, não como política por outros meios. Seus grupos militantes (a Al-Qaeda ou o movimento Metin Kaplan6) compartilham com os não combatentes salafistas o mesmo espírito sectário. O jihadismo desqualifica pelo takfir, acusação de descrença, todos os adversários que pretende combater: os judeus, os cristãos, os muçulmanos que não se comportam a seu gosto, e também a Irmandade Muçulmana. Ele não pretende, portanto, criar no Ocidente contraculturas de gueto. Em vez disso, seu radicalismo o leva a romper com a comunidade e o bairro7, bem como com a mesquita, muito facilmente controlada pelos serviços de inteligência e condenada por se assumir como um espaço de negociação com a sociedade ao seu redor. O recrutamento jihadista se faz, então, em outros lugares: cibercafés, clubes esportivos, prisões etc.
Combate ao imperialismo político
No entanto, como eles empurraram a execração a seus limites extremos, os novos jihadistas não têm mais a quem libertar. Eles não têm um objetivo específico – investir num território ou Estado, mudar o equilíbrio do poder político, abater regimes –, mas apenas o conflito armado e seu impacto midiático, e a destruição dos símbolos do imperialismo político – ou seja, o poder dos Estados Unidos e seus aliados.
Se a dinâmica da militância islâmica não leva à conquista, será que ela pode vir “por baixo”, por meio de um renascimento religioso capaz de influenciar o equilíbrio político das sociedades europeias, ou pelo menos criar espaços dentro delas para o Islã?
De fato, confundimos muitas vezes a maior visibilidade do Islã no Ocidente com um retorno maciço à religiosidade em comunidades muçulmanas: nos últimos 20 anos, a prática religiosa ficou estagnada e até mesmo diminuiu ligeiramente8. Assim, seu reaparecimento – mesmo que derive de um desejo de solidariedade comunitária – ocorre a partir do indivíduo, e não de um projeto coletivo, e corresponde principalmente ao desejo de reencontrar suas raízes, sua “identidade”.
Duas tendências principais se distinguem no renascimento religioso atual. Por um lado, o “islamismo de mercado9”, uma religiosidade livre da obsessão pela política e marcada pela busca de uma “normalização” da identidade cultural muçulmana. A moda streetwear islâmica10, véu islâmico hip, halal (música árabe permitida pela religião) pop e Muslim Up (marca francesa de refrigerantes) refletem uma afirmação do Islã a partir da cultura de massa. A religião não representa uma solução integral, mas uma preocupação com a ética numa cultura ocidental aceita globalmente. Por outro lado, o neofundamentalismo que, como vimos, quer romper com a ordem ocidental e não tem objetivos expansionistas, uma vez que se posiciona na perspectiva do êxodo.
Quanto às conversões, elas existem, mas em número limitado e acontecem em ambas as direções, embora a balança aponte a favor do Islã: na França, de acordo com o Ministério do Interior, cerca de 800 muçulmanos se convertem a cada ano ao cristianismo, especialmente evangélicos, enquanto que há 4 mil casos de conversão ao Islã11.
O renascimento religioso é, certamente, muito visível, principalmente no aspecto físico e nas roupas das pessoas que estão redescobrindo a fé ou se convertendo, como a barba para os homens e o qamis, véu completo, para as mulheres. Essa nova religião é, ao mesmo tempo, mais pública e menos política. Isto levanta um problema ideológico em países com forte tradição secular como a França, mas não é realmente uma ameaça, mesmo de segurança – exceto, é claro, no que se refere aos jihadistas.
Remove também do espectro o discurso sobre os guetos, entendidos como enclaves muçulmanos que alimentavam um projeto coletivo de rompimento com a sociedade. Mesmo se a concentração das populações em alguns bairros pode levar ao aparecimento de um controle social, este não corresponde a uma estratégia política de organização comunitária, mas parece resultar de sistemas sociais, econômicos e políticos complexos, assim como da atitude do governo. Assim, a corrida ao “voto muçulmano”, a distribuição de habitação social baseada, às vezes, em critérios étnicos, a busca por intermediários “comunitários” para “administrar” os subúrbios e o desejo de controlar o Islã a partir de cima, como o fez o Conselho Francês do Culto Muçulmano (CFCM), criado em 2003, geram comportamentos comunitários.
No entanto, a Irmandade Muçulmana, centrada na classe média, não controla os subúrbios. A ineficácia total da fatwa (pronunciamento legal de um líder religioso para apelar à calma), lançada pela União das Organizações Islâmicas da França (UOIF) durante os motins 2005, provou isso mais uma vez.
Valores individualistas
E se os salafistas estão presentes, eles não possuem muito mais controle. Primeiro, porque sua influência é limitada. Afinal, eles não têm experiência alguma na estruturação de um forte movimento social que lhes permita assumir este papel. Segundo, porque seu objetivo não é a criação de espaços urbanos islâmicos ou rebeldes, mas o retorno ao Dar al-Islam (terra do Islã).
Hoje em dia, nos bairros onde mora uma maioria muçulmana, emergem, de maneira espetacular e massiva, os valores individualistas. Isso fica evidente pelo aumento de casamentos mistos12, inclusive de mulheres imigrantes, assim como na autoridade parental fraca e no número extremamente pequeno de escolas religiosas, para não mencionar o retumbante fracasso de alguns candidatos comunitários que tentaram se organizar para as eleições locais.
Paradoxalmente, 20 anos atrás, quando o “bairro muçulmano” não existia, o retorno à religião se dava sempre de forma voluntária e enquadrada. Agora, um ambiente muçulmano, com suas normas sociais e práticas religiosas, como o Ramadã, suas bibliotecas, locais de culto e lojas halal, promove a reislamização numa base individual, inclusive entre os primeiros imigrantes.
O contexto europeu ou, mais precisamente, a condição minoritária do islamismo na Europa, em grande medida enfatiza a dificuldade de pensar a articulação programática entre religião e política dentro de uma modernidade composta pelo Estado-nação e uma democracia. Daí a tendência dos círculos islâmicos em separar a daawa (pregação) da política e do surgimento, perante sua incapacidade de formular um projeto coerente, de outras formas neofundamentalistas como o salafismo.
Aqueles que se situam numa estratégia de reconhecimento público veem seu futuro na “política pura”, nas palavras de Yamin Makri, ex-líder da União de Jovens Muçulmanos. Assim, alguns Irmãos Muçulmanos começaram a militar em partidos tradicionais e as reivindicações dos direitos de pessoas de origem imigrante foram recolocadas, com base nas identidades culturais secularizadas.
Seja como for, estas diferentes vias de ruptura entre religião e política refletem o reconhecimento implícito de que a ideia de conquista é ilusória. Pouco importa, então, saber se existem veleidades expansionistas. O essencial é perceber sua invalidação pelas mudanças sociológicas.
Patrick Haenni é encarregado de pesquisa na Fundação Religioscope e co-autor, com Stéphane Lathion, do Os minaretes da discórdia. Esclarecimento sobre um debate suíço e europeu (Infolio, Paris, 2009). Sami Amghar é sociólogo e pesquisador na EHESS (École des Hautes Études en Sciences Sociales) e membro do Institut d’études de l’islam et des sociétés musulmanes.
*Sami Amghar é sociólogo e pesquisador na EHESS (École des Hautes Études en Sciences Sociales) e membro do Institut d’études de l’islam et des sociétés musulmanes.