O jornalista como alvo
Repórteres enviados para cobrir as marchas têm sido tratados como alvo tanto pela polícia quanto por manifestantes. Quase vinte comunicadores foram agredidos. A consequência mais visível é o distanciamento entre o repórter e o fato, prejudicando a qualidade da informação entregue ao públicoJoão Paulo Charleaux
A onda de protestos que varre o Brasil questiona abertamente quase todas as organizações formais. Com a mídia e os jornalistas não é diferente. Repórteres enviados para cobrir as marchas têm sido tratados como alvo tanto pela polícia quanto por manifestantes. Quase vinte comunicadores foram agredidos. Alguns de maneira especialmente severa e de forma covarde. Dois veículos de emissoras de TV foram incendiados.
Temendo novos ataques, a cobertura nas ruas foi restringida, optando pelo uso de helicópteros e até drones – equipamentos voadores manipulados por controle remoto. A consequência mais visível é o distanciamento entre o repórter e o fato, prejudicando a qualidade da informação entregue ao público.
A conta paga pelos que tentam contar o que acontece nas ruas tem sido caríssima. O repórter Pedro Vêdova, da Globo News, levou um tiro de bala de borracha no meio da testa, no Rio de Janeiro. Em São Paulo, foi Giuliana Vallone, da TV Folha, quem levou um tiro no olho. Pedro Ribeiro, do Portal Aprendiz, foi agredido por policiais e mantido preso por três dias. Ainda responde a um processo absurdo. Mas o caso mais grave talvez seja o do fotógrafo Sérgio Silva, da agência Futura Press, que corre o risco de perder a vista por uma “fratura de órbita” provocada pelo disparo de munição não letal da Tropa de Choque paulista.
Censura é censura. Não há atenuantes para classificar os que tentam impedir os jornalistas de cobrir os fatos. Quem usa a violência para calar jornalistas flerta com jagunços, matadores de aluguel, policiais corruptos, traficantes e outros criminosos que, Brasil afora, recorrem a ameaças e atentados para cercear o direito de informação e de expressão.
A polícia leva enorme vantagem em relação aos manifestantes quando se trata de infligir danos à imprensa. Há vídeos especialmente reveladores na internet, mostrando como policiais disparam na direção de jornalistas agrupados que se identificam como “imprensa”, aos gritos. Já os manifestantes empurram, xingam e ameaçam repórteres, além de terem queimado dois carros de TV.
Não se trata de medir e comparar a quantidade ou a gravidade das agressões cometidas contra a imprensa por um ou outro grupo. É preciso reconhecer que as agressões foram cometidas e que os jornalistas são muito menos protegidos, respeitados e defendidos do que pensavam ser até então.
A onda de ataques também revelou muito sobre a forma ainda precária como os próprios jornalistas reagem. Quase nenhuma empresa de comunicação investe em cursos que preparem seus profissionais – especialmente os fotógrafos – para enfrentar essas situações. Muitas vezes, os laços trabalhistas são precários, não há seguro de vida nem apoio jurídico e psicológico.
Por fim, o ocorrido nos últimos dias diz muito sobre a mudança no próprio conceito de “jornalista”. Se os empregados de empresas de comunicação vivem esse apuro, o que dirá dos cidadãos que, por conta própria, exercem seu legítimo direito de testemunhar, fotografar e filmar o que acontece nas marchas e são tratados como criminosos pela polícia? Aos poucos, os que querem mais meios e mais voz vão descobrindo também a dor e a delícia de ser comunicador em situações tensas como essas. Nisso, temos de estar todos juntos. Não há agressão que se justifique.
João Paulo Charleaux é jornalista e coordenador de comunicação da Conectas Direitos Humanos.