O mundo privado como réu
A discriminação contra a mulher é um fator que, na maior parte das vezes, está presente e fundamenta a violência sofrida. Coloca a mulher em situação de inferioridade e de subordinação, limitando sua autonomia, seu poder de escolha e de decisão, bem como o seu reconhecimento como pessoa dotada de direitos e de igual dignidade em relação ao homem.
Seis meses após o fim de seu casamento, Adriana Vichi foi ameaçada por seu ex-marido, que queria impor uma reconciliação. Ante a sua recusa, as ameaças foram ficando mais graves e ela teve que sair de sua casa. Passou a viver escondida, abrigada por amigos. Como não a encontrava, o ex-marido fazia escândalos na porta de seu trabalho. Certa vez, ele ficou três horas esperando e até perseguiu o carro de seu chefe, achando que ela estava escondida no interior do veículo. Completado um ano da separação, ele invadiu a casa da ex-sogra e a manteve refém por seis horas, ameaçando matá-la com uma faca se a filha não voltasse atrás.
Adriana Freitas Moreira terminou uma relação e seu antigo parceiro nunca se conformou. Quando este descobriu que ela estava namorando outra pessoa, passou a persegui-la e a fazer escândalos na porta de sua casa, no trabalho e nos locais que freqüentava. Ao perceber que não tinha volta, sua atitude mudou: começou a difamá-la. Foi ao restaurante em que Adriana costumava almoçar e disse a todos os presentes que ela era uma vagabunda, que tinha AIDS e que se relacionava, ao mesmo tempo, com ele e com o atual namorado.
O casamento de Cristiane Maria de Carvalho Carneiro durou 20 anos. Na primeira vez que apanhou do marido, a filha mais velha tinha apenas 15 dias de vida. Foi agredida porque não queria fazer sexo. Sofreu violência física, sexual e psicológica até ter coragem de denunciá-lo numa Delegacia da Mulher1.
Essas e outras histórias ilustram que a violência contra a mulher guarda uma particularidade muito importante: na maioria dos casos, a vítima tem ou teve alguma relação afetiva com seu agressor. Segundo pesquisa do DataSenado, de 2007, cerca de 87% dos agressores são maridos ou companheiros2. Isso demonstra que a mulher está mais suscetível à violência no espaço privado, a chamada violência doméstica ou familiar. Ou seja, identifica a própria casa como o espaço de maior perigo. E ainda que a violência, dentro e fora do ambiente familiar, seja o problema que mais preocupa a sociedade brasileira na atualidade3, durante muito tempo a agressão doméstica esteve invisível e fora do alcance das políticas públicas.
Diversos fatores contribuíram para isso, em especial a ideologia machista e patriarcal que permeia nossa cultura e nossas instituições jurídicas e públicas, fazendo com que o ditado popular “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” se convertesse em uma resposta dos poderes públicos às mulheres. Mas é preciso considerar também o desconhecimento das peculiaridades que envolvem a situação de violência contra a mulher. Trata-se de um verdadeiro “ciclo de violência”, onde as dificuldades econômicas e sociais, assim como a existência de filhos em comum, que dificultam o processo de rompimento tornam a mulher ainda mais vulnerável.
A discriminação contra a mulher é um fator que, na maior parte das vezes, está presente e fundamenta a violência sofrida. Coloca a mulher em situação de inferioridade e de subordinação, limitando sua autonomia, seu poder de escolha e de decisão, bem como o seu reconhecimento como pessoa dotada de direitos e de igual dignidade em relação ao homem.
Somente há dois anos foi aprovada, no Brasil, uma lei específica de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei nº 11.340/06, conhecida por Lei Maria da Penha. A história da edição desta lei teve início com a articulação das próprias mulheres durante a Assembléia Nacional Constituinte, com a apresentação de emendas populares que garantiram a inclusão dos direitos da mulher na Constituição Federal de 1988. A nova Carta buscou romper com um sistema legal fortemente discriminatório em relação ao gênero feminino e determinou, de forma inédita, que o Estado deve coibir a violência nas relações familiares.
No plano da proteção internacional, dois tratados ratificados pelo Brasil versam especificamente sobre os direitos das mulheres: a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1984; e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Belém do Pará), de 1995.
A Convenção sobre a Violência contra a Mulher era o único documento que abordava especificamente o tema, e trouxe importantes diretrizes que foram incorporadas à Lei Maria da Penha. Aliás, elaborar uma lei nacional era uma obrigação decorrente da ratificação, pelo Brasil, do tratado internacional.
Já a Convenção de Belém do Pará reconhece que a violência contra a mulher constitui violação dos direitos humanos e de liberdades fundamentais. Define como agressão qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na privada.
Entre todas essas questões, a violência na esfera privada ganha destaque justamente pelos agressores serem, em geral, parentes ou pessoas próximas das vítimas4. E a violação dos direitos humanos da mulher, ainda que ocorra no âmbito da família ou unidade doméstica, passa a interessar à sociedade e ao poder público.
Heleieth Saffioti5 traça um paralelo entre a organização de um galinheiro – no qual impera a “ordem das bicadas” e o galo mais forte enfrenta os rivais para dominar as galinhas –, e a organização das famílias, igualmente baseada na força, na qual o homem adulto é o “chefe da casa”, paga as contas e define o destino da mulher e dos filhos.
O território de cada galo é demarcado geograficamente. Assim, se uma galinha fugir, o galo não a segue, pois ela deixa de pertencer ao seu território. Com os seres humanos o território é simbólico. Quando há uma separação, o homem, muitas vezes, passa a perseguir a mulher, porque para ele a relação continua existindo, pelo menos simbolicamente, o que pode levá-lo a atos de violência doméstica, ainda que praticados fora da residência da família. Dessa forma, o território onde se dá a violência doméstica é um território simbólico. Já a violência intrafamiliar, que se dá em razão das relações de parentesco consangüíneo e/ou afins, pode não ser qualificada como doméstica, por ter ocorrido fora desse território simbólico. Na Convenção de Belém, a violência doméstica é caracterizada como agressão física, sexual e psicológica ocorrida dentro da família e unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor obrigatoriamente conviva ou tenha convivido no mesmo domicílio que a mulher.
Leila Linhares Barsted6 menciona, com muita propriedade, que “pensar que a violência conjugal não ameaça a ordem é esquecer que, quando um indivíduo está imbuído do papel de justiceiro ao agredir ou matar sua mulher simplesmente porque ela deixou de fazer a comida, não chegou cedo em casa, enfim, resolveu desobedecê-lo, ele está atentando contra a ordem pública”.
A pouca importância dada aos crimes do espaço doméstico pode levar ao entendimento de que existe uma lei privada, interna às famílias, que permite que pais castiguem filhos e que maridos e companheiros punam suas mulheres porque elas não corresponderam ao papel de esposas ou de mães tradicionais. Esses homens que fazem e aplicam essa lei privada são os famosos “justiceiros”…
A mulher é costumeiramente penalizada em dobro no âmbito das relações domésticas: pelo não reconhecimento e valorização do trabalho doméstico, que se torna invisível e desprestigiado; e quando se trata da violência ocorrida dentro desse mesmo espaço, considerado “sagrado” e “indevassável” por quem quer que seja.
A Lei Maria da Penha completa dois anos em 2008 e assegura, do ponto de vista legislativo, o direito a uma vida livre de violência para todas as mulheres. Resta à sociedade brasileira garantir sua efetiva aplicação.
*Fernanda Seara Contente é defensora pública e coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo – NUDEM/SP. Mônica de Melo é defensora pública, integrante do NUDEM/SP e professora de Direito Constitucional da PUC-SP.