O ovo se transformou em serpente
País atingiu o fundo do poço e Bolsonaro e o seu governo continuam a cavar
Em 2018, às vésperas da eleição para presidente, escrevi um texto intitulado “O ovo da serpente e a eleição para presidente”. Um pouco mais de dois anos de governo de Jair Bolsonaro, transcrevo-o abaixo quase que integralmente e, ao seu final, evidencio a situação na qual nos encontramos hoje:
No atual processo eleitoral, há um enigma que pode ser formulado da seguinte maneira: como um militar reformado aos 32 anos, parlamentar apagado e insignificante por 30 anos, reconhecidamente truculento e tosco, moral e intelectualmente, e com sérias dificuldades cognitivas, teve 46% dos votos no primeiro turno das eleições para Presidente da República? E, mais intrigante ainda, como pessoas supostamente mais esclarecidas, com diplomas de curso superior, até mesmo alguns professores universitários, deram o seu voto a esse personagem minúsculo e grosseiro, até há pouco tempo ridicularizado, tido como “folclórico” e motivo de risos?
Para entendermos esse fenômeno se faz necessário reconhecer que determinadas circunstâncias históricas podem trazer à cena política personagens bizarros, que em condições “normais” jamais sairiam de sua insignificância. Foi assim com Hitler na Alemanha (um dos países mais “cultos” da Europa de então); e é exatamente assim com Jair Bolsonaro no Brasil atualmente. Mas que circunstâncias são essas, o que possibilitou que o “ovo da serpente” (o fascismo) fosse chocado, produzindo um ambiente de ódio, intolerância e violência no Brasil?
Para além da indignação contra a corrupção (sempre ela no Brasil: 1954, 1955, 1964, 1989, 1992 e agora), do moralismo (sempre falso) e do antipetismo obsessivo (contra os Petralhas!), há uma onda fascista no mundo e no Brasil que, como sempre, se alimenta de um momento de crise (desemprego, precarização do trabalho, queda da renda e aumento da pobreza) – que penaliza a maioria da sociedade, mas especialmente os grupos e camadas médias que caem, ou estão ameaçados de cair, econômica e socialmente. É principalmente a partir desse segmento social que o fascismo vem se espalhando mundo afora.
No Brasil, essa serpente foi produzida pela confluência da crise econômica iniciada em 2015 e a atuação de três partidos políticos muito influentes na sociedade brasileira: parte do Poder Judiciário (inclusive a “Lava Jato”) e do Ministério Público, a grande mídia corporativa e parte majoritária das igrejas evangélicas – que, por motivos distintos, foram a ponta de lança do golpe parlamentar-judicial-midiático que depôs a presidente Dilma Rousseff. Juntaram-se aí a partidarização da justiça que desmoralizou a atividade política, o parlamento e o próprio judiciário; os interesses dos grandes grupos econômicos financeirizados e o moralismo de costumes e cultural, com a instrumentalização política da corrupção e da religião.
O movimento de extrema direita que identificamos hoje no Brasil, de caráter claramente fascista, foi cevado nesse processo, dando os seus primeiros sinais nas manifestações a favor do impeachment – quando vieram à luz do dia grupos autoritários e antidemocráticos que reivindicam o retorno à ditadura militar e promovem um clima agressivo de raiva, ódio, medo e insegurança, tendo por alvo o “outro”: democratas, sociais-democratas, socialistas, comunistas, homossexuais (homofobia), negros e nordestinos (racismo), mulheres independentes e/ou feministas (misoginia), moradores de rua, sem teto, sem terra etc. Esse “outro” é identificado como o culpado pelos males do país e um inimigo da família, o perigo a ser combatido – devendo ser negado liminarmente e, se possível, ser eliminado simbólica e/ou fisicamente.
São essas circunstâncias que explicam a difusão dessa “peste emocional” e o protagonismo de Jair Bolsonaro, expressão personalizada do movimento e das ideias fascistas, defendidas por ele desde sempre. Esse movimento e o seu representante maior são filhos legítimos do golpe de 2016, conseguindo exprimir, ainda que de forma caótica, os distintos interesses subjacentes a ele. Em suma, sintetiza autoritarismo político, ultra neoliberalismo econômico, fundamentalismo religioso e valores morais conservadores e anti-iluministas. Tudo isso acompanhado por discursos e ações violentas contra o “outro”.
E por que pessoas supostamente mais esclarecidas viram no personagem grotesco um representante de sua insatisfação? A anticorrupção, o moralismo e o antipetismo, assim como preconceitos, supostas fobias e interesses econômicos, contribuem para a explicação, mas não são suficientes. Na verdade, a pergunta de fundo é a seguinte: porque essas pessoas estão dispostas a colocarem um fascista na Presidência da República, apologista de assassinatos e da tortura, contribuindo mais ainda para tornar o ambiente político irrespirável e, no limite, letal?
A resposta de fundo é uma só: essas pessoas, em sua maioria, não são fascistas ideologicamente; na verdade, elas estão profundamente indignadas com a situação do país, mas podem se tornar cúmplices porque ignoram ou desprezam duas coisas: 1- a trágica história de terror (crimes contra a humanidade) do fascismo na Alemanha, na Itália, na Espanha, em Portugal etc., bem como a história da Segunda Guerra Mundial e suas consequências dramáticas; 2- não percebem que a atual eleição não é semelhante às anteriores, nas quais se confrontaram, por diversas vezes, uma proposta socialdemocrata (PT) e uma proposta neoliberal (PSDB). O que estamos assistindo é algo muito grave, que vai além dessa disputa: é um confronto decisivo entre democracia (Estado de direito) e ditadura, civilização e barbárie, iluminismo e ignorância; em suma, a política como arena de debate e argumentação contra a política como arena da violência.
Hoje (começo de março de 2021), um pouco mais de dois anos do governo Bolsonaro, o conjunto de sua obra é o seguinte:
1– A economia em frangalhos – estagnação antes da pandemia e recessão depois, com queda de 4,1% do PIB em 2020, desemprego alarmante (14% da PEA), inflação da cesta básica, queda dos rendimentos, crescimento da pobreza extrema (12,8% da população) e precarização de todo tipo. E destruição de cadeias produtivas, como a do petróleo, aprofundando o processo de desindustrialização do país.
2- Ameaça permanente ao Estado de direito – com ameaças e agressões aos outros poderes da República (STF, governos de estados), à imprensa, às universidades, à liberdade de pensamento e expressão, à cultura e à ciência. Estímulo à arbitrariedade e violência policial (contra pobres, negros, mulheres e LGBT) e maior facilidade de aquisição de armas pelas milícias.
3- Desestruturação (e boicote) de todos os órgãos de fiscalização do Estado – em especial no que se refere ao meio ambiente e às comunidades indígenas (Ibama e Incra), ao mesmo tempo que lidera a agressão à Floresta Amazônica, com estímulo às atividades de garimpo, pecuária e extração de madeira.
4- Política externa alucinada, alinhada de forma subalterna ao governo Trump – com agressões injustificadas contra parceiros comerciais importantes do Brasil (China, países árabes, Argentina e outros) e entrega de riquezas e empresas nacionais ao capital internacional.
5- Uma política genocida de não combate à pandemia – com a negação, desde o início, da gravidade da doença, recomendação de remédios desacreditados e condenados pela OMS e cientistas de todo o mundo, boicote a todas as medidas sanitárias recomendadas (uso de máscara, isolamento social, lockdown ou qualquer tipo de restrição) e, inacreditavelmente, uma ação explícita contra a vacina e a vacinação, fazendo “corpo mole” e “enrolando” na compra de vacinas. O resultado dessa necropolítica explícita pode ser resumido pelos números: hoje (5 de março), já foram infectados quase 11 milhões de brasileiros e estamos próximos de atingir a marca trágica de 270 mil mortos pela Covid-19. E o sistema de saúde do país entrando em colapso.
Resumindo: o ovo se transformou em serpente; o país atingiu o fundo do poço e Bolsonaro e o seu governo continuam a cavar. Não se trata de omissão; eles são os principais aliados ativos do vírus, e tornaram o país uma ameaça à saúde pública mundial. Até onde vai isso? Até quando as instituições vão ficar contemporizando? Até quando as Forças Armadas vão sustentar o governo Bolsonaro em sua marcha para o caos? E, o mais importante, até quando nós, a maioria dos brasileiros, vamos conseguir continuar vivendo com esse genocídio? Podem acreditar: a economia só vai se recuperar quando a pandemia for controlada; mas os fatos estão demonstrando que Bolsonaro e o seu governo atuam o tempo todo contra. No passado, em nosso país, ficou famoso o seguinte ditado, que pode ser atualizado para a situação atual: “ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”!
Luiz Filgueiras é professor titular da Faculdade de Economia da UFBA.