O poder de morte da PM-SP – Parte III: Controle externo e controle interno
É possível controlar o uso da força policial? O uso da força pela polícia, destarte a legalidade do mandato, tem servido como instrumento de morte num virtual combate ao “crime”. Ainda que denúncias, pesquisas e movimentos sociais se articulem contra a violência promovida pelo Estado, o problema se mantém. Quais são as possibilidades perante a permanente “exceção” da ilegalidade da ação policial?
A Ouvidoria de São Paulo foi pioneira e a ela se seguiram ouvidorias em dezesseis diferentes estados brasileiros. Ela visa fazer o controle externo da polícia por meio do acolhimento de denúncias e o acompanhamento das ações envolvendo corrupção e violência policiais. Procura também dar transparência para os números da segurança pública e mais especificamente da violência. A Ouvidoria não tem poder para julgar casos de violência policial. Embora o ouvidor seja cargo indicado pela sociedade civil, o exercício de sua função depende de recursos provenientes do Poder Executivo e de suas relações com a Secretaria de Segurança Pública. Portanto, tem capacidade operacional reduzida e pouca margem de manobra em termos de recursos para dar conta de seu mandato. Esta é uma situação recorrente em outros Estados do país.[1]
A partir de sua atuação no controle externo da polícia, a Ouvidoria de São Paulo vem reiterando sugestões para a redução da letalidade em ações policiais:
(1) Observância do disposto na Resolução SSP-21, de 11/04/90, da OS nº PM3-005/02/99 e da OS nº PM3-025/02/01, que proíbem a utilização de armas de fogo contra veículos em movimento e determinam a realização de “cercos” e de negociações para a rendição de suspeitos;
(2) Observância ao art. 6º do Código de Processo Penal e à Resolução SSP-382, de 01/09/99, que regulamentam a preservação dos locais de crime com imposição de rigorosas punições quando de seu descumprimento;
(3) Redução da discricionariedade do policial nas ações que envolvam conflito armado, mediante a padronização de procedimentos específicos;
(4) Disponibilização de novos tipos de armas e equipamentos que possibilitem o uso da força apropriada para diferentes situações;
(5) Implementação de métodos de treinamento e instrução de tiro que habilitem os policiais a atuar armados em defesa da sociedade com redução na quantidade de resultados letais;
(6) Implementação de rigorosos mecanismos de controle das armas adquiridas, portadas e utilizadas por policiais, entre outros. (Ouvidoria, 2000)
O Programa de Acompanhamento de Policiais Militares Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco (Proar) visava afastar os policiais envolvidos com ações letais de suas funções e submetê-los a acompanhamento psicológico. Até 1999 o programa havia atendido 2.884 policiais militares, sendo a maioria de baixa patente. Em 1997 e 1998, foram incluídos no programa casos de insubordinação, ocorrências com lesão corporal e ocorrências envolvendo disparo de arma de fogo, aumentando consideravelmente o número de policiais no programa. Em 2002, o Proar foi substituído por programa similar, mais abrangente, entretanto, que não afastava o policial militar de suas funções.
O Programa de Acompanhamento e Apoio ao Policial Militar (PAAPM), criado em 2002, oferece apoio psicológico aos policiais envolvidos em ocorrências de alto risco e a policiais que procuram voluntariamente o serviço. Ocorrências de alto risco são definidas pela Polícia Militar como circunstâncias de grande stress e perigo ou situações de gerenciamento de crise, nas quais as capacidades de decisão e discernimento, bem como capacidades físicas do agente policial sejam afetadas.
A partir daí e da atuação importante de Organizações da Sociedade Civil (OSC) e da Defensoria Pública (Dpesp), algumas mudanças importantes ocorreram nos últimos anos. Os dados oficiais de 2013 foram atípicos no que diz respeito a uma queda da letalidade. A Resolução de 7 de janeiro de 2013, exarada pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, orienta ao não uso das expressões “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte”. Ademais, a Resolução estabelece como padrão que policiais façam acionamento do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), bem como procedam à notificação da Central de Operações Militares (Copom) ou do Centro de Operação da Polícia Civil (Cepol). Desde essa Portaria, a remoção de feridos deve ser providenciada exclusivamente pelas viaturas do SAMU.
Mudanças também ocorreram no estado do Rio de Janeiro, por meio da Portaria n° 533 da Polícia Civil do Estado de Rio de Janeiro, de 7 de julho de 2011, que estabeleceu diretrizes a serem observadas pelas autoridades policiais em casos de “autos de resistência”. Após a notificação, a equipe policial deve ser acionada imediatamente para isolamento e preservação do local da ocorrência. Também deve ser requisitada a presença da Polícia Técnico-Científica e procedidas a oitiva de todos os policiais envolvidos, das eventuais vítimas e das testemunhas.[2]
Um dos temas mais comuns na literatura especializada sobre polícia refere-se ao poder discricionário da polícia. Não importa o quão burocratizado ou formalizado é o procedimento policial, nas situações concretas de policiamento, ou seja, de uso da força, a polícia conta com uma ampla margem de decisões e ações que não estão necessariamente previstas em leis ou regulamentos. A discussão é ampla, mas para este texto basta lembrar que o poder discricionário se funda nas distinções entre legalidade e ilegalidade, lei e ordem, lei e cultura policial e toda uma gama de estratégias de adaptação das leis às práticas policiais que podem ser também traduzidas na corrupção, na falta ou graduação da aplicação da lei, na violência ou mesmo no uso privado da força. Nesse sentido, a importância da regulamentação do comportamento dos policiais deve ser relativizada.
No caso da formação policial e do uso de padrões de comportamento há uma enorme diferença entre fato e ficção, entre função manifesta e oculta em relação às estratégias e modos de ação da polícia, sendo o oculto o que mais fala. Por isso, temos que concordar com Monjardet (2003) quando afirma que os parâmetros legais são desrespeitados para que sejam atingidos os objetivos da instituição.
De qualquer forma, são muito raras e vagas as normas relativas ao contato da polícia e a população, sobretudo no que diz respeito à abordagem de suspeitos e uso da força. Por exemplo, o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Rio de Janeiro (RDPM) define 125 tipos de transgressões disciplinares e a sua maior parte refere-se à violação da hierarquia e da disciplina militar em situações internas à corporação e não no contato com a população. O mesmo pode ser afirmado em relação ao RDPM de São Paulo. Outro exemplo, a grade curricular da Academia de Polícia Militar do Barro Branco (APMBB) do Curso de Formação de Oficiais do Estado de São Paulo (CFO) e o Manual Básico de Policiamento Ostensivo (MBPO) apresentam normas fundamentadas essencialmente no modelo de autoridade e disciplina militares.
A despeito de todo um esforço das organizações da sociedade civil voltadas para os direitos humanos, a formação policial continua fundamentalmente jurídico-militar, com pouco espaço para as disciplinas de cunho humanístico, como Polícia Cidadã, Direitos Humanos e Sociologia, por exemplo.[3] Depois de mais de uma década de inovação na formação policial no Brasil, com vários Estados experimentando a criação de cursos integrados de formação, realizando reformas curriculares, com redução do formalismo jurídico e do militarismo, mudando o perfil das disciplinas e dos professores das academias, os resultados parecem fracos no que diz respeito à redução da letalidade.
Em São Paulo, por exemplo, foi introduzido o método Giraldi que permite ao policial ter um melhor preparo e avaliação das situações críticas que exigem uso da força. O método utiliza técnicas de tiro defensivo – maior número de pontos conferidos a tiros em áreas não letais –, dando ênfase a um treinamento reflexivo, privilegiando a reação compatível e comedida do policial diante das diversas situações enfrentadas. Em vários estados brasileiros, a Cruz Vermelha Internacional (CVI) desenvolveu um projeto de formação policial que dá mais ênfase à atuação prática de redução de danos do que discussão teórica.
Mas essas mudanças ainda não conformam uma política efetiva de uso da força, visando o uso proporcional da força e a redução do uso excessivo da força e da força excessiva. Essa política deve estar sintonizada com os mecanismos de controle civil e transparência. Nesta perspectiva, a I Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg) colocou como central à construção de um novo modelo de polícia aquele que mais está adstrito ao controle social e à abertura da participação da sociedade civil.[4] Boa parte dos estudos acaba concordando com a constatação de que a letalidade é um problema grave e endêmico às polícias brasileiras e que pouco esforço tem sido feito para conhecer e controlar a violência letal.
O uso de força excessiva está sempre presente nas ações policiais. Ele é mais controlado quando governos e governantes se mostram preocupados com a situação e propõem algum tipo de medida para seu controle. Mas, dependendo da sinalização política dos governantes e mudança de certas peças chaves no jogo de poder interno à instituição, os policiais vão se sentir legitimados ou não em relação às amplas formas de negociação que giram em torno da violência.
Considerações para o futuro
Nas sociedades democráticas, as polícias militarizadas crescem significativamente em efetivo, recursos, custos e capacidade de intervenção. As modernas democracias planetárias estão dando mostras de que não podem abrir mão de suas polícias, e com isto, reforçam suas estratégias securitárias, de gestão de riscos ao mesmo tempo em que militarizam a relação com imigrantes, refugiados e suspeitos de terrorismo, dentro de uma lógica de estado de exceção permanente.
Os mecanismos de controle sobre as ações policiais encontram-se travados pela montante securitária e expõem seus limites quando o assunto é redução do número de mortes pela polícia. A experiência moderna está se mostrando, nesse sentido, ambivalente. Estamos na encruzilhada entre um aparato policial civil que se submeta às regras do jogo democrático e estratégias ilegais de controle de fronteiras e dos riscos do mundo globalizado.
Pensando mais especificamente sobre o Brasil a partir da experiência dessa pesquisa, é possível estabelecer controles e aprimorar os já existentes? Teresa Caldeira já afirmou: “As mortes de civis em confrontos com a Polícia Militar dificilmente podem ser consideradas acidentais ou como resultado do uso da violência contra criminosos, como a PM alega” (2001, p.260). Os números demonstram que o padrão de alta letalidade é mantido, sugerindo que a violência policial é uma ferramenta a ser acessada pelos governos e suas polícias. Temos que pensar nestas questões e apontar agendas de pesquisa que possam jogar um pouco de luz sobre um futuro que, por enquanto, parece incerto.
*Luís Antônio Francisco de Souza é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp, campus de Marília; Gabriel de Sousa Romero é bacharelando em Ciências Sociais e pesquisador do Observatório de Segurança Pública da Unesp de Marília; Evelyn Moreira Januário é bacharel em Ciências Sociais e pesquisadora do Observatório de Segurança Pública da Unesp Marília; e Juliane Figueiredo Silva Pereira é graduanda em Ciências Sociais e pesquisadora do Observatório de Segurança Pública da Unesp Marília.
Leia a seguir as partes anteriores deste artigo:
Parte I: Mandato policial
Parte II: Mecanismos de controle do uso da força
[1] Bom enfatizar que em vários estados brasileiros, as ouvidorias não têm nenhuma autonomia em relação à segurança pública e à polícia, e em alguns deles o ouvidor é indicado dentre delegados ou oficiais da Polícia Militar (Comparato, 2005). De toda maneira, existem ouvidorias mais ativas do que outras no que diz respeito ao seu papel essencial de accountability da polícia (Cubas, 2010).
[2] Uma novidade vem do Rio Grande do Sul, pelo Decreto nº 51.358, de 7 de abril de 2014, que cria a Câmara Restaurativa Estadual, como responsável pela aplicação de justiça restaurativa no estado, que inclui casos de violações de direitos humanos por parte de funcionários públicos estaduais. Mas ainda é cedo para saber seus resultados concretos em relação à violência policial.
[3] As pesquisas acadêmicas das duas últimas décadas apontam para a importância da introdução de policiamento comunitário ou projetos de polícia cidadã como parâmetros para a criação de uma polícia mais transparente e, portanto, para um controle social do uso da força. Mas as experiências relatadas nem sempre mostram que isso ocorre e na verdade apontam vários desafios ao controle da letalidade (Neves, 2009).
[4] Cf. Cadernos Temáticos da Conseg. Movimentos sociais e segurança pública. A construção de um campo de direitos. DF: Ministério da Justiça, 2009; e Cadernos Temáticos da Conseg. Uso progressivo da força: dilemas e desafios. DF: Ministério da Justiça, 2009.