O preso visto como inimigo
Para os presos, não existem direitos humanos, e isso ocorre porque não se consegue ver nesse outro um ser humano, apenas um inimigo. No dizer de Eugenio Raúl Zaffaroni, “a essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pessoa”Kenarik Boujikian Felipe
(As fotos da cobertura sobre as prisões foram tiradas no Instituto Penal Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, e fazem parte do ensaio “O Caldeirão do Diabo”, de Andre Cypriano.)
As violações de direitos humanos em relação aos indivíduos que se encontram sob contenção total e controle do Estado, especialmente os que estão presos, são dos maiores desafios de nosso século, pois os encarcerados são de extrema vulnerabilidade e grande parte das barbáries fica acobertada pelos muros que as revestem.
O referencial ético que conduz a humanidade − sobretudo após a Declaração Universal de Direitos Humanos −, que perpassa todos os instrumentos normativos, internacionais e regionais de direitos humanos, bem como a Constituição Federal, qual seja, a dignidade humana, não foi suficiente para resguardo dos direitos relativos aos presos.
O que verificamos é que para os presos não existem direitos humanos, e isso ocorre porque não se consegue ver nesse outro um ser humano, apenas um inimigo. No dizer de Eugenio Raúl Zaffaroni, “a essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pessoa”.
No período da ditadura civil-militar, aqueles que se opunham ao regime também eram tratados como inimigos, ou seja, despidos da condição de ser humano. O mesmo acontece nos dias de hoje, no Brasil, mas o inimigo agora é outro: o pobre, o negro, o jovem, os militantes de direitos humanos. Na Europa, acrescente-se que o inimigo também é o estrangeiro (percentual significativo dos presos); nos Estados Unidos, há maior destaque para os negros.
Essa visão de não portador dos atributos de pessoa também fica revelada no Judiciário. A título de exemplo: em sessão administrativa do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP), quando negado o pedido apresentado pela Procuradoria Regional Eleitoral para que fosse garantido o direito constitucional do voto do preso provisório, um desembargador afirmou: “Estamos querendo, na verdade, dar direito aos piores da sociedade, aos que estão presos”. Toda a carga de preconceito está atestada nessas palavras.
Sintomática, por essa ideologia, reforçada neste mundo globalizado, conhecida como direito penal do inimigo, é a massificação do encarceramento.
No Brasil, a prisão tem sido utilizada como mais um meio de controle. Os números estão a indicar essa política. Em 1995, tínhamos cerca de 150 mil presos no país e agora são cerca de 550 mil pessoas, uma das maiores populações de prisioneiros do mundo.
Quando se verificam os dados com o recorte de gênero, o grau de encarceramento é muito expressivo, pois, em relação aos homens, as taxas de mulheres presas triplicaram nos últimos tempos, sendo a maioria delas detida em razão de crime referente à Lei de Drogas.
O Brasil recebeu, em março de 2013, visita oficial do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenção Arbitrária, e o relatório preliminar revelou um dado pouco divulgado: o aumento da prisão de indígenas em relação à população carcerária, durante os últimos anos – acrescento que talvez pela intensificação da luta pela terra. Entre outros, também indicou a preocupação com o uso excessivo de privação de liberdade, já que cerca de 220 mil detidos não possuem condenação final e as prisões estão superlotadas.
É necessário escancarar as portas das prisões para que a sociedade brasileira saiba exatamente o que lá acontece. Isso somente ocorrerá se os mecanismos previstos para o combate à tortura forem efetivamente colocados em prática no país.
Há que se reconhecer que o Conselho Nacional de Justiça abriu uma porta, mas ela nada significa se juízes, promotores, defensores, advogados e sociedade não olharem para ela e, para além de olhar, agirem, cumprindo a função que lhes compete.
Os mutirões carcerários indicaram uma série de violações, várias delas filmadas e fotografadas. O registro das inspeções é assustador: vários Estados não garantem a assistência mínima de higiene com oferta de material apropriado; não há médicos e dentistas; um percentual irrisório de presos tem a possibilidade de estudar; poucos conseguem trabalhar; grande parte dos estabelecimentos é mista; em vários existem adolescentes; não há local para banho de sol; os presos se queixam da comida, muitas vezes servida estragada; em algumas prisões não há visita íntima para mulheres, apenas para homens; existem presos que cumprem penas em contêineres; não há separação entre presos provisórios e condenados; a superlotação é marca registrada do sistema; presos dormem no chão, fazendo revezamento; em algumas unidades foi constatado que há racionamento de água; detentos doentes estão misturados com presos sadios; há esgoto a céu aberto; algumas edificações correm risco grave de desabamento; muitas têm pouca ventilação, sem nenhuma luminosidade; algumas têm rede elétrica em situação precária; outras exalam um odor fétido, quase insuportável, de excremento humano; há prisões sem cama ou colchão para os presos; presos com problemas de saúde mental, que deveriam estar cumprindo medida de segurança, sem qualquer tratamento, estão misturados com outros presos; faltam agentes de segurança e assistência judiciária. As inspeções também constataram tratamentos humilhantes, degradantes, e aplicações de sanções ilegais.
Em relação às mulheres presas, o rol de violações é mais extenso, e as Regras de Bangcoc, documento regional que discorre sobre o tratamento das mulheres presas, são desconhecidas.
O maior indicador de violação de direitos humanos pode ser encontrado nas condições prisionais. Se o Brasil oferece essas condições de tratamento degradantes aos presos e presas, só podemos dizer que estamos muito distantes de alcançar o objetivo de construir uma sociedade justa e solidária, como escrito na Constituição. Para isso, precisaremos, primeiro, deixar de ver os presos como inimigos.
Kenarik Boujikian Felipe é Cofundadora da Associação Juízes para a Democracia e desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo.