O que esperar das eleições no Peru?
No dia 11 de abril, serão realizadas as eleições presidenciais e parlamentares que definirão os próximos cinco anos no Peru. Desde que foram às urnas em 2016, os peruanos e as peruanas assistiram à queda de três presidentes e a uma dissolução do Congresso. É esse o tamanho da crise política que nossos vizinhos andinos tentarão resolver
O contexto político
O primeiro passo no caminho da desestabilização foi dado em 2016, quando Keiko Fujimori perdeu a presidência por menos de 1% dos votos, mas seu partido conquistou a maioria no Congresso. De saída, a filha do ditador Alberto Fujimori prometeu marcação cerrada contra o presidente eleito, Pedro Pablo Kuczynski, ou PPK. Em 2017, porém, outro fato político se impôs: a colaboração entre o Ministério Público do Brasil e o do Peru deu início ao “Caso Odebrecht” naquele país. Partindo da delação de Marcelo Odebrecht, a equipe da Lava Jato peruana iniciou a investigação sobre pagamento de propinas por parte da Odebrecht a políticos e empresários peruanos, atingindo todas as principais lideranças, sem distinção ideológica.
Nesse contexto, o fujimorismo investiu contra PPK, que renunciou em março de 2018. Seu vice, Martin Vizcarra, chegou ao poder carregando a agenda anticorrupção debaixo do braço. Em outubro de 2018, Keiko foi presa preventivamente. Executivo e Legislativo viveram embates constantes, até que Vizcarra resolveu dissolver o Congresso e convocar eleições parlamentares suplementares. Ocorridas em 2020, as eleições revelaram um Congresso muito mais fragmentado, com um golpe certeiro no fujimorismo: uma redução de 80% da bancada.
Os dois poderes poderiam parar no empate, mas no dia 9 de novembro de 2020, em plena pandemia, o Congresso resolveu derrubar outro presidente. Assumiu, então, o seguinte na linha sucessória: o chefe do Legislativo, Manuel Merino. O processo foi visto como um golpe parlamentar oportunista, irresponsável e corrupto. Nos seis dias seguintes, o Peru assistiu a uma das maiores manifestações de rua de sua história — senão a maior. Com a gigantesca pressão das ruas, amplificada pela morte de dois jovens em decorrência da repressão policial, Merino renunciou à presidência no dia 15. Depois de dois dias de vácuo de poder, os congressistas resolveram alçar à presidência o único partido que votará em bloco contra o golpe: o Partido Morado, de Francisco Sagasti.
O cenário eleitoral
A três semanas do pleito, nenhuma das 18 candidaturas em disputa tem lugar garantido no segundo turno. Simulação de votação do IPSOS/El Comércio traz o seguinte cenário: Yohny Lescano (16,8%), George Forsyth (11,2%), Rafael López Aliaga (9,3%), Keiko Fujimori (8,6%), Verónika Mendoza (8,4%), Daniel Urresti (5,1%), Hernando de Soto (4,8%), Julio Guzmán (3,1%), Pedro Castillo (3%), César Acuña (2,6%), Ollanta Humala (2,2%), Daniel Salaverry (1,9%), Alberto Beingolea (1,2%), Marco Arana (0,7%), dentre outros. Brancos e nulos saem na frente, com 19,6%.
O ex-presidente Humala (2011-2016) vê sua candidatura patinar, o que se deve ao fato de ter sido preso preventivamente no caso Odebrecht, além de ser considerado traidor pela esquerda. Nesse lado do espectro, encontra-se Arana, que integra o Frente Amplio (FA), partido que surgiu de uma dissidência do Partido Nacionalista Peruano de Humala. O FA ficou mal visto por ter formado maioria a favor da deposição de Vizcarra, e corre o risco de sequer ter cadeiras na próxima legislatura. Já Mendoza é, sem dúvidas, a maior liderança da esquerda peruana atualmente, e traz consigo o capital político de ter sido a terceira colocada nas eleições presidenciais de 2016. À época, a ex-congressista concorreu pelo FA, mas rachou com o partido e tentou fundar o próprio, Nuevo Peru, que, sem conseguir obter registro eleitoral a tempo, juntou-se à agremiação Juntos por el Perú. De fora do grupinho, Castillo é conhecido por sua participação na greve de professores de 2017, concorre pelo Peru Libre e vem crescendo aos poucos nas pesquisas.
À direita, o neoliberalismo autoritário e conservador do fujimorismo finalmente encontrou um oponente à altura: López Aliaga. O empresário, dono de companhia de trens, é candidato pelo Renovación Popular e se parece bastante com a extrema-direita contemporânea: ataca a imprensa, possui um exército virtual, mente compulsivamente, apela ao hiperconservadorismo e ao anticomunismo. Fujimori, por sua vez, tenta resgatar a imagem de estabilidade econômica do governo do pai, enquanto perde terreno para o adversário no enfrentamento à esquerda. Brigando com Aliaga pelo título de “Bolsonaro peruano”, Urresti, que comandou a Polícia Nacional no governo Humala, investe no discurso da lei e da ordem, mirando em sua campanha os “delinquentes venezuelanos”.
Na centro-direita, o famoso economista De Soto postula pelo Avanza Peru e ocupa o espaço do (neo)liberalismo esclarecido. Salaverry, por sua vez, conseguiu convencer o bem avaliado Vizcarra a concorrer ao Congresso pelo seu partido, Somos Peru. O presidenciável vê sua estratégia escorrer pelo ralo com o avanço de investigações sobre o ex-presidente, que se soma a uma série de declarações polêmicas sobre questões sanitárias e o escândalo do Vacunagate, isto é, a descoberta de que Vizcarra e membros de seu governo tomaram a vacina da Sinopharm secretamente, quando esta foi testada no país. Forsyth está no Victoria Nacional, referência a La Victoria, distrito do qual foi prefeito, com gestão marcada pelo combate ao crime — com foco na repressão a imigrantes. Ídolo do futebol peruano, “Forzay” é ex-goleiro do Alianza Lima e liderou todas as pesquisas até fevereiro, quando sua absoluta falta de propostas ficou evidente.
No grupo do liberalismo político, Guzmán, do Partido Morado, tornou-se a grande aposta depois dos protestos de novembro passado, contexto em que seu partido representava o anti-golpismo e a estabilidade política. No meio do caminho do candidato a representante da geração do bicentenário, porém, havia um governo Morado. Sagasti coleciona altos índices de reprovação, sobretudo porque seu governo não é capaz de dar respostas efetivas à pandemia e foi manchado pelo Vacunagate, com a queda de duas ministras envolvidas no escândalo. A surpresa maior, entretanto, é a ascensão sustentada de Lescano, do Acción Popular. O partido foi criado nos anos 1950 e é constituído por facções regionais e ideológicas. Mas mais do que isso, Acción Popular é o partido de Merino, o golpista escorraçado da presidência pelas ruas. Pondo em perspectiva, fica a dúvida: o golpe venceu?
A candidatura de Yohny Lescano é complexa. Em primeiro lugar, o ex-congressista concorre por um partido tido como corrupto, mas tem como uma de suas principais pautas o combate à corrupção — Lescano critica os acordos de delação premiada da Lava Jato peruana por serem muito lenientes com os corruptos. O presidenciável se encontra na agremiação que planejou e executou o golpe parlamentar, mas critica o processo e se põe contra a facção de Merino. E essas não são nem as maiores contradições… afinal, Lescano é de direita ou de esquerda?
O postulante tem certamente inclinação conservadora na pauta dos “costumes”: crê que o direito ao aborto só deve valer em caso de risco para a vida da gestante, rejeitando outros casos, como gravidez em decorrência de estupro. Na pauta econômica, entretanto, o candidato pende à esquerda: propõe investimento público em obras para a geração de empregos, a regulação da taxa de juros e do preço dos remédios, bem como a criação de empresas públicas para gerir áreas deficitárias. E mais: Lescano se alinha a todos os candidatos de esquerda na proposição de uma nova constituição, para pôr fim às amarras econômicas da Constituição elaborada pela ditadura Fujimori.
O que esperar
Até aqui, as pesquisas de opinião mostram um panorama de muita incerteza, mas ao menos três tendências se destacam: a queda de Forsyth; o crescimento de Lescano e López Aliaga; e um segundo pelotão estagnado, ocupado por Mendoza e Fujimori. Para o Congresso, o Acción Popular sai na frente e deve ter a maior bancada, que, em contrapartida, ainda estará longe da maioria fujimorista de 2016. A esquerda provavelmente será representada apenas pelo novato Juntos por el Perú, desbancando os partidos de Arana e Humala.
Em termos gerais, é importante pontuar duas regras eleitorais, que afetam radicalmente o pleito no Legislativo. Aprovada em 2019, a proibição à reeleição direta de parlamentares atinge aqueles eleitos em 2016 e 2020, ou seja, 260 parlamentares com alguma experiência no Congresso não poderão se eleger. Assim, será uma composição completamente nova, com pessoas que não vivem o cotidiano legislativo há, pelo menos, 5 anos. Além disso, em 2020, foi aprovada a paridade e a alternância de gênero nas candidaturas majoritárias e proporcionais, isto é, os partidos tiveram que apresentar listas fechadas com número igual e alternado de homens e mulheres — há, porém, o voto preferencial, pelo qual os eleitores passam na frente seu candidato preferido, o que torna a lista maleável e pode resultar na manutenção da desigualdade de mandatos em termos de gênero. Com grande visibilidade em seus partidos, as candidatas Gahela Cari, do Juntos por el Perú, e Susel Paredes, do Partido Morado, podem fazer história caso se tornem, respectivamente, a primeira congressista trans e a primeira congressista lésbica no Peru.
A corrupção segue como um dos principais temas no debate público, elevando o patamar moral que os candidatos devem alcançar e culminando em propostas como a expulsão da Odebrecht do Peru — não sem antes deixar uma boa quantia no país. López Aliaga encampa o tema, mas prefere focar nos pânicos morais e religiosos (como o “enfoque de gênero”) e no anticomunismo. No Peru, o “terruqueo”, isto é, a associação imediata de pessoas de esquerda ao terrorismo, é algo constante e poderoso, dada a proximidade temporal com a atuação de guerrilhas como o Sendero Luminoso, nos anos 1990. Keiko mobiliza o combate às guerrilhas como triunfo do pai, mas prefere se ater a seus sucessos econômicos: promete combater o “populismo” e gerar crescimento — nisto se aproxima de Hernando de Soto.
Yohny Lescano se esquiva da pecha de esquerdista para não ser “terruqueado”, enquanto Verónika Mendoza constrói alianças com a esquerda latinoamericana, como evidencia sua conversa virtual com Evo Morales, em plena campanha. Lescano aposta numa espécie de nacional-desenvolvimentismo moralizador, que ele denomina “economia social de mercado”.Essa proposta se baseia na atuação do Estado para fomentar o crescimento econômico e melhorar as condições de vida da população. “Vero”, por sua vez, centra seu programa na defesa dos recursos naturais e da cultura peruana, destacando ainda o papel central do Estado na superação da pandemia e seus efeitos. Em comum, ambos defendem uma nova constituição que, dentre outras coisas, permita maior participação do Estado na economia. Essa pauta é rechaçada pela direita neoliberal, pelos fujimoristas e por quase toda a mídia, uma vez que entendem que mudanças podem ser feitas na Constituição vigente e que esta não permite, por vias legais, um novo processo constituinte.
Finalmente, o caso brasileiro ensina que uma eleição sozinha não é capaz de solucionar uma crise política de grandes dimensões. A incisividade da Lava Jato peruana produziu forte desconfiança da sociedade em relação à política e gerou pressão para a aprovação de medidas que podem, na verdade, fragilizar ainda mais o sistema político — como o fim da reeleição e da imunidade parlamentar e presidencial. Além disso, a volatilidade dos partidos e a permanência de manobras jurídicas como a moção por incapacidade permanente, um “impeachment express”, podem manter ou mesmo agravar a crise entre Executivo e Legislativo. A crise se agravará, sobretudo, se o parlamento seguir fragmentado e o governante se recusar, mais uma vez, a fazer alianças.
Por outro lado, a extrema-direita voraz toma o lugar do fujimorismo comportado e pode ferir de morte os pilares da democracia liberal no país, como a liberdade de imprensa e os direitos fundamentais. Nesse sentido, é particularmente perigosa a virulência dos “porkytrolls”, seguidores de López Aliaga, que cada vez mais se cacifa como o Bolsonaro peruano. Se a cena parece desoladora, talvez a geração do bicentenário tenha ainda alguma carta na manga, afinal não é qualquer geração que reverte um golpe com mobilização popular, dando a própria vida.
Raul Nunes é mestre e doutorando em Sociologia pelo IESP-UERJ e membro do Observatório de Movimentos Sociais da América Latina.