O que Tati Bernardi nos ensina sobre intelectualidade?
A luta contra o elitismo acadêmico não pode ser confundida com a luta dos reacionários contra a intelectualidade. A segunda é a morte de qualquer oportunidade de ascensão das massas da população em pró de um bem-estar coletivo. Tenho orgulho de dizer que ela é minha conterrânea do Tatuapé. Suas entrevistas com profissionais brasileiras são de grande ensinamento político, cultural e social para nós
Embora algumas pesquisas apontem que a geração Millennial é a mais pobre da história, tivemos o privilégio de acompanhar a evolução tecnológica recente e uma geração de profissionais que expressa segurança, maturidade e flexibilidade. Tati Bernardi é escritora, roteirista e publicitária. Tem 45 anos e é natural do Tatuapé, mais precisamente do Parque São Jorge, local de crescimento induzido pelo processo de industrialização de São Paulo no início do século XX, onde também está a sede social do Corinthians e a quadra da escola de samba Acadêmicos do Tatuapé. Um dos seus trabalhos mais interessantes é o conjunto de entrevistas que realizou no seu videocast em Universa/UOL, Desculpa alguma coisa, e no podcast Se ela não sabe, quem sabe? da Folha de São Paulo, onde construiu uma série de conversas das mais diversas e humanas. É declaradamente de esquerda, sobretudo petista, influenciada por sua mãe que exigia respeito ao futuro presidente Lula, até então o homem que mudaria o país, quando ainda era um sindicalista que liderava as greves em diferentes fábricas da metrópole, inclusive uma em frente à casa do Parque São Jorge. Por outro lado, precisou lidar com as posições ideológicas do pai que seguiram outro percurso, da extrema direita, onde chegou a entrevistá-lo e escrever sobre os desafios dessa relação.
Tati recebe críticas frequentes por meio de comentários nas redes sociais a respeito da maneira como conduz as entrevistas, considerada como uma intromissão às falas dos convidados. Do meu ponto de vista, é justamente o modo descontraído e complexo que dá o tom do seu trabalho, pois provoca inquietações necessárias para a condução dos seus entrevistados, além de popularizar assuntos ainda considerados herméticos e de difícil compreensão por boa parte da população. Até mesmo as conversas menos politizadas contêm reflexos de valor político, onde contradições são reveladas de ambos os lados, seja do entrevistado, seja da própria entrevistadora. É impressionante o quanto que seu método de entrevistar é capaz de nos fazer pensar sobre tantos assuntos ao mesmo tempo. Tati é explosiva.
Por aqui, vamos destacar algumas entrevistas feitas com profissionais das mais brilhantes e renomadas do Brasil: Marisa Orth, Luana Piovani, Ingrid Guimarães, Fernanda Torres, Dira Paes, Mariana Xavier e Natuza Nery.
Em meio aos assuntos pessoais e profissionais que envolvem sexo, relacionamentos, família e carreira, existem pontos específicos que formam um auge de ensinamentos políticos por meio da cultura, seja pelo trabalho das atrizes e da jornalista, seja pelos seus aprendizados ao longo da vida e os fios soltos das conversas que constroem uma constelação de ideias sobre nós mesmos, em sociedade.
O conservadorismo e falta de investimentos na Cultura – Marisa Orth
Marisa ressalta sua preocupação com a vigilância de uma militância que, ainda que seja importante e que deve persistir no seu fortalecimento, acaba caindo em valas de cerceamento perigosas, que retiram da Arte o lugar de questionamento. Por muito tempo, pessoas negras tiveram um duro (e duplo) trabalho para alcançar espaços profissionais de maior prestígio e remuneração. Evidente que o percurso ainda é longo, mas já foi pior, em gerações que normalizaram pessoas negras quase sempre em personagens de subemprego, como faxineiras, porteiros e babás. Mesmo em posição de protagonismo e lugar de privilégio nas tramas, atrizes negras já sofreram com cenas de enorme racismo, como Taís Araújo em Viver a Vida, onde sua personagem era severamente humilhada pela personagem de Lilia Cabral, que interpretava uma mulher típica da elite carioca. Antes ainda, em Da Cor do Pecado, onde o próprio título da novela já confere a sexualização da mulher negra. Portanto, é básico que tenhamos o fortalecimento do movimento negro em diferentes esferas da política, da mesma forma que o escalonamento de políticas de gênero fomentadas pelos avanços dos movimentos feministas. Entretanto, parece que a tentativa de um politicamente correto que provocou uma vigilância de quem cometeu alguma infração em suas falas, nos levou a um buraco sem fundo de dúvidas e ignorância, por supor um tipo de pódio da desconstrução que devemos alcançar. Aquela ideia abstrata de quem seria mais de esquerda por fomentar alguma ideia ou atividade cotidiana de suposto valor moral, como já falamos por aqui a respeito do que o cânone acadêmico e político construiu em torno das classes médias. Tati e Marisa também falaram da ignorância de muitos sobre a ditadura, evento dos mais dramáticos e violentos do país que ainda segue vivo em diferentes práticas políticas, como a violência policial nas favelas e nas periferias, destacadas pelo cientista social Thiago Torres, conhecido como Chavoso da USP, ao criticar o filme Ainda Estou Aqui. Discordo parcialmente da sua opinião em relação ao filme, mas respeito e endosso sua posição enquanto sujeito negro e periférico sobre a extrema violência contra seus similares no país. É indiscutível. Chavoso também destaca a falta de profundidade ao trabalho de Eunice Paiva pelos povos indígenas no filme, depois de se formar em Direito aos 48 anos. Entretanto, é oportuno retomar que o filme de Walter Salles é a respeito da experiência de uma única família durante a ditadura e não sobre o período autoritário como um todo. Desse modo, não cabe a nós tentarmos responsabilizar o filme por uma demanda muito maior do que ele seria capaz de arcar, o que foi discutido no programa Roda Viva, da TV Cultura, em entrevista com Marcelo Rubens Paiva, filho dos protagonistas do filme e autor do livro que baseou a produção cinematográfica. Inclusive, o mesmo nomeou algumas pessoas negras e periféricas que poderiam ter suas experiências com a ditadura brasileira contadas em filmes. Thiago, nascido e criado em favelas da Brasilândia (Jardim Vista Alegre e Jardim Elisa Maria), Zona Norte de São Paulo, e Marisa, oriunda da Vila Mariana, na Zona Sul, possuem uma zona de contato sobre o assunto: o apoio ao regime militar por parte da Rede Globo. Ambos refletem de maneira diversa, com Chavoso indo no caminho de perceber a zona de conforto e privilégio na produção do filme que envolveu a emissora, enquanto Marisa mostrou os devaneios de Regina Duarte entre seu sucesso na ditadura como “Namoradinha do Brasil” e sua passagem grotesca pelo governo de Jair Bolsonaro. Portanto, é imperativo compreender que a recorrente falta de investimentos na Cultura não é uma mera falta de tato de gestões políticas, mas conta com raízes profundas em um sistema conservador e autoritário que Marisa já explorou em comédias como Toma Lá, Dá Cá, na própria Rede Globo.
A ostentação que desvia a consciência da desigualdade – Luana Piovani
A ostentação é uma faca de dois gumes, que provoca sentimentos variados nas pessoas, tanto em quem ostenta, quanto em quem observa alguém ostentar. Se por um lado, é uma maneira de se apropriar e ter prazer com aquilo que um dia era algo distante, escasso, por outro, é um modo de hierarquizar o mundo, onde brilha mais quem possui mais recursos, sobretudo financeiros, em detrimento das injustiças sociais. Nas palavras de Piovani, compreendemos a crítica à ostentação que moldou os ricos do país e a fez buscar por uma outra educação e cultura para criar seus filhos em Portugal. É um movimento conhecido entre alguns artistas e acredito ser genuíno, embora precisamos vê-lo como um problema, efeito de um país que tem escolhido uma realidade de luxo para poucos e de miséria para muitos. Quando turistas vão ao Rio de Janeiro, principalmente nacionais, muitos escolhem a Barra da Tijuca para hospedagem. O lugar que foi criado para se diferenciar do restante da cidade, seja pelos grupos ascendentes, seja por elites que decidiram abandonar a Zona Sul, é formado por condomínios fechados que buscam isolar seus moradores por meio de uma proposta de autossuficiência, ainda que por uma quase completa dependência do carro, outro elemento de diferenciação e isolamento. É um modelo de produto imobiliário que ganhou espaço em todas as regiões do país, sejam urbanas ou rurais. O ponto é que a diferenciação social e espacial tem meandros no ódio e na discriminação, podendo ser observada em falas que tentam neutralizar tais violências, como “prefiro o sossego”, “busco segurança”, “lugares com gente bonita”. Se o condomínio fechado é tomado como a ode da segurança e da paz entre iguais, seu oposto imediato seria a favela, tida como horror e caos. Nem precisamos enfatizar que condomínios fechados são habitados, em grande maioria, por pessoas brancas, ao passo que as favelas têm maioria parda e preta – negra. É fato que não devemos normalizar a violência que nos acomete, sobretudo em cidades como o Rio de Janeiro, com tantos ataques graves e mortes envolvendo grupos criminosos, a polícia e os muitos conflitos entre eles. Entretanto, é perceptível o desejo de se distanciar de espaços que passaram a ser vistos como “maloca”, “bagunça”, “feiura” e “de menor importância”. O mesmo acontece com falas que se pretendem ostentar a possibilidade de circular e viajar internacionalmente, mas que extrapolam seus próprios limites ao depreciar as mesmas atividades realizadas em solo nacional. Até mesmo quem se coloca progressista politicamente já demonstrou esse tipo de faceta, ao ostentar (promover) algo internacionalmente para se diferenciar daquilo que considera inferior, de cunho local e nacional. Lugares como Balneário Camboriú atraem seguidores pela envergadura e opulência dos seus arranha-céus, enquanto outros como o Cantinho do Céu, na periferia da Zona Sul de São Paulo, recentemente beneficiado pelo sistema de balsas da prefeitura, recebem apelidos de “Cantinho do Inferno”.
O não-lugar do privilégio do lado de lá da fronteira – Ingrid Guimarães
Tati e Ingrid têm em comum o não-lugar de pessoas, em maioria, brancas, que se entendem por batalhadoras privilegiadas, já que não são herdeiras de velhas elites, mas contaram com uma base segura de pais trabalhadores de setores médios da sociedade brasileira. Em um país que pouco se conhece de verdade, que prefere voltar seus olhos para os Estados Unidos e a Europa, ainda persistem imaginários ignorantes e recheados de preconceitos sobre muitos lugares. Evidentemente, territórios periféricos seguem o primeiro lugar da lista, concentrando preconceitos e ódio declarado. Em seguida, surge o desconhecimento a respeito de zonas híbridas que se mantém um tanto cinzentas, de pouca clareza por parte das esquerdas, onde justamente as direitas ocupam espaço e passaram a construir bases importantes. É o caso do Tatuapé, Zona Leste de São Paulo, e de Goiânia, capital de Goiás e terra natal de Ingrid. O filme Minha Irmã e Eu, estrelado por ela, Tatá Werneck e Arlete Salles, consagra o lugar que, por tanto tempo, foi renegado: a de uma atriz de origem goiana que rompeu bolhas de maneira popular, ou seja, por um gigantismo de público dos mais variados, onde o objetivo do trabalho é nos fazer pensar por meio do riso. Falamos tanto do baixo investimento no setor da cultura, mas não percebemos as desigualdades internas do campo, ao menos em termos de reconhecimento e validação técnica de certos nichos. A comédia brasileira alcançou um sucesso de público estrondoso, sobretudo pelo trabalho de Ingrid na trilogia De Pernas pro Ar, mas em momentos de premiações do cinema nacional, foi ela e outros colegas que sofreram constrangimentos pelo próprio setor que ainda separa o cinema entre uma suposta vertente “inteligente” e outra “comercial”. No fundo, é a nossa própria segregação social que cria tais divisões para hierarquizar não somente atores e seus trabalhos, mas principalmente segregar os públicos, tal qual superior e inferior, em termos ideológicos e intelectuais. É perverso.
A confiança em relação às origens – Dira Paes
Pra quem coloca a atriz no lugar de periferia nacional, por ser uma mulher negra-amazônida de Belém do Pará, que fez um sucesso tremendo no papel de Solineuza na série A Diarista, onde sua aparência também é vista como margem pela hegemonia branca do Sudeste, se surpreende com sua trajetória de vida que provoca contradições nesses estereótipos tão difundidos. Sua trajetória familiar demonstra uma brasileira como tantas outras que já passaram por períodos de vacas gordas e magras. Entretanto, a atriz faz questão de iluminar as bases sólidas e trabalhadoras dos seus pais e irmãos, muito bem formados e situados. Aliás, Dira vem do grupo de atores do cinema antes de ir para novelas e outras produções na televisão. Entre as novas e velhas gerações, reforça a importância de o brasileiro trabalhar com quem não é amigo, o que nos faz pensar a respeito de tantas bolhas que criticamos frequentemente e ainda persistimos na dificuldade de rompê-las. Talvez, pela cultura do trabalho com amigos, entre outras questões. Outro ponto colocado por ela é o da falta de academicismo e rigor científico, uma vez que não somos pioneiros em nada. Da maneira como novas gerações têm se posicionado em seus trabalhos, parece que tudo é inovação, com supostas genialidades que surgem do nada, quando na verdade está faltando uma relação mais concreta com as universidades e seus espaços de formação, onde métodos científicos contribuem para o rigor profissional na cultura nacional. Para Dira, muita gente pode não ver, mas a câmera vê. Além disso, a atriz aborda a aprendizagem com a flexibilização de durezas da sua geração, como a sexualidade e a reinvenção de nós mesmos a partir dos erros, por se arriscar nas tecnologias, entre outras dinâmicas relevantes ao processo de amadurecimento.
A intelectualidade (nem tão padrão assim) que nos orgulha – Fernanda Torres
Burguesa da Zona Sul do Rio de Janeiro e cotada ao Oscar de Melhor Atriz, minha geração conhece Fernanda Torres pelos seriados de comédia da TV Aberta, como Os Normais e Tapas e Beijos, onde interpretou papéis dos mais divertidos e inteligentes. Fátima, ao lado de Sueli (Andréa Beltrão), nos carimbava semanalmente com trapalhadas entre o Méier e Copacabana, entre o subúrbio tradicional da Zona Norte e o famoso bairro da Zona Sul carioca. Fernanda é a união entre a intelectualidade dramática, tão valorizada pelo cânone, e a comédia popular, mas é a segunda que conquistou o público que está fazendo coro pelo seu Oscar em 2025 por Ainda Estou Aqui. Não é por acaso que tantos comentários nas redes sociais destacam suas personagens das comédias mencionadas como as reais concorrentes ao Oscar, pois conquistaram o público com intensidade e carisma. Filha de Fernanda Montenegro, uma das mais premiadas atrizes do país e ainda vivas da sua geração, ela faz questão de diferenciar suas maneiras de ser e agir conforme seus respectivos lugares no tempo e na sociedade, onde sua mãe seria uma operária do subúrbio, até hoje um pouco confusa a respeito de como teria chegado onde chegou na sua carreira. Já Fernanda, a filha, nasceu e cresceu em um berço de ouro construído pelos pais, ou seja, se declara uma burguesa da Zona Sul carioca, conhecida por sua intelectualidade progressista que, para ela, é justamente o grupo que está mais confuso em relação à sua real importância e contribuição no país. Como falado por ela na sua entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, é o branco progressista e libertário que está perdido e não precisa mais ser o porta-voz do país ao fim da ditadura, onde destacou o podcast Mano a Mano, de Mano Brown, como um trabalho educativo da maior qualidade, de um cara que sabe exatamente o que quer. Fernanda Torres foi a vencedora do prêmio de melhor atriz de drama no Golden Globes 2025, proporcionando uma avalanche de orgulho aos brasileiros durante a madrugada da última segunda-feira. O clima de Copa do Mundo nos sugere um entendimento ainda maior do que ocorreu: Fernanda venceu atrizes da elite de Hollywood, como Angelina Jolie, Tilda Swinton, Kate Winslet, Nicole Kidman e Pamela Anderson, sendo a única forasteira a falar uma língua que não fosse o inglês, na sua primeira indicação ao prêmio. Como ela contou em entrevista ao Entertainment Tonight, é uma surpresa que um filme feito a respeito de uma história tão local, com uma perspectiva tão particular dentro da sua cidade e em português, tenha desbancado o alto escalão estadunidense. As horizontalidades brasileiras teriam estalado nos tetos de vidro da indústria cinematográfica do imperialismo dos Estados Unidos, como explicamos esse conceito em um outro momento.
A persistência dos próprios valores e posicionamentos – Carolina Dieckmann
Carolina Dieckmann passou por uma violência de exposição de fotos íntimas e cedeu seu nome a uma lei brasileira que viria a proteger pessoas desse tipo de situação. É uma atriz dedicada e muito conhecida, mas o que chama atenção é seu autoconhecimento que busca uma relação de cuidado e respeito entre ela e os outros. Nesse sentido, a entrevista com Tati Bernardi coloca alguns pontos de reflexão sobre a construção de uma intelectualidade que permita errar, aprender e mudar de opinião quando necessário, ainda mais se o objetivo em comum for o bem-estar social e coletivo. Ambas dialogam a respeito da decisão de Ricardo Darín, premiado ator argentino, ao se recusar a ir ao Oscar e trabalhar na indústria cinematográfica de Hollywood. Por que valorizar uma ideia de sucesso profissional sem limites, na qual ajudamos a inflamar um sistema hierárquico global em torno do trabalho e da nossa constante insatisfação com nós mesmos? Talvez o capitalismo tardio nos explique alguma coisa. Em suma, se Darín está bem e confortável com seu sucesso na Argentina, é uma questão que diz respeito a ele e está tudo bem. O mesmo é válido para temáticas sobre os relacionamentos, sejam amorosos ou de amizades, em que temos liberdade para abrir mão e deixar para trás quando não faz mais sentido sua permanência em nossas vidas. A monogamia passou a ser criticada com veemência por seu vínculo com o patriarcado, onde o modelo de relacionamento aberto ganhou força. Contudo, se somos favoráveis a um modelo de sociedade livre e que assegure direitos básicos, é necessário compreendermos que o conjunto da sociedade envolve seus direitos individuais de escolha e condições particulares, sobretudo de gênero, sexualidade e seus formatos de relacionamento. Não é só importante pensarmos no outro, como também sermos honestos com nossa própria identidade, princípios e valores na construção de uma intelectualidade que seja mais flexível às múltiplas nuances que buscam preservar e transformar a sociedade.
O amadurecimento individual e a consciência coletiva – Mariana Xavier
Mariana Xavier despontou como atriz no papel de Marcelina, filha de Dona Hermínia (interpretada pelo eterno Paulo Gustavo), na trilogia Minha Mãe é uma Peça, um dos maiores sucessos do cinema nacional. Não por acaso, sempre teve holofotes voltados para o seu corpo, com aquele olhar preconceituoso de um país que se orgulha pela exportação de modelos dentro dos padrões ocidentais de magreza, mesmo com todos os problemas de saúde advindos da opressão ao corpo ideal, físicas, emocionais e psicológicas. Embora seja pedante destacar sua militância pelo corpo livre, já que também somos contra reduzir a atriz a esse aspecto e personagens, é importante ressaltar sua importância multiescalar, onde soube utilizar de maneira impecável seus aprendizados individuais para uma construção de valor coletivo e interesse público. Mariana soube refletir e aglutinar aspectos diversos das opressões sobre nossos corpos, tanto que uma das suas peças teatrais mais recentes é o monólogo Antes do Ano que Vem, com texto de Gustavo Pinheiro, que trata da luta contra o suicídio. O nome da peça reforça o período de festas de final de ano, uma vez que é quando mais pessoas pensam em tirar suas vidas diante de um momento que praticamente nos oprime com uma felicidade quase forçada, em volta no sentimento de que estão todos felizes, menos você. Outro ponto relevante da conversa entre Tati e Mariana botou luz na obsessão pelo corpo e aparência padrão do universo de homens gays, no qual tenho propriedade e posso dar completa razão a elas. Além das mulheres, homens gays também abusam de produtos e modos de vida nada saudáveis para alcançar um suposto padrão que, em complemento ao diálogo delas, é crucial destacar a camada racial, onde corpo é também raça, cultura e identidade, outras violências que se somam ao conteúdo físico. Mariana é sagaz ao afirmar que a aceitação dos nossos corpos condiz com nossas vidas, onde muitas vezes teríamos que ser outras pessoas para que tivéssemos outros formatos de corpos. E o mesmo vale para o psicológico, tão basilar quanto qualquer outro aspecto da vida.
A afronta ao sistema misógino – Natuza Nery
Natuza vem de natureza. A jornalista e comentarista política se destaca como uma das mais importantes e brilhantes do Brasil. Se tornou ainda mais conhecida por comandar o podcast O Assunto, do G1, onde entrevista pessoas das mais diversas e competentes a respeito dos assuntos quentes do momento, em ritmo diário, sobre política, educação, mudanças climáticas, economia, saúde mental e tantos outros. Na posição de entrevistada, ouvimos sobre o caminho amplo e complexo trilhado por ela, com ênfase na perda de seu pai durante o intenso trabalho nas eleições presidenciais de 2022. Sua emoção na posse do terceiro mandato de Lula, não era somente pelo retorno aos rumos da democracia, mas envolvia o gatilho da perda do pai que foi quem escolheu seu nome. Natuza entrelaça a paixão e competência pelo trabalho, com o amor e o comprometimento com a família e suas amizades. Tati destacou o papel das mulheres na Globo News, com uma quantidade significativa de jornalistas do sexo feminino a frente da temática política. Um dos destaques foi o programa Papo de Política, que conduziu junto de Maria Júlia Coutinho, Júlia Duailibi e Andréia Sadi. A lembrança de Cristiana Lôbo como pioneira entre as mulheres jornalistas de política também é de máxima importância histórica. Recentemente, Natuza sofreu uma ameaça de um policial militar em um supermercado, um claro reflexo ao seu trabalho que conta com a denúncia do aumento da violência policial em São Paulo, sob o governo Tarcísio de Freitas. E é lógico que estamos com Natuza.
Tati Bernardi é uma das maiores comunicadoras do momento e precisa ter seu valor e contribuição destacados. Seus perfis dos entrevistados são de longe os melhores pelo humor, afeto e desconstrução. Ela emana por novos pontos de vista para a construção de uma intelectualidade plural e diversa, mas com o objetivo em comum de enfrentar as desigualdades e a empreitada autoritária que tenta tomar o país e o mundo.
Lucas Chiconi Balteiro é arquiteto e urbanista, mestrando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo na FAU/USP e membro dos grupos de pesquisa “Cultura, Arquitetura e Cidade na América Latina” (CACAL, FAU/USP) e “Cidade, Arquitetura e Preservação em Perspectiva Histórica” (CAPPH, UNIFESP).