O revival da Unasul: uma contribuição ao debate
A Unasul se baseou em um hiperpresidencialismo de cúpulas que, por muitas vezes, personalizou os papéis dos países na organização. É necessária uma reestruturação mais ampla, com maior participação do seu conselho de ministras e ministros das relações exteriores
No dia 06 de maio de 2023 o Brasil passará a reintegrar oficialmente a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), em um movimento de retomada de suas principais alianças internacionais. O reingresso do Brasil e a esperada volta da Argentina, duas das maiores economias sul-americanas, sinalizam a reativação da Unasul, cabendo a reflexão sobre as perspectivas nesse revival da organização.
De acordo com nota do Ministério das Relações Exteriores do Brasil de 07 de abril de 2023, dia em que se anunciou a volta do Brasil à Unasul, o objetivo da organização é fomentar a integração regional na América do Sul, integrando o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a Comunidade Andina (CAN), mas indo além da esfera econômica, contemplando os âmbitos social, cultural, científico-tecnológico e político, contribuindo para o desenvolvimento da região.
O decreto presidencial nº 11.475, do dia 06 de abril de 2023, reformaliza a adesão do Brasil ao Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas de 2008, realizada inicialmente por ocasião do segundo mandato do presidente Lula da Silva, ratificada pelo Brasil em 2011, e vigente até 15 de abril de 2019, quando, sob o governo de Jair Bolsonaro, o Brasil suspendeu a sua participação, em função de divergências políticas e ideológicas.
A entrada original brasileira na Unasul foi acompanhada do ingresso dos outros onze estados sul-americanos, no contexto da denominada onda vermelha (ou rosa, como alguns preferem chamá-la), em um momento de convergência política entre governos com certo acento de centro-esquerda, confiantes nas possibilidades de efetiva cooperação entre países do chamado Sul-Global, sob o ideário de um regionalismo pós-liberal, que busca maior autonomia frente a poderes hegemônicos extrarregionais, especialmente os EUA, e uma maior projeção da região, de forma uníssona, no sistema internacional.

O surgimento da Unasul se deu em um contexto de reconhecimento das diversidades dos países da América do Sul. A pretensão era buscar articular um espaço econômico e político sul-americano para estimular a associação entre os países para tratar problemas comuns, ainda que em graus diferenciados, em meio às discussões sobre a necessidade de tratamento das assimetrias no subcontinente.
Do ponto de vista geopolítico global e regional, o cenário atual é mais complexo e incerto, dependente de concertações políticas que serão construídas ou readequadas. No âmbito da América do Sul, a reconstrução desta iniciativa de integração regional dependerá de alguns fatores, tais como a necessária estabilização política dos países-membros, garantindo um sentimento de paz no entorno regional; da situação interna do Brasil, o incontestável líder regional, que se encontra politicamente muito dividido; da retomada do crescimento econômico, condição fundamental para a busca de resolução de problemas centenários na região, como a desigualdade, pobreza e violência; das definições de disputas eleitorais em países da região, onde se observa a ascensão de candidatos identificados com a extrema direita.
Em seus anos de existência efetiva, a Unasul trouxe resultados controversos, cabendo assinalar que seu colapso freou o andamento de um necessário período de maturação da organização para consolidar muitas das suas iniciativas. O desmonte da sua sede construída no Equador simboliza essa desintegração da organização, embora, de fato, ela nunca tenha deixado de existir, já que se mantinha, em tese, com a permanência da Bolívia, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.
Organizações internacionais precisam de tempo para que seu arcabouço institucional traga resultados e a história da Unasul tem demonstrado pouca tolerância a isso. O precoce fracasso do Foro para o Progresso da América do Sul (Prosul), aventado como substituto da Unasul, reforça as dificuldades em torno da integração regional sul-americana e, paradoxalmente, ressalta os poucos êxitos da Unasul.
Entre os maiores êxitos relativos da Unasul, apontam-se as missões eleitorais e a cooperação entre os sistemas de saúde pública. Para cada um dos casos mais ou menos bem-sucedidos há um significativo número de óbices, o que ilustra a necessidade de uma maior atenção ao redesenho da organização.
A Unasul, em seus mecanismos de tomada de decisões, se baseou em um hiperpresidencialismo de cúpulas, em uma Diplomacia Presidencial que, por muitas vezes, personalizou os papéis dos países na organização.
É necessária uma reestruturação mais ampla, com maior participação do seu conselho de ministras e ministros das relações exteriores, de uma Secretaria-Geral mais assertiva, de maior transparência das decisões do conselho de delegadas e delegados e conselhos setoriais, sendo muito importante investir na transparência nas tomadas de decisões como um claro compromisso com práticas democráticas.
Cabe também observar o processo de tomada de decisões em consenso, que no caso da Unasul não significa unanimidade, mas, sim, ausência de oposição explícita de qualquer membro. Isso produziu efeitos nefastos, como em 2017, quando não se conseguiu eleger um novo secretário-geral por discordância de poucos países.
As iniciativas de integração regional procuram estimular a construção de uma identidade mais ampla que a identidade nacional e local, o que, de alguma forma, é um ganho civilizatório. Organizações como a Unasul podem contribuir para a resolução de problemas regionais (estruturais e/ou conjunturais) que ainda perduram, como a ainda precária integração e modernização da infraestrutura produtiva, que, no nosso entender, deve ser precedida de um plano de ordenamento territorial da América do Sul que garanta a preservação do meio ambiente e dos direitos de povos tradicionais, cuja logística favoreça a geração de empregos e a valorização de dinâmicas econômicas regionais.
Também são essenciais medidas para o enfrentamento da pobreza, da violência e das diversas formas de insegurança, possibilitando melhorias nas condições de vida. Uma organização regional eficaz pode ser importante instrumento nas constantes instabilidades sociais, políticas e econômicas na região.
Iniciativas de integração regional na América do Sul já nasceram e morreram por diversas vezes, repetindo “velhos erros tão banais”. O revival da Unasul significa uma carta de intenções, que, para se efetivar, precisa ser acompanhada de muita vontade política e de rearranjos, em novos e mais efetivos moldes, a partir da estrutura já construída.
Claudete de Castro Silva Vitte é geógrafa, professora do Instituto de Geociências da Unicamp e pesquisadora do CNPq. Co-organizadora do livro Geografia das Relações Internacionais da América Latina e Caribe: temas e debates, editora Appris, 2023.
Ricardo Luigi é geógrafo e internacionalista, professor da Universidade Federal Fluminense. Autor da tese de doutorado A integração regional na América do Sul: a efetividade da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), Unicamp, 2017.