Uma relação de amor e ódio entre democracia e capitalismo
Quando os candidatos das esquerdas lideram as pesquisas de intenção de voto, a mídia logo divulga a insatisfação do mercado, explana os números negativos da Bolsa de Valores, como está fazendo a imprensa argentina depois da vitória nas primárias da chapa de Cristina Kirchner.
Como é possível que, depois do movimento Occupy Wall Street, totalmente contrário às elites financeiras dos EUA, um magnata como Donald Trump tenha vencido as eleições? Como o filho de um presidente declara que, “por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos”?
A explicação deve levar em consideração o fato de que o capital direciona o nosso ódio para a democracia quando esta começa a ameaçá-lo. De acordo com a cientista política Ellen Wood, não há capitalismo em que o poder popular seja privilegiado em relação a acumulação e a maximização dos lucros. Portanto, o capitalismo tolera uma democracia limitada e ataca quando os limites permitidos são ultrapassados.
Quando é afetado por suas crises habituais e, consequentemente, vislumbra uma ameaça popular, o capital logo financia discursos e instituições que criticam violentamente os direitos civis. Neste processo, a Igreja é a instituição mais cotada para promover uma investida contra as liberdades individuais possíveis de ser alcançadas em um regime democrático.
Em pleno século XXI, ela ainda exerce um grande poder. Mas também temos a movimentação de políticos populistas e de organizações que se dedicam a disseminar esse ódio à democracia, salvando assim o capital.
Extrema direita
Isso explica a ascensão da extrema direita em várias partes do mundo Ocidental nos últimos anos. Neste contexto, quando os candidatos das esquerdas lideram as pesquisas de intenção de voto, a mídia logo divulga a insatisfação do mercado, explana os números negativos da Bolsa de Valores, como está fazendo a imprensa argentina depois da vitória nas primárias da chapa de Cristina Kirchner.
O mercado conduz o ódio à democracia para poder limitá-la, agindo por meio de diversos mecanismos, como a Igreja, think tanks e, mais recentemente, financiando fake news. Quanto maior for o indício de desmercantilização da democracia, mais protuberante se torna a ameaça ao capital.
Deste modo, este último age contendo os avanços democráticos, como vemos claramente no Brasil de hoje, onde não somente os direitos trabalhistas estão sendo retirados, como debates envolvendo questões progressistas (casamentos entre o mesmo sexo, legalização das drogas, aborto, meio ambiente etc..) estão retrocedendo.
Se os direitos sociais se expandirem, o capital não será capaz de conter a ambição democrática por liberdade, o que poderia abalar as estruturas de um sistema que prioriza mais o funcionamento do mercado que o melhoramento da vida humana.
Não podemos negar que houve uma melhora na vida humana, principalmente no acesso aos direitos básicos, mas é justamente porque a democracia atingiu, nos últimos anos, os limites tolerados pelo capital que precisa ser contida.
Desinvestimento
Parece que iniciamos um momento de contração da democracia para se pôr abaixo algumas barreiras que limitam a expansão desarrazoada do capital. Isso explica até mesmo o desinvestimento na Educação, fenômeno que também aconteceu na Europa.
A educação científica fornece o conhecimento necessário para compreender que o gênero é uma invenção social, que a religião é um ramo da cultura, que a devastação do meio ambiente causa impactos fulminantes, que a desigualdade social é fruto da concentração de renda e não uma questão natural etc. Estas questões desencadeiam lutas, uma exigência de poder por aqueles que não controlam a estrutura tradicional sobre a qual o capital se instalou.
E lutas, dentro de uma sociedade que preserva a desigualdade, que se alimenta dela, podem desembocar em outras lutas: uma revolução por minuto.
Enfim, esta contração, que engorda discursos religiosos e emagrece discursos científicos, pretende, principalmente, tirar o foco da insatisfação em relação às elites econômicas e manipular o inconformismo popular.
Raphael Silva Fagundes é doutor em História Política pela UERJ e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.