Parque Campana e o potencial da arte para a educação, a inclusão, e a cultura democrática
No parque, peças compõem, num mesmo mosaico, uma nova imagem do mundo e, juntas, formam uma grande identidade artística para o novo milênio
Costumeiramente, no início de cada milênio, os homens imaginam um novo destino para o mundo, sobretudo após eventos traumáticos, como é o caso da pandemia e das recentes catástrofes climáticas. A arte, no seu sentido mais amplo, incluindo as artes visuais, a poesia, a música, as artes performáticas, a arquitetura e a arte do pensar, ou seja, a filosofia, indaga sobre seu próprio significado hoje na sociedade global, midiática, tecnológica e materialista, dominada pela economia.
Desde sempre, a arte nos dá uma demonstração cabal de sua capacidade de atuar como processo desencadeador de mudanças e de gerar mundos que não necessariamente pertencem a lugar nenhum. Inevitavelmente, a arte também atua como forma de questionar e repensar o novo papel do artista, ou ainda sugerir que novo mundo pode nascer das visões da arte e da poesia.
Dessa forma, a inauguração do Parque Campana, em Brotas, interior de São Paulo, no meu ponto de vista, não é somente mais um empreendimento, para uma cidade que sedimentou práticas ligadas ao turismo de aventura, mas uma pré-figuração de uma obra de médio e longo prazos, em que a criatividade artística é sinal emblemático de uma possível alternativa à lógica destrutiva da devastação ecológica e do lucro a todo custo. Uma resposta que, apesar do caráter individual dos chamados Les enfants terribles do Design Mundial, não assume um imperativo ideológico, mas se coloca, muito mais, como uma obra coletiva de reconexão com a Terra, como uma evolução cultural e espiritual de agradecimento “à vida, à vida, à vida”, como enfatizou Humberto Campana no espaço circular líquido circundado por um bambuzal, após o soar da Campana (sino, em italiano) localizado na catedral de eucaliptos.
Nas sociedades antigas, a arte era indissociável da vida e dos valores da comunidade, e tinha o papel de simbolizar e transformar em memória coletiva as aspirações, os medos e a identidade de uma população (primeiro através da oralidade e da pintura, depois por meio da escrita). Ou seja, num patrimônio cultural e imaginário que foi transmitido, atualizado e inovado de geração em geração. A arte era a alma criativa, o espelho simbólico de uma sociabilidade, para o bem ou para o mal.
À medida que a cultura assume uma maior responsabilidade social, campos criativos como a arquitetura, a escultura e todas as outras formas de arte têm uma tarefa específica: sensibilizar comunidades e moldar consciências. Nesse sentido, a criação do Parque Campana, baseado em princípios de sustentabilidade, é um clamor que reforça “juntos podemos salvar a Terra”.
Em 1983, num esforço para encorajar a cooperação global no sentido de práticas sustentáveis que beneficiem tanto a economia como o ambiente, as Nações Unidas criaram a Comissão Mundial sobre o Ambiente e o Desenvolvimento. Agora conhecido como Comissão Brundtland, esse grupo trabalhou para ancorar decisões ambientalmente conscientes e muitos artistas abraçaram esse projeto para melhor compreender seu impacto individual no meio ambiente. A ideia de sustentabilidade na arte garantiu obras inovadoras que enviam poderosas mensagens sobre mudanças climáticas, política e injustiça social. É através da arte sustentável que os artistas esperam não só mudar a forma como fazem seu trabalho, mas também inspirar mudanças sociais e culturais.
À vista disso, o programa do Parque não deixa dúvidas: o objetivo principal “é fazer do espaço um lugar de regeneração da natureza, de preservação e educação também ambiental”; “…é fazer do parque uma plataforma para iniciativas empresariais de ESG (environmental, social and governance) e educar com programas que disseminem o conhecimento ali desenvolvido, tanto para alunos de escolas e universidades parceiras quanto para artesãos da região ou de fora”.
Com clara abordagem experimental, o programa tem um percurso de investigação que evoluiu no tempo médio de processamento e permite ampliar as reflexões metodológicas sobre a forma de abordar um tema complexo como o papel do patrimônio cultural e ambiental na participação no desenvolvimento sustentável do país. Um programa que pode abordar esse papel utilizando, de forma inovadora, novas estatísticas sobre ecorregiões, a partir da descrição das características geomorfológicas da região, retratadas nas escolhas dos materiais e no tratamento dado à área. Um programa que incentive pesquisas que valorizem o capital natural local – transição entre Mata Atlântica e Cerrado, até à qualidade mais específica das áreas da fazenda, estimulando a biodiversidade.
Ao cruzar os dados sobre as presenças e ausências dos processos de valorização do patrimônio cultural, uma leitura macro poderá definir o conjunto de potencialidades territoriais, a ponto de dar uma descrição inovadora das áreas de densidade cultural variável no país. Além disso, ao abordar as questões do papel do patrimônio cultural, garante-se a possibilidade de oferecer, às instituições de governança, novas ideias para uma política inovadora em relação ao tema.
Nesse cenário, o papel das cidades surge como um prisma multifacetado na nova perspectiva das economias territoriais em rede, e o tema do desenvolvimento sustentável pode ser enriquecido pelas novas reflexões emergentes das políticas em rede nacional. Planejamento, recuperação e resiliência são as novas palavras-chave para embasar economias de rede e diversidade e a política territorial também surge com novas perspectivas sobre as questões da subsidiariedade concorrente, para definir novos valores das redes e dos sistemas museológicos.
O Parque Campana, segundo divulgação no site, será composto por doze pavilhões ao ar livre em escala monumental, “cada um representando uma cidade etrusca remetendo à origem toscana da família, com materiais utilizados nas obras dos irmãos, como concreto, piaçava e plantas, para trabalhar a natureza e criar uma arquitetura que ofereça experiências de contemplação e bem-estar”.
Extraordinariamente ligada à sustentabilidade ambiental, toda a trajetória dos Irmãos Campana foi orientada, desde seus primeiros passos, por forte sensibilidade e consciência voltadas ao tema dos materiais, especialmente no que diz respeito à recuperação e a reutilização de resíduos de produção e elementos industriais fora de uso. Além disso, para eles, o material sempre foi o ponto de partida, seja ele pobre, humilde, modesto ou rico, opulento e suntuoso. É o material que indica o que pretende ser (mobiliário, luminária, etc) e se articula numa tríade hermenêutica com a forma e a funcionalidade.
Uma visão que é, ao mesmo tempo, irônica, dramática, atenciosa, sensível, provocativa e vital. Um atlas utópico do nosso tempo que abraça, idealmente, todo o planeta e que pretende devolver, às artes, a sua função histórica como posto avançado intuitivo, sensível, profético, multifacetado, dinâmico e pacífico do imaginário coletivo. No parque, temos muitas peças, únicas e independentes que compõem, num mesmo mosaico, uma nova imagem do mundo e, juntas, formam uma grande identidade artística para o novo milênio.
Adalberto da Silva Retto Jr é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza (2003) e professor-pesquisador visitante no Master Erasmus Mundus TPTI (Techiniques, Patrimoine, Territoire de l’Industrie: Histoire, Valorisation, Didactique) da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013). Coordenador do Curso de especialização lato sensu em Planejamento Urbano e Políticas Públicas: Urbanismo, Paisagem, Território – PlanUPP.