Pautas identitárias, sim! Qual o problema?
Não é de hoje que observamos lideranças e até mesmo intelectuais de esquerda, especialmente homens, colocarem em dúvida ou até mesmo em oposição as questões de classe e as pautas ditas identitárias
Em tempos de eleições presidenciais ou legislativas, vira e mexe verificamos a tentativa de desqualificação das pautas das mulheres e de grupos historicamente discriminados: LGBTQIA+, imigrantes, negros, refugiados, entre outros. Já fomos acusadas de dividir a classe trabalhadora, quando a gente só vem somar. Tentam secundarizar nossa luta ao classificar de pautas específicas, ou seja, menos importantes, para sobrepor uma outra chamada de “geral” – que não leva em conta as diferenças e distâncias entre nós. Com isso arrastamos um déficit de conquistas e direitos no interior da classe trabalhadora.
Não é de hoje que observamos lideranças e até mesmo intelectuais de esquerda, especialmente homens, colocarem em dúvida ou até mesmo em oposição as questões de classe e as pautas ditas identitárias. Como se uma excluísse a outra, como se todas e todos que assumem a pauta identitária estivessem atuando em prol do neoliberalismo ou mesmo no campo da burguesia. Frequentemente, atribuem às nossas mobilizações “a culpa” pela esquerda ter abandonado as questões trabalhistas ou por ter sofrido derrotas junto ao seu eleitorado ou base social.
Então, se a questão de classe é a mais importante, como está a composição dessa classe no mercado formal de trabalho? Beth Lobo já nos advertiu de que a classe operária não é homogênea e que ainda persiste uma diferença que coloca as mulheres nos piores postos, com menores salários e, consequentemente, menos direitos trabalhistas e previdenciários. Segundo dados do IBGE, no Brasil, em média, as mulheres receberam, em 2020, 78% do recebido pelos homens, sofrem mais com assédio e demissões (do 4º trimestre de 2012 ao 3º trimestre de 2021, o número de homens desocupados cresceu 89,7% e o de mulheres, 109,1%) e carregam nas costas o peso da dupla, tripla jornada de trabalho, todas agravadas com a pandemia.
Se essa mulher for negra, então, nem se fale, sequer tem o direito de ser explorada no mercado formal de trabalho. A maioria delas está “condenada” à informalidade ou ao trabalho doméstico. E, mesmo no setor informal, são as que mais sofrem com o desemprego, pois segundo dados do Dieese 2019-20, o contingente de trabalhadoras informais passou de 13,5 para 10,8 milhões, restando-lhes trabalhos altamente precarizados ou a pura e simples exclusão social. No caso das mulheres transexuais e travestis a situação é ainda pior, acredita-se que 90% se mantêm na prostituição como forma de subsistência. Diante desses dados, como não falar em identidade?
Ora, mas o que são as pautas identitárias? O termo tem origem em um grupo de jovens mulheres negras dos Estados Unidos, no final dos anos 1970, que se autoafirmavam para convencer seus “companheiros” da esquerda de que elas eram a fonte de toda liberdade revolucionária. Ou seja, no dia que o setor mais excluído da sociedade, mulheres negras e lésbicas, superasse a exploração e a opressão de classe, todos os outros se beneficiariam desse feito, pois elas eram a base que dava sustentação ao sistema. E continuam sendo…
O Brasil é visto mundo afora como o país que mais mata mulheres, negros e população LGBTQA+. Portanto, afirmar uma identidade é urgente e necessário para buscar, primeiro: o direito de existência, o direito à vida; e depois, uma vida com dignidade e respeito… com inclusão social, com direito ao trabalho, por um trabalho decente, para que o trabalho não seja um “privilégio da servidão”, como nos alerta Ricardo Antunes.
Portanto, trata-se de uma falsa polêmica opor as questões de classe e identidade. Os únicos beneficiários dessa tentativa de nos dividir são os representantes do capitalismo neoliberal e da cultura patriarcal – os quais se retroalimentam. Portanto, é uma cilada a esquerda cair nessa armadilha justamente nas eleições que poderão decidir o futuro da democracia brasileira. Sem dúvida alguma, o pleito eleitoral mais importante desde o processo de redemocratização, quando lutamos juntos por uma Constituição Cidadã que contemplasse as questões de classe, raça e gênero. Dificilmente a democracia brasileira sobreviverá a mais quatro anos de ataques autoritários da família fascistóide que representa o que há de pior na triste tradição misógina, homofóbica e racista deste país.
Nós, mulheres, não podemos mais renunciar às nossas reivindicações, nem no 8 de Março, nem em qualquer dia do ano, para que a esquerda fique bem na foto eleitoral de uma classe trabalhadora conservadora em seus costumes e crenças. Se partidos e sindicatos estão perdendo a capacidade de mobilização e de convencimento de suas bases, talvez seja porque ainda não se deram conta das mudanças que vêm ocorrendo no interior delas. Se a esquerda não consegue atrair mais adeptos pelo “discurso de classe”, que tal abraçar aqueles e aquelas que efetivamente mobilizam com um discurso de classe, raça e gênero?
Deise Recoaro é doutoranda da Universidade de Coimbra, militante sindical e feminista.
Fabiana Matheus é diretora de Saúde e Previdência da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae).
Teresa Cristina Pujals é diretora do Sindicato dos Bancários de Brasília e funcionária do Banco do Brasil.