PEC 37: o que as ruas não perceberam
Graças à pressão das manifestações de junho, o Congresso repeliu uma proposta que favoreceria a impunidade.” Essa história foi alardeada aos quatro ventos. Agora vamos aos fatosRogério B. Arantes
Digite “PEC” no Google e o recurso de autocompletar oferecerá em adição o número “37”. Abra as páginas sugeridas e você encontrará uma grande quantidade de matérias e documentos produzidos a respeito da Proposta de Emenda Constitucional 37. Mais do que isso, o fato de ocupar o topo do ranking da ferramenta indica que uma quantidade avassaladora de pessoas esteve em busca de informações a respeito. Certamente, nenhuma PEC teve tanta repercussão e gerou tamanha mobilização nos últimos tempos como a 37.
A proposta tramitava sem muito alarde no Congresso e, na opinião de muitos parlamentares, tinha grandes chances de ser aprovada até que, por força das manifestações de junho, foi apelidada de “PEC da Impunidade” e passou a ser alvo das grandes marchas populares. Também a mídia abraçou a causa de sua derrubada e o resultado final da votação pela Câmara dos Deputados foi de 430 votos contrários e apenas nove a favor.
A verdade é que tudo se passou muito rapidamente, sem que tivéssemos a chance de discutir com mais vagar o assunto. A explosão das ruas, suscitada inicialmente pela questão da tarifa do transporte coletivo, esparramou-se por outras tantas causas até encontrar a PEC 37. Apesar de alcançar os trending topics do Twitter, o grau de conhecimento sobre as razões da proposta não chegou a ser alto entre os manifestantes, seja nas vias urbanas, seja nas virtuais.
Entre os poucos deputados que votaram a favor da PEC, encontrava-se Lourival Mendes, do PTdoB do Maranhão, delegado de polícia e liderança associativa da categoria em seu estado. Mendes fora o autor da proposta e terminou abraçado a ela heroicamente.
O que poucos sabiam é que essa derrota não havia sido a primeira sofrida pelo deputado maranhense. No âmbito da comissão especial que discutiu a PEC 37, Mendes viu sua proposta ser desfigurada, tendo votado contra o substitutivo apresentado pelo relator, o deputado Fabio Trad (PMDB/MS). Ao final, o texto de Trad foi aprovado pela comissão, contra a vontade do pai da ideia original.
Como explicar o fato de o deputado autor da PEC 37 ter sido derrotado duas vezes, uma vez votando contra, outra vez votando a favor? A explicação reside no fato de que o texto levado ao plenário da Câmara no dia 25 de junho de 2013, sob a pressão das ruas, não foi o elaborado pela comissão, mas sim a proposta original do próprio Mendes. A manobra foi conduzida pelo PMDB momentos antes da votação, solicitando que o texto original, e não o elaborado pela comissão, viesse a plenário.
De fato, como veremos a seguir, a proposta de Mendes encontraria dificuldades de passar até mesmo numa prova de língua portuguesa, mas o texto reelaborado pela Comissão avançou sobremaneira e teria grandes chances de ser aprovado não fosse a reação das ruas. Para não jogar a criança com a água do banho, os deputados ressuscitaram a natimorta proposta original e a ofereceram em sacrifício à opinião pública, preservando ao mesmo tempo o texto do substitutivo de Trad, para posterior discussão no Congresso, mesmo que sob outra roupagem.
Virada de mesa
A PEC 37 foi apresentada pelo deputado maranhense em junho de 2011. Visava acrescentar um novo parágrafo 10o ao artigo 144 da Constituição: “A apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1o e 4o deste artigo incumbem [sic] privativamente às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente”. A PEC foi pré-aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em outubro de 2011, que não viu nela nenhum vício de inconstitucionalidade contra cláusulas pétreas nem mesmo o erro de concordância verbal de seu texto. Mais do que isso, a CCJ manifestou-se favoravelmente ao mérito da proposta.
Em breve justificativa, Mendes acusava a ocorrência de “procedimentos informais de investigação conduzidos em instrumentos sem forma, sem controle e sem prazo, condições absolutamente contrárias ao estado de direito vigente”. O alvo eram claramente as investigações conduzidas pelo Ministério Público (MP) por meio de procedimentos administrativos e do inquérito civil, que não dispõem do mesmo grau de regulação que o inquérito policial. Este, por sua vez, na visão do delegado maranhense, “tem se revelado uma verdadeira garantia ao direito fundamental do investigado no âmbito do devido processo legal”, justamente porque se encontra submetido a regras claras e ao controle do Poder Judiciário.
A PEC 37 não foi um raio em dia de céu azul. Sua razão de ser reside na recuperação do prestígio do inquérito policial e das atividades de investigação levadas a cabo nos últimos anos pela Polícia Federal (PF). Embora algo semelhante à renovação da PF não tenha ocorrido ainda nas polícias estaduais, Mendes avaliou que era chegada a hora de virar a mesa sobre o MP, tal como este a virou sobre a polícia nos anos 1990.
Vale lembrar que naquela época, há cerca de vinte anos, o protagonismo e o prestígio do MP eram imensos, ao passo que as polícias amargavam profundo descrédito institucional e popular. Naquele contexto, houve quem propugnasse pelo fim do inquérito policial e sua substituição pelo inquérito civil, sob a presidência do MP, nos casos de crimes passíveis de enquadramento por improbidade administrativa, especialmente os de corrupção política. O novo modelo do inquérito civil e da ação civil pública era considerado mais eficaz porque dispensava o envolvimento da polícia, escapava ao foro privilegiado e depositava num exército nacional de promotores e procuradores a prerrogativa de investigar e processar políticos corruptos.
Evolução da polícia
Passadas duas décadas da Lei da Improbidade Administrativa, os resultados alcançados por essa via são parcos. São poucos os políticos condenados em última instância e apenas cifras irrisórias foram devolvidas aos cofres públicos. Não cabe aqui discutir as razões da baixa efetividade do combate à corrupção política como improbidade administrativa, mas ela nos ajuda a entender a recente recuperação do prestígio do inquérito policial e o deslocamento das ações de combate à corrupção da esfera cível para a criminal, bem como da esfera estadual para a federal.
Hoje, investigações policiais têm se mostrado mais eficazes na obtenção de provas e na imposição de custos aos envolvidos com aqueles tipos de crimes. Escutas telefônicas, mandados de busca e apreensão, prisões preventivas ou temporárias têm abalado organizações criminosas e exposto políticos à condenação pública. O desfecho final de processos criminais não é menos duvidoso do que aqueles encetados por ações civis, mas pelo menos sua eficácia inicial parece bem maior do que a alcançada na esfera cível.
Outro aspecto importante é que a investigação e a acusação criminais desafiam a triangulação entre delegados de polícia, promotores ou procuradores e juízes no que diz respeito à solicitação, concessão e execução desses diversos procedimentos, segundo as exigências do Código do Processo Penal. Se o combate à corrupção e ao crime organizado conheceu significativo crescimento nos últimos anos, por meio das operações da Polícia Federal, é porque não só as instituições envolvidas estão mais ativas como também a articulação triangular entre elas foi intensificada, superando boa parte da desconfiança recíproca dos anos 1990 (pelo menos no plano federal) e refletindo a recuperação do prestígio policial em alguma medida.
Monopólio descartado
Foi nesse contexto que Mendes se animou a reivindicar o monopólio da investigação para as polícias. Todavia, o debate ocorrido na comissão especial não poderia ter sido mais revelador da inviabilidade da proposta, a começar pela constatação de que hoje um sem-número de órgãos e instituições rivaliza com a polícia na tarefa de investigar, e não apenas o Ministério Público, alvo declarado da PEC 37.
No âmbito do Poder Executivo, a Receita Federal, as agências reguladoras, o Banco Central, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a Controladoria-Geral da União (CGU), a Previdência Social, entre outros, realizam investigações de crimes sob sua órbita e jurisdição, dispondo muitos deles de serviços próprios de inteligência. Os legislativos investigam por meio de comissões parlamentares de inquérito e por meio dos tribunais de contas, seus órgãos auxiliares. A proposta de Mendes foi bater até nas polícias especiais mantidas pelas casas legislativas, que reagiram negativamente à ideia do parlamentar. A aprovação da PEC 37, em resumo, atingiria todos esses órgãos indistintamente.
Se a justificativa para o monopólio da investigação pela polícia era a falta de regramento que caracteriza a atividade pelo MP, do remédio se pode dizer que é pior do que a doença. A proposta de Mendes criava mais problemas do que era capaz de resolver. Em sucessivas audiências públicas, dezenas de lideranças associativas do meio jurídico bem como diversas autoridades se pronunciaram pela inviabilidade do monopólio da investigação criminal pelas polícias. A única instituição de peso a se pronunciar favoravelmente à proposta foi a OAB, mais por suas divergências com o Ministério Público do que propriamente por sua confiança na polícia.
O debate no âmbito da comissão deixou clara a inviabilidade da ideia de instituir o monopólio da investigação, mas abriu flanco àqueles interessados na regulação das atividades do Ministério Público.
Buscando equilibrar essas duas posições, o relator elaborou substitutivo pelo qual a investigação passaria a competência privativa, mas não exclusiva, das polícias, e ao MP seria facultada atuação subsidiária em três situações principais: 1) para complementar provas obtidas por órgãos não policiais (estes com atribuições investigatórias definidas em lei ou pela própria Constituição), 2) nos casos em que seus próprios inquéritos civis tivessem desdobramentos criminais (mas sob o comando do delegado de polícia, que instauraria o respectivo inquérito policial) e 3) nos casos de crimes cometidos por agentes políticos ou públicos, bem como aqueles envolvendo organizações criminosas (assim definidas em lei).
E, para se prevenir de uma avalanche de pedidos de anulação de provas pretéritas, Trad propôs um novo artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, pelo qual ficariam ressalvados todos os procedimentos investigativos criminais realizados pelo MP até a data de promulgação da emenda.
Um marco necessário
As ruas não sabem, mas a versão da PEC 37 elaborada e aprovada no âmbito da comissão especial foi recolhida a poucos minutos da votação em plenário, para dar lugar à original de Mendes, fadada desde o início ao fracasso.
O Ministério Público não deixou de comemorar a vitória contra a “PEC da Impunidade”, tal como nos anos 1990 comemorara a derrota da “Lei da Mordaça”, que visava igualmente regular seu poder de atuação. Fez da derrota a sua vitória, mas sabendo que o pêndulo desse conflito em torno de suas prerrogativas se voltou perigosamente contra a instituição, algo que esteve próximo de se confirmar.
Feitas as contas, pode-se concluir que o desfecho em torno da PEC 37 afastou a ideia de monopólio da investigação criminal, mas acendeu e mesmo reforçou a opinião de que as atividades investigativas requerem um novo marco regulatório no Brasil.
É nesse contexto que a instituição que parece ter sete vidas tomou a decisão estratégica de sair pela frente e não limitar-se à defesa do status quoem torno da matéria. Refiro-me ao Projeto de Lei 5.776/2013, que tramita hoje no Congresso sob o patrocínio do próprio MP. A título de promover uma nova e detalhada regulação das atividades de investigação, o projeto cria a figura do inquérito penal ao lado do inquérito policial. Este, tradicional, continuaria sendo presidido pelas polícias. Aquele, novo, ficaria a cargo do MP, que teria assim finalmente reconhecida e institucionalizada sua prerrogativa de investigar.
É pela via do PL 5.776 que o debate da PEC 37 deve retornar à agenda do Congresso. De fato, ele tem o mérito de incorporar novidades importantes, como a possibilidade de acordos de imunidade e de delação premiada com investigados, bem como de direitos e formas de acesso aos inquéritos que hoje não existem ou não são devidamente respeitados. Também define as possibilidades de atuação conjunta da polícia e do Ministério Público, reconhece a prática de forças-tarefas e prevê a normatização de atividades de investigação por outras autoridades administrativas, entre outros pontos relevantes.
Avanço no horizonte
Não cabe dúvida, enfim, de que o PL 5.776 coloca a discussão em novos patamares. Como vimos, a introdução do simples monopólio da investigação mostrou-se inviável, mas encetou o necessário e promissor debate em torno de sua regulação.
Nesse processo – manobras de última hora e erros de concordância à parte –, o Congresso tem se mostrado permeável às diferentes opiniões e vários dos parlamentares diretamente envolvidos têm demonstrado sofisticada capacidade de lidar com a matéria, especialmente em meio ao tiroteio que às vezes se instala entre delegados, promotores e outros atores institucionais.
Resta saber se ao final, além do uso adequado da concordância verbal, será possível aprovar um texto capaz de contemplar essa miríade de órgãos que hoje realizam investigação ou se os vetos recíprocos entre eles impedirão também uma concordância institucional nessa área.
Rogério B. Arantes é Professor doutor do Departamento de Ciência Política e coordenador da Pós-graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo