Pobre de direita e esquerda playboy: conceitos ou preconceitos?
A posição da esquerda considerar uma parcela da população que vota na direita como “inculta” ou “ignorante” é uma ação rasa e pouco reflexiva
As disputas políticas ocorrem nos palanques, nos debates televisivos entre os candidatos e também em todo o tecido midiático, que hoje é composto não apenas pela televisão e pelos jornais impressos, mas também pelas redes sociais (Facebook, X, Instagram e YouTube).
Assim, a opinião política e a militância andam juntas na estrutura democrática, onde todos podem ter voz nas mídias, ainda que com alcances diferentes. Nessa conjuntura, nos diversos materiais espalhados pela internet, sejam eles textos, áudios ou vídeos, surgem vocabulários e definições para explicar os mais diversos comportamentos do eleitorado brasileiro. Pretende-se discutir duas dessas nomenclaturas, relacionando-as com as questões materiais do Brasil, com a finalidade de esclarecê-las. Antes de adentrar nessa discussão, é relevante apontar que a argumentação aqui se refere às nomenclaturas dessas condutas, e não aos estudos ou pesquisas que as citam. Resumindo: qual é a implicação gerada pela sociedade ao reproduzir de maneira rotineira os rótulos “pobre de direita” e esquerda playboy?
Pobre de direita
Esse não é um conceito novo, mas teve muita força no governo de Jair Bolsonaro e agora estampa a capa do livro de Jessé Souza. Claro que essa alcunha foi levantada pelos opositores do ex-presidente, que em geral pertencem a campos progressistas e da esquerda. Relevante deixar claro que este artigo não questiona os estudos da sociologia, da filosofia ou da linguística sobre o comportamento social do eleitorado que se utiliza desse conceito; mas sim, a reprodução do termo de maneira pejorativa.
Essa definição “Pobre de direita” implica uma pessoa sem grandes recursos financeiros, que depende de serviços públicos, apoiando governos que prometem acabar com esses serviços de que ela mesma necessita. Nasce, desse paradoxo, a crítica ao eleitorado com menor poder aquisitivo. Sobre isso, há um texto que discute esse comportamento por meio da ideologia.
Chamar essas pessoas de “pobre de direita” não seria ofensivo? A jornalista e ex-deputada pelo Rio Grande do Sul, Manuela D´ávila entende que a expressão “pobre de direita” representa um elitismo da esquerda brasileira, isto é, como se o problema da vitória ampla da direita e da extrema-direita no Brasil fosse “culpa” dos eleitores das classes menos privilegiadas. O ativista Galo de Luta (Paulo Lima) diz que o problema é a materialidade e não o “pobre de direita”, como se essa parcela da população fosse alienada, mas a classe média, não.
As falas da deputada e do ativista convergem no sentido de que mais do que um conceito, “pobre de direita” pode soar muito pejorativo. O ponto de Manuela vai na direção política, em que a esquerda (principal enunciadora desse rótulo) acusa, de maneira indireta, uma camada social de alienada e de despolitizada, pois só uma classe “ignorante” poderia votar em propostas que legislam contra ela mesma; contudo, há inconsistências nesse discurso.
Qual é a relação entre a camada menos favorecida economicamente e a direita no Brasil? Essa camada, por conta de uma brutal desigualdade social, faz uso exclusivo dos serviços públicos como educação (escola pública) e saúde (SUS). A direita brasileira apresenta projetos, entre outros, de privatização das empresas brasileiras, como também os serviços essenciais. À primeira vista, não há nenhuma relação que justifique essa aproximação. E por que isso ocorre?
A manipulação ideológica por meio de uma comunicação eficaz faz toda a diferença. Deixaremos de lado tudo o que leva o Brasil a ter mais de 70% da sua população vivendo com até dois salários mínimos por mês (R$2.824,00), o que é insuficiente para se viver, de acordo com o DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). Segundo o órgão, em outubro de 2024, o salário mínimo estabelecido em R$1.412,00 está longe do necessário para se viver com dignidade; sendo calculado o valor mínimo de R$ 6.769,87. Será considerada apenas a situação material da classe trabalhadora e a comunicação entre as propostas políticas e essa camada social.
Todo cidadão de qualquer país do mundo almeja uma vida confortável, em que possa morar, alimentar-se, trabalhar, estudar, cuidar da saúde e ter um lazer. As eleições são uma maneira de eleger pessoas que representem os cidadãos a fim de que suas condições de vida sejam melhoradas. Com as eleições, existe a comunicação propagada pelos candidatos durante todo o processo de campanha. Uma pessoa da classe econômica mais desfavorecida quer soluções para sua vida a fim de que haja uma possibilidade de ser mais confortável. Nessa perspectiva, a direita oferece projetos de empreendedorismo e mais empregos, mesmo que sem direitos (propostas que vêm sendo feitas desde 2018 com Bolsonaro e em 2024, com Pablo Marçal, por exemplo). Já a esquerda, em sua grande maioria, tem aparecido com discursos desde 2018 de que essas ações da direita seriam prejudiciais à população, mas não apresentam propostas práticas na linguagem popular, causando o desentendimento ou o afastamento desses possíveis eleitores. O cidadão ouve da direita as palavras mágicas “trabalho”, “renda”, “crescimento” imediatos (ainda que sejam falácias); enquanto da esquerda, ouve aulas sobre materialismo histórico. Em quem esse cidadão vai votar?
Manuela D´ávila aponta que chamar um eleitor de “pobre de direita” é transferir a culpa do desmantelamento do sistema público, ao eleitor, que elegeu um congresso, um senado, prefeituras e cargos executivos com pessoas que aumentaram a violência urbana (elevando a morte de inocentes pela força policial militarizada sem diminuir o crime); que privatizaram (ou querem privatizar) setores estratégicos (basta lembrar do apagão em São Paulo neste ano de 2024); aumento de trabalhos informais que geram menos de um salário mínimo ao “empresário de si mesmo”; entre outras questões. Com essa transferência de culpa, a esquerda brasileira se isenta da responsabilidade e não melhora a sua comunicação política. É essa autocrítica que está faltando aos discursos da esquerda no Brasil, de acordo com a ex-deputada.
Na posição do Galo de Luta, é necessário observar a materialidade histórica. Em resumo, são as condições concretas de vida da população e não conceitos abstratos. Se a pessoa tem fome, ela precisa de comida, não de um discurso sobre Marx. E as condições de vida da população mais carente de recursos é fruto de um brutal sistema de exploração, e não por escolha do indivíduo. Os poucos exemplos das camadas baixas que melhoram de vida são exceções que confirmam a regra da exploração.
Além de que o ativista diz que o voto da classe trabalhadora periférica pode ser alienado por causa dessas condições precárias em que vive. E seu voto é uma troca esperançosa por uma saída concreta (como um sonho de melhorar de vida empreendendo). Galo afirma que a classe média também é alienada, porque está de conluio com a classe dominante, da qual ela mesma não faz parte. O que determina essa posição mais à direita é a comunicação direta e manipuladora do discurso desses políticos que observam as condições de vida das camadas mais vulneráveis e alimenta seus sonhos mais íntimos como falsas promessas, gerando votos para seus candidatos.
Esquerda Playboy
A esquerda playboy (ou esquerda caviar como ficou mais famosa) é um termo depreciativo originário do francês gauche caviar utilizado para designar uma pessoa que se diz socialista, mas que leva uma vida de luxos promovidas pelo capitalismo. Claro que essa definição apresenta seus problemas teóricos, uma vez que ser socialista não é fazer voto de pobreza ou sair distribuindo dinheiro aos outros. E que esses militantes, segundo essa crítica, deveriam viver em condições paupérrimas, que estariam de acordo com a situação vivida em regimes socialistas, outro ponto também questionável, que demonstra o desconhecimento dos enunciadores dessa crítica à esquerda. Ela nasce e se reverbera com muita força na direita e na extrema-direita brasileira.
Apesar desse contexto histórico, vêm surgindo essas reverberações atualmente também por enunciadores da esquerda mais revolucionária, como os anarquistas, os comunistas, e os socialistas brasileiros. Isso ocorre porque há um cenário no governo Lula 3 que divide a esquerda. Uma parte dela (mais voltada ao reformismo, como o PT e PSOL) endossam o governo de conciliação executado neste mandato presidencial, em que muitas decisões federais flertam ou são totalmente alinhadas com a política neoliberal e de mercado. Legislando cortes, por exemplo, nos pisos constitucionais da saúde e da educação; no seguro-desemprego e no BPC (Benefício de Prestação Continuada), cedido a idosos e a pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade econômica. Todos esses cortes representam um retrocesso na luta por direitos, já que foram conquistas históricas.
Já a esquerda revolucionária (ou radical) questiona essas decisões do governo federal. Eles entendem que foi eleito um governo de esquerda (ainda que reformista) e que deve se comportar como tal, defendendo a classe trabalhadora. Esse tipo de corte vai impactar a camada mais necessitada do país, a classe mais vulnerável, que depende dos serviços públicos e do complemento de renda. É daí que surge a crítica de chamar a esquerda governista de “esquerda playboy”.
Permitindo-se fazer concessões ao Mercado, ao Senado e à Câmara dominada por neoliberais, a esquerda governista e seus apoiadores defendem-se dizendo que está “protegendo o Brasil do avanço da extrema-direita”. O contragolpe da esquerda revolucionária é apontar exatamente o óbvio: tirar benefícios de quem mais precisa não vai incomodar uma parte da esquerda que é classe média, que não precisa dos serviços públicos e nem sabe o que é depender do Estado para sobreviver. Assim, essa esquerda que defende esses acordos vergonhosos com os neoliberais, prejudicando o povo, sem saber o que de fato é necessitar desses auxílios ou serviços, ficou chamada de “esquerda playboy” pelos militantes de esquerda revolucionária.
Essa é a diferença entre o termo “esquerda caviar”, majoritariamente utilizada pela direita para desqualificar a luta socialista, orientada pela falta do conceito filosófico de que socialismo é a planificação da economia e um Estado que favorece oportunidades a todas as pessoas, e não como o erro de achar que o socialismo seria sinônimo de uma vida paupérrima. Enquanto que a “esquerda playboy” é disseminada, principalmente, por essa esfera revolucionária que se opõe às opiniões de uma esquerda reformista, que não se importa e não conhece de fato a situação da população mais carente do Brasil, fazendo-os sofrer ainda mais apoiando essas decisões governistas de conciliação.
Conceitos ou preconceitos?
Tanto “pobre de direita” como “esquerda playboy” remetem a caricaturas impostas por seus opositores. No primeiro caso, é a esquerda tradicional que faz a caricatura de uma grande parcela da população, que, aos seus olhos, não sabe votar. Critica, portanto, a escolha nas urnas dessa parcela populacional abandonada por praticamente todos os governos que passaram nas últimas décadas. Essa posição da esquerda em nomear uma parcela da população que vota na direita como “inculta” ou “ignorante” é uma ação rasa e pouco reflexiva, pois não considera as relações materiais que envolvem essa escolha, servindo apenas para rebaixar intelectualmente o povo que já sofre outras tantas mazelas.
No segundo caso, é uma luta política dentro do mesmo espectro ideológico. Jornalistas, comunicadores e personalidades que justificam as escolhas petistas no governo Lula 3 para um bem maior – manter o país na democracia – não são bem vistos por jornalistas, comunicadores e personalidades da esquerda radical, que rechaçam essa postura entreguista. Quem não precisa dos auxílios do Estado pode esperar um momento mais propício para algumas mudanças, quem está passando fome ou depende de serviços públicos não pode esperar. Nesse cenário, “esquerda playboy” é usado para atacar essas pessoas que não se colocam no lugar dos mais necessitados e defendem as medidas austeras de um governo que se diz de esquerda.
Tanto um termo quanto o outro visa à caracterização de um grupo de pessoas, com a finalidade de ridicularizá-las tanto por sua alienação quanto por sua falta de consciência de classe. Não buscam entender as conjunturas históricas, nem buscar soluções com diálogos francos. Pelo contrário, estão preocupados com rótulos e deslocar suas responsabilidades aos outros. Concluindo, a esquerda como um todo (tradicional, reformista e a revolucionária) precisa melhorar a sua comunicação nesse espaço que vem perdendo eleitores para discursos de violência e de ódio da direita, que sabe se comunicar efetivamente com essas camadas sociais por meio de promessas de prosperidade, apoiados também nas religiões cristãs. Outro ponto também interessante é que a esquerda dividida e cada uma pensando no seu próprio mundo revela também alienação de uma classe média que busca ditar as regras de um sistema em colapso.
Victor Hugo da Silva Vasconcellos é doutorando em Estudos Linguísticos pela Universidade da Coruña e também doutorando em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Além de pesquisador, é professor particular de língua portuguesa e linguística.