Política disfarçada de neutralidade: FAPESC e sua retaliação à inovação e ao progresso social
A Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC) negou financiamento de projetos de pesquisa que tinham em comum questões de gênero, sexualidade e movimentos sociais
“Por causa do fato de que geralmente há um grupo social prejudicado pelo progresso, backlash quase sempre acontece em seguida ao progresso. Para cada movimento feminista, houve backlash antifeminista. Portanto, quando a perspicaz feminista se depara com um infortúnio, ela sabiamente aposta que é backlash” Ann Cudd em “Analyzing Backlash to Progressive Social Movements” (2002, p. 12).
Backlash (em tradução literal, retaliação) é um termo utilizado para se referir a ações reacionárias de um grupo social em relação a outro, quando o segundo alcança algum progresso social. Seguindo a proposta normativa da filósofa Ann Cudd, o progresso se dá quando há justiça social e o regresso ocorre quando há opressão, especialmente quando comparado ao momento histórico anterior. Para a pesquisadora, uma ação de backlash não é um fato isolado — como, por exemplo, a ação de uma pessoa ou instituição isolada — mas faz parte de um momento histórico. Ações de backlash usualmente são intencionais, embora algumas vezes possam ser não intencionais. Portanto, o backlash é um momento em que há ações de retaliação para negar o progresso a um grupo social menos poderoso que está tendo ou teve algum avanço.”
Recentemente, a Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC) negou financiamento a doze projetos de pesquisa já selecionados pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a quatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). O que os projetos negados tinham em comum era o fato de abordarem questões de gênero, sexualidade e movimentos sociais. O argumento da FAPESC para negar o financiamento especificamente a esses projetos foi que estes “não tinham correlação com os ecossistemas de tecnologia e inovação de Santa Catarina como, em muitos casos, nem ao menos uma relação com o próprio estado catarinense”. A UFSC e a Secretaria Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência posicionaram-se chamando a decisão de uma violação da liberdade de cátedra, posição que circulou em jornais brasileiros. Pesquisadoras do Instituto de Estudos de Gênero (IEG) da UFSC entenderam a ação da FAPESC como censura e publicaram uma nota de repúdio à censura da FAPESC. A atual gestão da Associação de Pós-Graduandos da UFSC também repudiou a recusa de recursos da FAPESC.
A FAPESC é uma instituição importante para o fomento à pesquisa científica e à inovação no estado, e outras ocasiões, já apoiou projetos relacionados ao gênero. Contudo, a decisão da instituição de negar apoio financeiro às pesquisas já selecionadas e que se conectam a gênero, sexualidade e movimentos sociais configura-se como uma ação de retaliação à temática que esses trabalhos abordam. Portanto, a retaliação da instituição é política. Ao mesmo tempo, ao fazê-lo, a instituição caminha contra o progresso social e seu próprio objetivo: a inovação. Abaixo explico o porquê.
A ação da FAPESC ocorre em um momento em que discursos racistas, antifeministas e homofóbicos tomaram a esfera pública no Brasil e em diferentes países do mundo. No país, durante o governo Bolsonaro, seus atos de retaliação não se limitaram apenas às ciências sociais e humanas, mas também às políticas públicas relacionadas aos direitos humanos de mulheres e pessoas LGBTQIA+. Há diversos exemplos. Em 2019, Bolsonaro mencionou a necessidade de retirar o investimento das humanidades, visto que para ele esse investimento era “um desrespeito ao dinheiro do contribuinte”, também disse que, na universidade, só havia “balbúrdia” e diminuiu dramaticamente os recursos das universidades federais. No período, diversos movimentos estudantis repudiaram o comentário com ações políticas, incluindo a Associação de Pós-Graduandos da UFSC. Outra frente importante desses ataques foram os constantes ataques da ex-ministra Damares Alves aos direitos humanos básicos de meninas e mulheres, a defesa constante da família e da ordem patriarcal em espaços nacionais e internacionais e um desmonte de políticas públicas já estabelecidas em território nacional, incluindo as que se relacionam à violência de gênero e ao acesso a interrupção da gravidez quando já permitido por lei. Em Santa Catarina, o cenário não foi diferente. Bolsonaro, por exemplo, foi o candidato mais votado tanto em 2018, quanto 2022, fazendo do estado um dos que mais apoiaram a reeleição de Bolsonaro.
Parte de um contexto maior, esse momento de retaliação tanto às ciências sociais e humanas, incluindo os estudos de gênero, quanto aos ganhos recentes de direitos humanos para mulheres e outras minorias, não acontece somente no Brasil. Acontece em países como a Argentina, que tem agora como presidente o ultradireitista Javier Milei, e os Estados Unidos, que elegeu recentemente, novamente, o ultradireitista Donald Trump. Também em El Salvador, onde os direitos das mulheres e das minorias têm sido constantemente atacados sob a presidência de Nayib Bukele. Um dos pontos centrais dos projetos desses conservadores é apoiar-se em um discurso masculinista e antifeminista, que nega o gênero tanto como categoria de análise, quanto de como a sociedade dá significado aos corpos humanos. O ataque ao gênero desses atores usualmente ocorre na defesa de que está em andamento a circulação de uma suposta “ideologia de gênero”, um termo que foi inicialmente proposto pela Igreja Católica, mas logo internacionalmente apoiado por outras instituições religiosas e por políticos de diferentes vertentes ideológicas, incluindo os governos mencionados acima.
Para os atores políticos que acreditam que há uma ideologia de gênero em circulação, um dos pontos centrais do seu ataque é ao pensamento crítico que questiona o status quo (o estado atual das coisas), incluindo os ataques aos estudos de gênero. David Paternotte, que pesquisa a circulação da “ideologia de gênero” na Europa, define que uma das maneiras pelas quais os estudos de gênero são atacados no continente é por meio da retirada de financiamento para pesquisas relacionadas à temática. Há também outras estratégias, como o fechamento de departamentos e a recusa de promoções.
O backlash conservador contra os estudos de gênero, do qual a decisão da FAPESC faz parte, situa-se em um momento político que teima em recusar, excluir, limpar da história e da ciência identidades minoritárias para provocar sua damnación, nos termos de Rita Laura Segato. Essa damnación (ou condenação), como propõe Segato ao analisar a violência contra as mulheres para a acumulação de capital, é a condenação, destruição ou degradação profunda dos nossos corpos, que vai além da apropriação física ou territorial, mas nos submete a um estado de dano moral e simbólico que tenta nos condenar a uma condição de sofrimento ou exclusão. É o capitalismo em pleno funcionamento que oprime, com mais força, grupos sociais minoritários. É a tentativa de silenciar nossas pesquisas, nosso ativismo, nossas posições políticas e nossa história. É uma retaliação que busca nos oprimir para, continuamente, nos dominar.
Dito isso sobre o cenário de backlash que vivemos, precisamos definir o que significa inovação. Emprestando o conceito da própria FAPESC em um glossário em seu site, inovação é a “introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo ou social que resulte em novos processos, bens ou serviços”. A definição é baseada na Lei Catarinense de Inovação, 14.328/2008. Na lei, processo, bem ou serviço inovador é definido como “resultado de aplicação substancial de conhecimentos científicos e tecnológicos, demonstrando um diferencial competitivo no mercado ou significativo benefício social”.
Poderíamos entrar em debates sobre o que o termo “benefício social” significa. Mas partimos da ideia de que, neste contexto, a nomenclatura prevê um serviço promovido pelo governo ou outra instituição para o progresso e bem-estar da sociedade.
Se é assim, qualquer projeto que dê luz a novos processos sociais que abordem problemas sociais que devem ser solucionados pelo governo se encaixa no conceito de inovação para benefício social proposto pela instituição. Pelas diferentes notícias, sabemos que alguns dos projetos que a FAPESC recusou tratavam da influência do capitalismo e da indústria pornográfica na construção da subjetividade; do movimento #EleNão contra Bolsonaro em 2018; do desenvolvimento da competência em informação voltada às pessoas LGBTI+; das relações entre prazer, amor e morte na literatura de Cassandra Rios, uma autora lésbica que abordava tabus em relação à homossexualidade; e do papel da Defensoria Pública na defesa dos direitos LGBT em Buenos Aires, que tem como principal objetivo atender casos de violação dos direitos humanos da população LGBT. Outro dos projetos negados propunha uma pesquisa sobre a trajetória de cuidado da comunidade LGBTI+ no Sistema Único de Saúde. Para a FAPESC, segundo a nota da instituição, tais projetos não apresentam caráter inovador.
A FAPESC diz que: “não há correlação direta entre o tema proposto pelos projetos e o desenvolvimento regional do Estado de Santa Catarina”. Pensemos agora juntos sobre o que isso significa em relação ao que a própria FAPESC entende como inovação e sua relação com essas pesquisas. Para não me estender, cito dois dos projetos negados que tratam de questões LGBTQIA+, um sobre a obra de Cassandra Rios, uma das autoras mais censuradas durante a ditadura militar brasileira, e outro sobre as defensorias públicas de Buenos Aires. Ambos os projetos abordam, de diferentes perspectivas, a vida e a violência contra pessoas LGBTQIA+.
Como poderiam não ser inovadores projetos que abordam a violência LGBTQIA+ em um estado (Santa Catarina) que, no primeiro semestre de 2024, registrou 900 casos de violência LGBT? Como poderia não ser inovador um estudo que aborda a atenção à violação de direitos de pessoas LGBTQIA+, como o das defensorias de Buenos Aires, quando no estado de Santa Catarina, assim como acontece com os casos de feminicídio, há uma preocupante subnotificação de casos de violência LGBTQIA+?
Segundo o dossiê “Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil” apoiado por diferentes instituições nacionais, incluindo o Ministério Público de Santa Catarina, o estado necessita “urgentemente de revisão e aprimoramento dos sistemas de registro e análise de crimes [LGBT] do Estado e nacionalmente, visando a inclusão efetiva de categorias que permitam a identificação clara de crimes motivados por ódio contra essa comunidade. A implementação de tais mudanças é fundamental para o desenvolvimento de políticas públicas mais eficazes no combate à violência LGBTfóbica e na promoção de uma sociedade mais inclusiva e segura para todos os cidadãos.
Não seriam estudos sobre a violência LGBTQIA+ relevantes, então, para observar possibilidades inovadoras dos problemas sociais presentes e urgentes no estado de Santa Catarina? Um estudo sobre a defensoria LGBT em Buenos Aires não poderia, diretamente, informar políticas públicas possíveis, de benefício social, no estado de Santa Catarina? Um estudo sobre uma autora lésbica brasileira, Cassandra Rios, que abordou diretamente tabus que constituem o regime patriarcal e homofóbico, resultando em mortes LGBTQIA+, não seria inovador e com benefício social para o estado de Santa Catarina?
O que diferencia esses projetos de outros, talvez também de conhecimentos básicos (ou seja, que não buscam criar produtos, mas gerar conhecimento), apoiados pela instituição nas ciências sociais e humanas e para além delas? Temos que lembrar a FAPESC que qualquer benefício social inovador se alimenta de pesquisas básicas que também são desenvolvidas nas ciências sociais e humanas, incluindo aquelas que se relacionam aos estudos de gênero?
Estou convencida de que para instituições que reagem ao progresso social – incluindo a retaliação à inovação com benefício social, nos termos da FAPESC – as respostas a essas perguntas, em um período de backlash, não importam. Outros projetos com recursos negados, sejam eles de aplicação direta ou pesquisas básicas, poderiam também iluminar de maneira inovadora e relevante os problemas sociais e o momento político que vivemos, mas a retaliação ao progresso continuaria sendo feita, pois a decisão da FAPESC não é baseada em sua missão, mas em uma ação de retaliação que se disfarça de neutralidade utilizando o termo “inovação”, para um projeto político neoliberal e excludente.
O grande paradoxo é que ao negar esses projetos, a FAPESC os torna mais relevantes e, consequentemente, mais necessários e inovadores. Curioso, neste caso, é que a própria FAPESC nega o avanço de desenvolvimento de progresso social, nos termos de Cudd, e benefícios sociais inovadores, nos termos da própria FAPESC.
A FAPESC caminha, portanto, contra a inovação que diz ter como objetivo. E ao fazer isso, a instituição retalia o progresso social por meio de um discurso que se disfarça de neutro, mas que é de retaliação ao progresso e, consequentemente, profundamente político.
Alessandra Jungs de Almeida é pós-doutoranda associada ao Programa de Estudos das Mulheres e de Gênero do Massachusetts Institute of Technology (MIT), doutora em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde defendeu a tese doutoral “Direitos reprodutivos na América Latina: ativismos transnacionais e a evolução das políticas de legalização e criminalização do aborto na Argentina e no Brasil (2010-2022)”. Em 2018-2019, integrou a gestão da APG-UFSC “Pra Não Lutar Só”, que atuou incansavelmente na defesa das universidades públicas, gratuitas e de qualidade, enfrentando uma política governamental que visava desmantelá-las.
Agradeço pelos comentários nas versões finais deste texto feitos por Rebeca Austria e por uma revisora que optou por permanecer anônima, temendo retaliações da instituição mencionada.