Golpismo e extremismo no Brasil: a questão das responsabilidades – reflexão a partir de Karl Jaspers
Não há ditadura ou regime totalitário que não tenha sido antecedido por sinais claros de busca pela corrosão do regime democrático
“…não há obviedade cara, nem sentimento ou mentira que devam ser protegidos. Mas, principalmente, não deve ser permitido bater-se no rosto com ousadia em razão de juízos desafiadores, infundados e levianos. Nós somos um conjunto; precisamos sentir nossa causa comum quando dialogamos.” (Karl Jaspers*)
Karl Jaspers (1883-1969), psiquiatra e filósofo alemão, ao escrever seu clássico ensaio sobre a culpa alemã (1946), portanto, ainda sob o choque da humanidade em relação à máquina racista de extermínio nazista, dentre vários alertas evidenciou, embora se referindo à sociedade alemã sob o nazismo, que os acontecimentos políticos resultam de uma múltipla gama de ações, omissões e responsabilidades e que, como sociedades, precisamos falar sobre as causas dos fatos por mais traumáticos que sejam, doa a quem doer. Não podemos “proteger” as mentiras e as obviedades. Pois, no final das contas, “somos um conjunto”.
A chocante revelação de – mais um – planejamento de ação golpista e terrorista por parte de militares e políticos radicais que, para o infortúnio da história brasileira, chegaram ao Poder por vias eleitorais (assim como outros extremistas o fizeram ao longo da experiência histórica e política dos séculos XX e XXI), surpreendem por sua crueldade, audácia e desprezo à vontade do povo brasileiro: o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva e o vice-Presidente eleito, Geraldo Alckmin, seriam envenenados; o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, seria também assassinado, plano executório, no seu caso, com ações concretas iniciadas por meio de campana montada no entorno de sua residência, mas abortada no último momento apenas porque, na data, a sessão do STF terminara mais cedo.
A audácia fica por conta do fato de que, ao que tudo indica, em grande parte, do referido planejamento foi concebido, em larga medida, no próprio Palácio do Planalto, com minutas golpistas e nomes a serem eliminados constantes de arquivos encontrados nos computadores do Palácio.
Do ponto de vista histórico, uma vez mais as ações de terroristas radicais são definidas no “andar de cima”; assim como Geisel autorizou a eliminação de oponentes políticos de dentro do Palácio do Planalto, recentemente, durante o governo de Jair Bolsonaro, também ali assassinatos de brasileiros legitimamente eleitos pelo povo foram concebidos e com a participação do círculo mais próximo ao então Chefe de Governo, como os Generais Braga Neto e Augusto Heleno que, pelos termos do planejado putsch, comandariam o país em seu “gabinete de crise”, após as eliminações de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes, afastando, assim, toda a cadeia de sucessão legitimada pelos trâmites eleitorais e constitucionais. Atente-se: nem os Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal assumiriam, tal como prevê a Carta de 1988.
A gravidade dos fatos e a perplexidade provocada em toda a sociedade brasileira e, também, no plano internacional, não deve limitar a visão mais ampla a ser lançada sobre a cadeia de acontecimentos que vem sendo articulada desde o início do governo Bolsonaro, claramente uma administração antidemocrática.
Recorde-se: questionamentos sobre um dos melhores (senão, o melhor) sistemas eleitorais hoje existentes no mundo; ataques sistemáticos ao Supremo Tribunal Federal; manifestações golpistas contestando o resultados das eleições, em 2 de novembro de 2022, inclusive diante de Comandos Militares em todo o Brasil; vandalização de Brasília em 12 de dezembro de 2022; apresentação de pedido de anulação da votação no segundo turno das eleições de 2022, pelo PL, ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE); tentativa de explodir caminhão de combustível no entorno do aeroporto de Brasília em 24 de dezembro de 2022; discurso de Bolsonaro, nos jardins do Palácio da Alvorada no qual afirmou que “somente Deus o tiraria do Poder”; convocação nas redes bolsonaristas para comparecimento à “festa da Selma”, na Esplanada dos Ministérios, em 4 de janeiro, pela qual era mencionado que o “golpe” seria do povo; ataque massivo à capital federal, vandalismos e agressões promovidos pelo movimento golpista em 8 de janeiro, em conluio com autoridades civis e militares; o atentado à bomba na Praça dos Três Poderes, em 13 de novembro de 2024 e, agora, a revelação do plano para assassinato das três autoridades acima mencionadas.
A cadeia de acontecimentos acima demonstra que existe um movimento golpista no Brasil, capitaneado por políticos que jamais poderiam ter autorização para participar de processos eletivos, menos ainda ocupar cargos e funções públicas. Já deveriam ter cassados seus direitos políticos.
Não há ditadura ou regime totalitário que não tenha sido antecedido por sinais claros de busca pela corrosão do regime democrático. Governos autoritários e populistas não surgem repentinamente. A cada omissão da sociedade e das autoridades, pavimenta-se um passo a mais rumo ao fim dos direitos humanos fundamentais, da liberdade e do regime democrático.
A questão que deve ser proposta diz respeito às reponsabilidades. É muito comum que, após os acontecimentos sucedidos pelos lapsos de tempo na história humana, sejam as responsabilidades da sociedade transferidas a uma espécie de entidade abstrata, impessoal: – ora, foram os “acontecimentos”; era o “contexto político da época”; – a responsabilidade foi dos “golpistas”.
Não há dúvida de que os mentores de um golpe de Estado e de planos para assassinar brasileiros legitimamente eleitos, historicamente elaborados pela extrema-direita oligárquica, no caso do Brasil, são os culpados e principais responsáveis. Mas, há um plexo de responsabilidades que não pode ser desconsiderado.
O filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994), que desenvolveu trabalhos em relação aos paradoxos da tolerância, afirmava que, no que tange à política, “…sempre devemos estar preparados ‘ao máximo para o pior’…” e que é dever de toda a sociedade organizar adequadamente as instituições políticas com o objetivo de impedir que governantes incompetentes e malfeitores promovam danos e estragos (VIEIRA, 2020.)
O Brasil, assim como outros Estados, especialmente em face do inequívoco avanço da extrema-direita populista e racista, em todo o mundo, vem demonstrando certa tolerância com tais movimentações. Não são raras, por exemplo, absolvições de propagadores de mensagens racistas, neonazistas, antissemitas ou golpistas, via de regra minimizadas e interpretadas de modo a serem normalizadas em nosso país.
Partidos políticos e candidatos que propagam mensagens de ódio, ficam impunes; a violência letal do Estado contra grupos vulnerabilizados, como as populações negras, indígenas e pobres, é também normalizada. Matar e não submeter pessoas suspeitas ao devido processo legal se tornou a regra, numa clara subversão interpretativa das leis, demonstrando o cabimento das proposições do Professor Pedro Serrano sobre o autoritarismo líquido .
Caminhamos há anos, assim, rumo à degradação democrática. E, como sociedade, somos todos responsáveis.
A revelação de que um grupo de elite das Forças Armadas brasileiras, que fazia a segurança durante o G20, conhecido como os Kids Pretos, por conta de sua indumentária, especializado em ações de sabotagem, incursões em terreno inimigo etc., participou ativamente do início das ações para tirar a vida do Ministro Alexandre de Moraes, por conta da alta gravidade ao envolver a ação de fanáticos uniformizados e armados com dinheiro do contribuinte, com o intuito de assassinar um Ministro da Suprema Corte, deve, no mínimo, conduzir à sua extinção.
Exemplos por parte de países que bem conhecem a gravidade das consequências de omissões em tais contextos, não faltam. Em 2020 o governo alemão dissolveu companhia de tropa de elite da Bundeswehr (Exército regular da República Federativa da Alemanha) exatamente por conta da revelação de escândalo sobre envolvimento de membros do comando militar especial com o extremismo de direita. Assim, a segunda companhia do Comando de Forças Especiais (KSK), a tropa de elite das Forças Armadas alemãs, foi extinta e seus membros envolvidos com o extremismo político, responsabilizados, em resposta ao escândalo.
Sob o atual contexto brasileiro, não há que se falar em anistia, consistente no perdão e extinção da punibilidade, à medida em que tal ato serviria de estímulo a novas tentativas de golpe de Estado, vez que as forças extremistas prosseguem se articulando para os próximos anos, no âmbito de uma movimentação global organizada. Assim, uma anistia, tal como proposta pelos porta-vozes de tais grupos extremistas, serviria com o desvio de sua finalidade originalmente consistente em pacificar a sociedade, e também com o intuito de eliminar o regime democrático e suas instituições, no Brasil, na região e no mundo. Tratar-se-ia da utilização flagrantemente inconstitucional do instituto.
Como disse, a reponsabilidade é de todos nós, de toda a sociedade brasileira, cujas instituições devem responsabilizar exemplarmente os culpados pela busca em se implantar no Brasil, o impensável.
Retornando a Karl Jaspers, o pensador ensinou que em relação aos acontecimentos políticos, suas causas e efeitos, sua inevitabilidade, parecem desonerar o povo da responsabilidade; contudo, arremata que em contextos históricos com causas e efeitos, a separação entre causa e responsabilidade não é válida quando a ação humana for uma destas “causas”; ou seja, afirma Jaspers, “…enquanto houver o envolvimento de decisões nos acontecimentos, aquilo que é causa será também culpa…” (*JASPERS; 2018,p.77/78, Ed. Todavia).
No mundo político e também no jurídico, “decisões” são tomadas por ações e por omissões.
Flávio de Leão Bastos Pereira é pós-doutorado em Direitos Humanos e Novas Tecnologias (Itália), doutor e mestre em Direito (Universidade Presbiteriana Mackenzie), membro da Associação de Advogadas/os, Juizas/es e Promotoras/es de Direitos Humanos da América Latina e Caribe, advogado e consultor do Fregni Advogados e Presidente da Frente Ampla Democrática Pelos Direitos Humanos (FADDH) e autor da obra “Genocídio Indígena no Brasil – Desenvolvimentismo Entre 1964 e 1985 (Ed. Juruá, 2018)