Políticas da morte e seus fantasmas
As economias e as dinâmicas de massacre concreto e simbólico que atravessam o mundo contemporâneo e, de modo muito especial, o contexto brasileiro deixam em seu rastro muitos corpos insepultos e uma esteira de silêncios e apagamentos de variadas ordens. Confira o segundo artigo do dossiê “Estado de choque”, série de seis análises que publicaremos até julho de 2019
[…] os que sabem
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles que pouco sabem,
ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada […]
Wisława Szymborska, “Fim e começo”, Poemas, Companhia das Letras. São Paulo, 2011.
O esquecimento, como nos diz o poema de Szymborska, é matéria não apenas do trabalho do tempo, mas também das mãos que removem os entulhos que ficaram no meio do caminho como marcas físicas da guerra: vigas a serem erguidas, portas que precisam ser postas em seus caixilhos, vidros estraçalhados a serem repostos. Em meio a tantas tarefas de refazer a vida ordinária – o varrer, o limpar, o cozinhar e o cozer – estão também a remoção dos corpos e mesmo a abertura das vias para que por elas passem os caminhões que os levam. E, mais que tudo, o sepultamento não só de corpos, mas de seus vestígios e mesmo de suas lembranças. Limpar, polir, deixar de falar. Substituir a narrativa por gestos e reticências que, ao mesmo tempo que lembram, parecem querer afastar a lembrança.
O fim e o começo que dão título ao poema não estão assegurados pelo armistício, mas são fruto desse trabalho íntimo e coletivo de não lembrar, de fazer esquecer, de deixar que o ruído dos dias e o passar das gerações produza o fim em meio a novos começos. Se o silenciar pode ser condição fundamental de refazer tanto a vida coletiva quanto as vidas individuais, protegendo não só os corpos, mas também os laços de afeto e a própria sanidade, é importante notar que ele não cobre ou extingue tudo o que foi visto, sabido e experimentado.
As economias e as dinâmicas de massacre concreto e simbólico que atravessam o mundo contemporâneo e, de modo muito especial, o contexto brasileiro deixam em seu rastro muitos corpos insepultos e uma esteira de silêncios e apagamentos de variadas ordens. Como argumenta Vera Telles no primeiro artigo deste dossiê, vivemos “sob a égide das obsessões securitárias e da lógica bélica e militarizada de gestão das populações indesejadas”.1 Nesse quadro, os mortos continuamente borrados sob a capa da irrealização que termos como “traficante” ou “terrorista” produzem são figuras paradoxais da hipervisibilização e do apagamento. Seguem sem nomes, apenas como “suspeitos”, tornados indistintos em corpos racializados e territorializados como negros, periféricos, favelados, estrangeiros. Sua singularização é impossibilitada não por qualquer semelhança de fato entre eles, mas por estar assentada nas imagens espectrais que os contornam: o selvagem, o outro incivilizado, o bárbaro. Como lembra Fanon, são aqueles que habitam a cidade do colonizado, espaço onde vivem e morrem não se sabe como.2
Para combatê-los não deve haver economia material ou discursiva, uma vez que é o próprio excesso que garante o sucesso das tecnologias de terror colonial.3 Máscaras com imagens de caveira; blindados que entram nos territórios favelados anunciando que vieram buscar almas; rastros de sangue que têm de ser lavados por vizinhos. Tiros que vêm às centenas do céu, dos blindados aéreos que ceifam vidas que permanecem anônimas em sua maioria e que às vezes, só às vezes, ganham a singularização do rosto de menino em camisa escolar, como no caso de Marcus Vinícius, assassinado na Maré em 2018. A presença de sua mãe, Bruna Silva, segurando a camisa escolar suja de sangue rompeu a invisibilização que cobriu todos aqueles que, ao contrário do menino que seguia para a escola, podiam permanecer no campo dos “suspeitos” ou possíveis “envolvidos”. Assim como Bruna, tantas outras mães, Dalva, Ana, Debora, Edna, Ana Paula, Fátima, Fatinha, Vera e muitas mais, vêm carregando as fotos de seus filhos para as ruas e para dentro das malhas do Estado, buscando romper o apagamento dessas mortes e dessas vidas. Basta, porém, confrontarmos as estatísticas para percebermos que se trata de um percentual muito pequeno diante daqueles que seguem anônimos.
Em 2018, no Rio de Janeiro sob intervenção militar, foram registradas oficialmente 1.532 mortes cometidas por policiais. Este ano de 2019 mal começou e os números seguem impressionantes: cento e sessenta mortos apenas no mês de janeiro,4 incluindo a brutal execução de quinze pessoas no Morro do Fallet, sendo dez delas em uma mesma casa. Se movimentos sociais se empenham em denunciar e evitar o apagamento dessas ações brutais sob o manto dos registros variados de “confronto”, um deputado recém-eleito – o mesmo que fez questão de se exibir rasgando a placa em memória da vereadora Marielle Franco – defende a homenagem aos policiais encarregados da ação. Afinado a ele, o governador do estado, Wilson Witzel, declarou de imediato que a ação policial era legítima. Há muitos corpos a serem removidos e há também disputa em torno de suas marcas. Há o sangue que deixam nas paredes encharcadas da casa ou nos caminhos por onde desceram; há os registros burocráticos que buscam desencarná-los e há as categorias discursivas que tingem as posições e perspectivas políticas dos que as escolhem. Nunca é rápido ou simples fazer que a guerra seja esquecida e se possa deitar no chão com o capim entre os dentes, como no verso final do poema de Szymborska.
As operações em torno do dizer ou não dizer, do recordar ou do esquecer não são exatamente binárias, porém. Elipses, alegorias, gestos, ambivalências e silêncios de grande capacidade expressiva inscrevem-se nos meandros das coisas que parecem findas, mas que talvez nunca o sejam. Acompanhando há alguns anos redes militantes de familiares de pessoas mortas por forças policiais, vejo nas imagens em torno da maternidade algo que supera em muito o potencial de uma metáfora. A dor no útero que não cessa, o cheiro de menstruação que acompanhou a mãe todo o dia antes de saber da morte do filho, a ligação espiritual que não se rompe porque a carne chama, o sangue puxa e a condição materna se faz perene. É no corpo e por meio do corpo que circula esse vínculo que a morte não desfaz e que, sobretudo, o soterramento estatal sob categorias administrativas como “auto de resistência” e similares não consegue encerrar. Carne, espírito, memória e afeto criam uma copresença entre mortos e vivos que tem forte alcance político.
É por essa copresença que são costuradas memórias privadas e espaço público, produzindo ruídos no silêncio que cerca suas mortes. As mães apresentam-se como figuras do trauma político, marcadas pelo que a antropóloga Grace Cho denomina de “perda da perda”.5 A impossibilidade de realizar plenamente o trabalho do luto soma-se à ruptura brutal com o futuro imaginado, acalentado, configurando um trauma que, ainda segundo Cho, não se localiza apenas no passado, mas se movimenta também em direção ao futuro, sendo transmitido transgeracionalmente e espraiando-se, portanto, para circuitos maiores. Não poucas vezes ouvi, seja em falas públicas, seja em falas mais íntimas, essas mulheres contarem não só dos filhos mortos, mas também dos netos que não chegariam a ter. Esse futuro perdido segue com elas, corre misturado ao presente, inscreve-se no cotidiano como uma espécie de devir ao avesso. São aniversários que se acumulam e idades que se cumprem sem serem cumpridas de fato. Mas são também outras datas que se amontoam: das audiências realizadas e não realizadas, dos julgamentos que raras vezes chegam, das mortes de outros meninos que trazem de volta ao corpo as mesmas sensações de quando eles, os seus, se foram.
Essas presenças fantasmáticas não devem ser pensadas apenas no âmbito das relações familiares ou dos afetos diretos. Elas se inscrevem como tecnologias de governo em territórios inteiros, passam por gerações, reencarnam nas novas mortes, nas chacinas, nas imagens replicadas que não dão conta dos números chocantes que configuram as estatísticas oficiais. Fazem-se presentes sob a forma de medos, cuidados, vergonhas e raivas que conduzem os vivos em suas andanças pelo mundo. O silêncio em torno desses mortos é, em verdade, ensurdecedor. Como no caso de tantas outras figuras contemporâneas, sejam os prisioneiros sujeitos à detenção indefinida em Guantánamo ou os refugiados que não podem retornar nem seguir em frente, esses vivos-matáveis existem em condição de irrealização contínua. Estão presentes e não estão. São evocados de maneira espectral quando se fala na necessidade de eliminá-los, formando um corpo coletivo e sem rosto definido que se materializa de súbito naqueles que foram (ou devem ser) alvo de snipers e drones, em uma fantasia de tons simultaneamente futuristas e nostálgicos. Ou que, em uma evocação animalizante e desumanizadora, devem ser “abatidos”, ou, ainda, que caem sufocados por seguranças terceirizados na porta de um supermercado. Bandido bom é bandido morto, reza o bordão, mas sabemos que a necropolítica também pode se tornar necrodestino na medida em que é sua morte que os produz inequivocamente como bandidos.
A natureza do silêncio que os cerca não está na falta de informações ou notícias, mas em outro tipo de interdição, a que envolve a impossibilidade de reconhecer que exista de fato perda nessas vidas ceifadas. Essa natureza ambígua de perda não perdida é o que garante sua presença espectral, como algo que, mesmo que não descrito plenamente, está sempre presente e prestes a irromper quando uma cena parece puxar outra mais subterrânea. O corpo sufocado no chão. O corpo atado ao poste e espancado. A mulher chicoteada pelo policial. Imagens que guardam outras imagens em si, encapsulando e insinuando um longo rastro de relações historicamente construídas de dominação. Uma vez mais, sugiro que pensemos na força produtiva e ao mesmo tempo críptica de termos como “traficante”, “envolvido”, “terrorista” ou mesmo “suspeito” – termos que parecem descrever algo que em verdade encobrem, que simulam dizer enquanto impedem que se diga. Que falam de corpos negros, de territórios de favela, de uma ordem de controle da riqueza e do poder atravessada pelas punições corporais. Um mundo em que a disciplina do trabalho nunca esteve desembaraçada nem do suplício – as surras públicas, as humilhações – nem do controle doméstico e discricionário.
Talvez uma das coisas mais atordoantes no Brasil hoje seja justamente lidar com a equação ética e estética que se alardeia sem pudores em torno desses tropos coloniais que tão profundamente nos conformam enquanto sociedade. O gozo com o suplício, a defesa estridente da execução sumária, a vociferação do desejo de “banir” as diferenças indesejadas mostram-nos que há uma aposta cênica de grande rentabilidade política que envolve diretamente os modos como lidamos coletivamente com vida e morte ou, para ser mais precisa, com vivos e mortos, e, consequentemente, com seus vestígios, marcas e presenças.
Em outubro de 2018, o deputado que agora enaltece os policiais da maior chacina em mais de uma década no Rio de Janeiro protagonizava a já mencionada cena de rasgar a placa em homenagem a Marielle Franco. Replicada estratégica e exaustivamente em diversas mídias, a fotografia encenava uma batalha política e estética com fortíssimas marcas de gênero, sexualidade, raça, classe e territorialidade. Vestindo camisetas com as imagens do então candidato Jair Bolsonaro, os dois homens brancos sorriam triunfantes com a placa rasgada nas mãos. Em seu apoio nos meios de comunicação veio Flavio Bolsonaro, defendendo que sua atitude visava apenas “restaurar a ordem”,6 trocando o nome da vereadora, mulher negra, lésbica, favelada e de esquerda, covardemente assassinada em 14 de março desse mesmo ano, pelo que seria a placa original. A praça voltaria, assim, a ser a Praça Floriano, homenageando o marechal Floriano Peixoto, que permanece ali imobilizado sob forma de estátua, mesmo que ninguém conheça por esse nome a famosa Cinelândia.
Achille Mbembe, ao discorrer sobre os monumentos coloniais, propõe que estes pertencem a um “duplo universo da necromancia e da geomancia”,7 estando, portanto, atravessados simultaneamente pela celebração constante aos mortos e pela tentativa de adivinhação do futuro por meio das marcas que deixam na terra. Diz-nos ainda que “essas estátuas funcionam como ritos de evocação dos defuntos, aos olhos dos quais a humanidade negra nunca contou para nada – razão pela qual jamais tiveram quaisquer escrúpulos em fazer, por nada, verter seu sangue”.8 Se seguirmos esse raciocínio, a ruptura da placa como “restauração da ordem” não deixa de fazer parte de uma batalha por meio dos mortos e, mais que isso, por meio da busca por ressuscitar alguns mortos e sepultar definitivamente outros. Ou, indo além, de uma batalha pela oportunidade de festejar a matança como parte central de nossa matriz colonial de dominação, controle e acumulação de poder.
Recentemente, já em 2019, soube-se que o deputado exibia metade da placa rompida em seu gabinete na Assembleia Legislativa estadual. Como troféu ou, mais precisamente, como fetiche, ela ali condensava camadas de sentido, saturava-os pela exibição exaustiva, pelo excesso, pela obscenidade. Mas os sentidos, como os fantasmas, não se deixam aprisionar tão facilmente. Em resposta à placa rasgada, foram feitas e distribuídas na mesma praça (que segue não sendo chamada de Floriano), mais mil placas. O rosto de Marielle permanece estampado em muros, em silhuetas, projetado em imagens, corporificado nas três mulheres negras de sua mandatA que foram eleitas e em mais tantas e tantas outras que a têm como referência. A exacerbação do desejo pela morte como forma de governar territórios e populações negros, periféricos e favelados – a cidade do colonizado, o sertão, o “lá” – que transparece na legitimação das chacinas ou na “restauração” da ordem pode e deve ser entendida como parte da geomancia colonial de que fala Mbembe. São atos que se pretendem divinatórios, imaginando ler nos sinais o mundo que, em verdade, buscam reencenar exaustivamente. Um chamado ao passado que se pretende futuro. Mas esse não é o único mundo possível, da mesma forma que os mortos monumentalizados não são os únicos que permeiam nosso mundo. E os mortos, como os vivos, não param quietos.
Confira os outros textos da série “Dossiê Estado de Choque”
Morrer antes da morte
Simulacros: a hiper-realidade do extermínio
Fazer sumir: o desaparecimento como tecnologia de poder
“Que morram”: a greve de fome e as indiferenças do Estado
A violência como forma de governo
*Adriana Vianna é professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional – UFRJ.
1 Vera Telles, “A violência como forma de governo”, Le Monde Diplomatique Brasil, fev. 2019
2 Frantz Fanon, Os condenados da terra, Editora da UFJF, Juiz de Fora, 2005.
3 Michael Taussig, Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem. Um estudo sobre o terror e a cura, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1993.
4 Dados do ISP – Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, www.isp.rj.gov.br.
5 Grace Cho, Haunting the Korean Diaspora. Shame, secrecy and the forgotten war [Assombrando a diáspora coreana. Vergonha, segredo e a guerra esquecida], University of Minnesota Press, 2008.
6 Exame, 4 out. 2018.
7 Achille Mbembe, Crítica da razão negra, N-1 Edições, 2018, p.226.
8 Ibidem, p.227.
___________________________________________
Pessoas executadas pela Polícia Militar que portam réplicas de armamentos, os chamados simulacros. Espaços escondidos no interior das prisões, atrás de placas de aço ou paredes duplicadas, evidenciando que o segredo é uma das formas estratégicas do poder político. Corpos desaparecidos, que envolvem ações das forças policiais, as quais mobilizam técnicas de fazer sumir, que são parte integrante de uma ampla maquinaria da produção de morte. Sujeitos que, ao mobilizarem a greve de fome como estratégia política na luta por direitos, evidenciam que, nos tempos atuais, a defesa da morte não só é publicamente aceitável, como também há vidas que valem menos do que outras. Em tempos sombrios – de dissolução de direitos adquiridos, de propostas autoritárias para a resolução de conflitos sociais, de utilização das Forças Armadas para os mais diversos fins –, o presente dossiê visa lançar um pouco de luz acerca do horror, do segredo e do abominável que marca as dinâmicas de funcionamento de distintos aparelhos estatais.
Organização: Fábio Mallart e Luís Brasilino.