Pôr em marcha as forças de transformação
Há uma grande dúvida hoje sobre o que é ser de esquerda no Brasil. Em comum, o enfrentamento das injustiças causadas pelo capitalismo, mas para cada visão sobre a questão se bifurcam táticas, objetivos e estratégiasCristiano Navarro e Luís Brasilino
Em termos políticos, raros são os partidos e candidaturas no Brasil que abertamente se apresentam para o debate público como de direita. Na maioria das vezes, mesmo diretamente ligados a interesses empresariais, candidatos e representantes do poder público preferem utilizar-se do verniz social vermelho para escamotear-se, incluindo em seus discursos a diluição das diferenças ideológicas ou mesmo o fim dos conceitos esquerda e direita.
Como exemplo, siglas com o nome de Popular Socialista (PPS), Social Democrata Brasileiro (PSDB) e Democratas (DEM) pouco ou quase nada traduzem as convicções do conjunto de filiados desses partidos.
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo em abril deste ano, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, maior responsável pela introdução da economia neoliberal no país, voltou a afirmar de forma categórica: “Hoje, se disser que sou de esquerda, as pessoas não vão acreditar. Embora seja. É verdade!”. Por sua vez, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, líder do maior partido de esquerda da América Latina, chegou a declarar em um seminário organizado para uma plateia de empresários que, “se você conhece uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque ela está com um problema”.
Se a postura dos partidos políticos embaralha as cartas, as disputas entre as forças de esquerda aprofundam ainda mais a confusão. Num clima de arquibancada, as disputas entre as forças progressistas dividem a esquerda entre, de um lado, os apoiadores de um governo neoliberal de continuidade e, portanto, de direita e, de outro, seus críticos, os quais, ao atacarem a gestão atual, fariam “o jogo da direita”.
Em comum entre as esquerdas
Apesar de jamais ter existido um entendimento único sobre o que é ser de esquerda no Brasil, em comum aos diversos espectros desse campo político, entre movimentos sociais, sindicatos e partidos, todos são unânimes ao afirmar a necessidade de propor e atuar por transformações que superem injustiças geradas pelo sistema econômico capitalista. Os grupos também concordam e colocam como imprescindível para o alcance de seus objetivos a permanente formação de novos quadros políticos e a mobilização da sociedade.
Desde a redemocratização, a estratégia revolucionária de tomada do poder via luta armada para a construção de uma nova ordem social e econômica não faz parte (ao menos publicamente) da agenda de nenhuma organização de esquerda no Brasil. Aos que almejam assumir o governo, restou como única opção a via institucional da criação de um partido para disputar e vencer as eleições por meio do voto.
Ainda compõem o repertório desse espectro político greves, protestos, ocupações de terra e de prédios públicos e privados, fechamento de vias e estradas e consultas públicas informais. Essas ações ocorrem dentro de marcos legais – ainda que muitas vezes ultrapassem o limite da desobediência civil –, respaldadas pela própria Constituição Federal em um Estado democrático de direito no qual, minimamente, é possível reivindicar transformações pontuais de todos os tipos: da descriminalização das drogas, passando pelo fim da Polícia Militar, direito à moradia, reforma agrária, contra privatizações, até os mais tradicionais direitos trabalhistas e aumentos salariais.
Transformações em marcha
Mesmo com as diversas afinidades em termos de programa, as forças de esquerda se diferenciam quando a questão é como realizar essas transformações.
O sindicalista Adilson Araújo, presidente da Central Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), próxima ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), mas que também conta com membros do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e outras forças independentes, acredita ser fundamental para a esquerda hoje aproveitar os anos de governo petista na Presidência da República para impulsionar as mudanças substanciais. “O desafio da esquerda é efetivamente lutar para avançar no processo de mudanças, permitindo uma transição para que se consiga, de fato, criar um ambiente onde se consolide um projeto de sociedade mais humano e menos desigual. Evidentemente, isso não se dará de forma utópica”, afirma.
Diferentemente do sindicalista, Chico Alencar, deputado federal pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol), vê na experiência dos mandatos de Dilma Rousseff e Lula pontos complicadores na expansão dos valores de esquerda na sociedade. “Depois do importante fluxo de lutas que levou o PT ao governo, seguido do refluxo e do desencanto provocados pelas promessas não cumpridas de mudança, abre-se um longo período amplamente dominado pela geleia geral da pequena política. Em tal quadro, o pré-requisito para pôr em marcha as forças sociais da transformação é um processo marcado pelas difíceis tarefas do recomeço. Fechar o ciclo do desencanto, reativar os movimentos e resgatar o sentido da grande política, aquela que debate e formula um projeto alternativo. E, ainda por cima, ressignificar o ideário socialista, sabendo que não há mais paradigmas, bússolas ou mesmo mapas.”
Alencar observa que, ao encerrar o desencanto, as maciças manifestações que aconteceram em junho de 2013 cumpriram a primeira etapa desse ciclo, mas ainda é necessária a construção de um novo projeto dentro do mesmo espírito. “A tarefa atual, portanto, passa pela continuidade, nos múltiplos movimentos que animaram aquela multidão.”
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) procura executar sua estratégia de transformação da sociedade sintonizando seu trabalho permanente de formação política e ideológica dos militantes com suas ações, levando em conta a conjuntura política a partir da correlação de forças. No entanto, João Pedro Stedile, da direção nacional do MST, avalia a conjuntura atual como apática. “Os processos de luta política vão acontecendo em ondas históricas, nas quais há momentos de ascenso do movimento de massas, momentos de enfrentamentos e disputa de projetos com a burguesia, momentos de derrota e descenso do movimento de massas e momentos de estabilidade e apatia. Estamos nesse quarto estágio, mas ele sempre vem antes do reascenso, que espero que volte a acontecer rápido em nosso país.”
Fazendo, assim como o Psol, oposição partidária pela esquerda ao projeto do PT, Mauro Iasi, professor da Escola de Serviço Social da UFRJ e membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), entende que os protestos a partir de junho de 2013 irromperam na cena política brasileira quando prevalecia um cenário de apassivamento e cooptação. “A reação contra o desmonte das políticas públicas em áreas como saúde, educação, moradia e transporte coloca em marcha segmentos da classe trabalhadora que, ao se chocarem contra as manifestações mais evidentes da ordem burguesa, contribuem para a necessária crítica anticapitalista”, destaca o dirigente do PCB. Em sua opinião, cabe às forças políticas de esquerda dar forma a essas insatisfações e apontar uma direção política. “Para nós, essa direção aponta para necessidade e urgência de uma alternativa socialista”, afirma Iasi.
A metodologia aplicada na organização social pelo Movimento Passe Livre do Distrito Federal (MPL-DF) baseia-se na máxima zapatista “abaixo e à esquerda”. “As manifestações de rua são uma tática, mas ela é resultado de todo um processo cotidiano silencioso, de trabalho com outras organizações, com outras comunidades etc. Ou seja, para que as transformações pelas quais lutamos ocorram, é necessário que elas sejam coletivas e autônomas”, comenta Maria Paiva Lins, militante do MPL-DF.
Apostando no constante trabalho de base e na afirmação da tarifa zero, as lutas de transformação do MPL contam ainda com a própria precariedade do transporte público. “A forma como o transporte está organizado hoje gera um caos, e não é necessário muito para que a população se revolte contra ele, vide as diversas manifestações populares que ocorrem no entorno de Brasília e em várias outras cidades quando um ônibus quebra ou quando há aumento na tarifa”, assinala Maria.
A bola da vez
Em 2009, após se iniciarem as obras para a Copa do Mundo Fifa 2014, doze comitês populares organizados nas cidades sedes da competição passaram a fazer ações de formação e mobilizações ininterruptas e articuladas em nível local, nacional e internacional sobre as questões ligadas ao megaevento. Assim, durante a Copa das Confederações em junho de 2013 foi possível aos comitês locais, formados por coletivos e movimentos sociais, marcar o cenário das lutas iniciadas pelo Passe Livre em São Paulo para denunciar questões como as remoções das dezenas de milhares de famílias de suas casas e o alto custo dos estádios.
“Costumo enfatizar que nossas pautas, ações e estratégias de atuação ocorreram no momento oportuno. Porque, enquanto o Brasil se alegrava com a realização da Copa em nosso território, nós (um coletivo plural, diversificado – pesquisadores, militantes, atingidos, ativistas) nos preparamos para enfrentar as violações que um megaevento como esse inflige a milhares de famílias e comunidades”, relata o videoativista Argemiro Ferreira de Almeida, membro da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop) da Bahia.
A pressão popular surpreendeu e colocou em alerta os organizadores e patrocinadores do megaevento. Em dezembro de 2013, ao canal ESPN Brasil, o secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, chegou a confessar que o cancelamento da Copa das Confederações foi cogitado em reunião com representantes do governo brasileiro. Almeida não acredita que haja uma única fórmula capaz de mobilizar o conjunto das esquerdas, mas indica a atuação em rede de coletivos e movimentos sociais com pautas comuns como uma das principais lições dessas mobilizações. “Das diversas estratégias possíveis em ação de transformação social, a que mais tem chance de operar mudanças profundas na sociedade é aquela que consegue congregar os diferentes coletivos para atacar ao mesmo tempo.”
BOX
O que é ser de esquerda hoje no Brasil?
“‘Ser de esquerda’ tem atualmente múltiplos significados. O cenário político é complexo e supera qualquer binarismo do tipo ‘direita-esquerda’. Com um partido ‘de esquerda’ no governo federal, parece que a classe patronal, ruralista, patriarcal, racista e heterossexista estaria ameaçada. No entanto, ainda que o PT realize algumas ações de cunho progressista, as estruturas políticas mantidas pela direita se mantêm. Na questão indígena [por exemplo], além de não haver demarcações, neste governo os direitos conquistados foram mais ameaçados do que nunca após a Constituição de 1988. Isso exemplifica que o poder conservador (de direita) se mantém quando o assunto é governo e se manterá independentemente das siglas que o ocupam, ainda que exista outra categoria de esquerda que insiste em seguir com essa disputa governista. É aí que entra outra concepção de esquerda, que não está interessada em disputar o governo do Estado, justamente porque entende que o poder popular deve vir de baixo, construído com base na autonomia e independência do povo. Há então um leque diverso do que seria a esquerda no Brasil, tanto a de um partido que está há doze anos no governo quanto a dos partidos que disputam essa forma de fazer política, ou ainda a de movimentos sociais que se recusam a realizar essa disputa.”
Maria Paiva Lins, militante do MPL de Brasília
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“Exprimir um posicionamento do que é ser de esquerda hoje no Brasil exige recolocar a questão no contexto das realidades onde se desempenha o sistema econômico capitalista neoliberal em sua mais variada engenhosidade. Essa realidade forçosamente nos leva a olhar para esse modelo hegemônico e detectar quais são as forças que se opõem a ele. De modo geral, essas forças opositoras, a meu ver, são constitutivas e constituintes do que compreendo como esquerda.”
Argemiro Ferreira de Almeida, membro do Comitê Popular da Copa Bahia e da Ancop
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“O Brasil tem sido, desde sempre, um país marcado por padrões inaceitáveis de injustiça e violência decorrentes da profunda desigualdade social que o caracteriza. Daí porque, tanto hoje como ontem, ser de esquerda no Brasil é lutar contra a desigualdade social, mantendo acesa a chama da utopia por um outro tipo de sociedade. Em todas as frentes e o tempo todo. Nas lutas do dia a dia e na formulação de projetos estratégicos, nos movimentos sociais e nos embates institucionais, nas ruas e nas urnas, em todos os lugares onde os conflitos gerados pela desigualdade forneçam espaços de luta política, social e cultural. Nosso objetivo estratégico continua sendo a democratização radical: socialização dos grandes meios de produção e dos meios de governar.”
Chico Alencar, deputado federal (Psol-RJ)
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“Ser de esquerda é ter um programa de mudanças da sociedade brasileira que se proponha a eliminar a enorme desigualdade social, democratizar radicalmente o Estado e universalizar o acesso de todo o povo à educação e aos meios de comunicação de massa. Ser de esquerda é acreditar que apenas organizando o povo, nas mais diferentes formas possíveis, com base em nossas tradições culturais e fazendo lutas de massa, poderemos acumular forças para realizar essas mudanças. Ser de esquerda é acreditar que o que deve nortear nossa prática social, familiar e política são os valores humanistas e socialistas. É combater o egoísmo, o individualismo e o consumismo propostos pelo capitalismo.”
João Pedro Stedile, da direção nacional do MST
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“A condição de esquerda, hoje mais que nunca, deve ter um conteúdo de classe. A ordem burguesa tornou-se hegemônica no Brasil e em grande parte coopta setores da classe trabalhadora fazendo-os crer que a solução de seus problemas pode se dar pelo desenvolvimento da sociedade capitalista. Ser de esquerda é afirmar que isso não é possível e que é necessário recuperarmos a independência e a autonomia de classe, afirmando uma alternativa socialista, radicalmente anticapitalista.”
Mauro Iasi, do Comitê Central do PCB
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“Ser de esquerda é pensar no novo. A maturidade política reservou um espaço importante para as forças do campo democrático-popular. Nosso país tem um déficit secular e, portanto, ser de esquerda hoje é impulsionar o novo momento que vive o Brasil, que tem permitido uma mudança substancial, sobretudo no que diz respeito à garantia da liberdade, da democracia e das conquistas sociais. Os processos revolucionários não vêm mais como no passado, e sim no campo da batalha política eleitoral, que tem trazido elementos fundamentais e no qual a esquerda tem se revelado uma alternativa importante no mundo e em particular em nosso continente.”
Adilson Araújo, presidente da CTB
Cristiano Navarro e Luís Brasilino são editores do Le Monde Diplomatique Brasil.