Por um projeto de tecnologia brasileira
Um projeto de tecnologia a partir dos saberes da cultura brasileira vai além de considerações circunscritas ao âmbito tecnológico somente, por ser necessário alcançar também as dimensões socioeconômicas e políticas que dão forma ao país
No final de julho passado, o governo federal lançou a proposta do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), cujo objetivo é transformar o país em um modelo global de eficiência e inovação no uso de Inteligência Artificial (IA).
O PBIA é abrangente e busca contemplar necessidades e interesses do Estado brasileiro, da sociedade civil e da comunidade empresarial. Ao consultar a proposta do plano, sobreveio a ideia de dialogar com as asserções ali incluídas e tecer alguns comentários sobre possíveis relações entre a sociedade brasileira e as tecnologias.
Registra-se aqui o termo tecnologias e não Inteligência Artificial, conforme usos comuns de algo que se tornou metonímia nas relações comunicacionais da vida cotidiana. Ou seja, reduz-se o debate sobre tecnologias e sociedade a termos como Inteligência Artificial, machine learning, ChatGPT e outras acepções que se tornam modismo e esquece-se de toda uma lógica de produção técnica hoje amparada em códigos[1], que vão dar forma a meios técnicos como plataformas comerciais e de redes sociais mediadas, por exemplo, em sensores, que serão os meios para produzir conexões nas mais variadas situações, e em dados, uma forma de racionalidade para acúmulo irrestrito de tudo que informa e se movimenta nos ambientes digitais e não digitais.

Foto: Washington Costa
Criticar o uso demasiado de termos como Inteligência Artificial, que sublima a complexidade da racionalidade técnica (gestão de códigos, dados e sensores), não quer dizer que discordo que haja debate a partir desse tipo de termo. Pelo contrário: é preciso discutir os meios técnicos que nos cercam, utilizando os nomes que o processo de midiatização da cultura e da sociedade[2] adota para interagir com as pessoas e as instituições, mas é preciso alertar que as discussões em âmbitos nacionais e transnacionais prescindem de se observar o fenômeno das Inteligências Artificiais como integrantes de um problema histórico-social maior que atravessa as relações entre os humanos e as tecnologias.
No contexto da cultura brasileira, é necessário lembrar que o país construiu um considerável processo histórico de projetos e ações voltados para a promoção do desenvolvimento social, técnico e científico, e é preciso, mesmo que brevemente, registrar alguns pontos dessa jornada de construção social.
O primeiro ponto a ser aqui tratado diz respeito a uma tradição de inventores que construíram história a partir da identidade brasileira, como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, pesquisadores reconhecidos internacionalmente na área de saúde, e Santos Dumont, um dedicado cientista da área de aviação.
Juntem-se a esses brasileiros criativos, a presença desde o final do século XX de intelectuais que pensaram as tecnologias dentro de uma perspectiva brasileira, como Vilém Flusser[3], um estudioso dos códigos digitais e da forma como ocorrem as relações entre os humanos em um mundo cada vez mais codificado.
Álvaro Vieira Pinto é outra personalidade relevante da nossa cultura, que fez uma extensa discussão sobre o conceito de tecnologia, contribuindo para a construção de um arcabouço teórico sobre a filosofia da técnica, com um olhar filosófico brasileiro.
Milton Santos contribuiu com discussões sobre o espaço e a globalização, assinalando as intrincadas relações entre o meio técnico-científico-informacional e o meio natural, e Arlindo Machado e Laymert Santos pensaram transversalmente a questão das tecnologias, tendo em conta as interlocuções entre tecnologia, arte e sociedade.
O segundo ponto em discussão diz respeito ao âmbito institucional, pois é variada a contribuição de muitas entidades brasileiras para a construção de um projeto de país com identidade própria quanto às relações com as tecnologias. Observe o Sistema Financeiro Nacional, composto por diversificados setores da sociedade, incluindo instituições públicas, estatais e empresas privadas, que processa uma numerosa quantidade de dados, que circulam de uma instituição financeira a outra, de um cidadão para uma instituição financeira, de uma instituição comercial para um cidadão, sob a mediação de uma instituição financeira, movimentando as riquezas nacionais.
Além disso, o Brasil é referência em pesquisa sobre petróleo em águas profundas e se dedicou aos estudos que tornou o álcool uma alternativa de combustível para carros. A sociedade brasileira também se viu na necessidade de criar um sistema eleitoral ágil, seguro e efetivo e hoje o país demora menos de 24 horas, após o encerramento da votação, para apresentar os resultados das eleições municipais, estaduais ou nacional. O que dizer de um consistente sistema de saúde reconhecido mundialmente, cujo funcionamento se alicerça em uma infraestrutura tecnológica complexa, como é o SUS?
São tão comuns as contribuições inventivas aqui listadas que as pessoas quase não notam que as referidas soluções sociais são sustentadas por complexas estruturas tecnológicas. Muito menos lembram que a veia inventiva brasileira está registrada nas referidas soluções sociais.
É preciso registrar também a existência de um conjunto sólido de instituições que participa cotidianamente do desenvolvimento do país em termos de ciência e tecnologia, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), com contribuições relevantes na divulgação do desenvolvimento científico e tecnológico do país; o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), que tem por objetivo, entre outros, estabelecer diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da Internet no Brasil; a Associação Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), uma rede brasileira para educação e pesquisa, que interage com universidades, institutos educacionais e culturais, agências de pesquisa, hospitais de ensino, parques e polos tecnológicos; e a Embrapa, que atua para construir conhecimentos e tecnologias para a agropecuária brasileira.
Além disto o país dispõe de um sistema de educação superior público, formado por universidades e institutos de tecnologias, que se dedica à pesquisa, à educação e à extensão, contribuindo para a formação daqueles que poderão participar do desenvolvimento científico e tecnológico da nação.
O leitor pode ter objeções quanto à efetividade das soluções sociais aqui listadas, mas é preciso lembrar que projetos de sociedade são passíveis de erros e lapsos e que é preciso ter acompanhamento constante dos processos que dão vida às soluções aqui apresentadas. O que não é possível ignorar é o complexo conjunto de iniciativas da sociedade brasileira para o desenvolvimento técnico e científico do Brasil.
Feito este breviário não exaustivo da história do desenvolvimento técnico e científico do Brasil, é preciso também fazer apreciações sobre os próximos passos que o país intenta alcançar tendo em conta o Novo Plano Brasileiro de Inteligência Artificial. As apreciações são as seguintes:
- A Inteligência Artificial brasileira precisa ser reconhecida como uma forma de cosmotécnica[4], ou seja, um processo sociocultural sustentado por tecnologias, construído a partir de olhares e práticas singulares intrínsecos à cultura brasileira. Cosmotécnica como uma prática inovadora de “florescimento de trabalhos verdadeiramente inaugurais, capazes de extrair o máximo das potencialidades significantes dos nossos meios”, como já alertava anos atrás o pensador brasileiro Arlindo Machado[5].
- A Inteligência Artificial não é mera ferramenta de uso técnico, mas se converte em um processo social e técnico que necessita ser articulado em benefício da humanidade e dos demais entes não humanos (flora, fauna, recursos minerais e os inventos técnicos).
- É preciso estabelecer um trabalho constante de valorização dos processos inventivos locais e, ao mesmo tempo, respeitar toda a tradição global de elaboração da técnica já construída pela humanidade.
- É necessário estabelecer interseções entre os saberes locais e os saberes globais como premissa de uma construção social e técnica voltada para a valorização da soberania nacional, ao mesmo tempo que se reconhece os valores inventivos oriundos das demais nações.
- É necessário reconhecer outras formas de produção técnica, além das tradições hegemônicas contemporâneas, indo além do pensamento único estabelecido pelas iniciativas estadunidense e europeia.
- A Inteligência Artificial brasileira precisa ser sustentada por investimentos advindos do setor público e do setor privado, tanto em atividades de pesquisa básica quanto de pesquisa aplicada.
- É preciso que as empresas brasileiras se reconheçam como entes que possuem objetivos sociais vinculados aos interesses de desenvolvimento da nação brasileira, pois não é mais possível investir em empresas que só visam ao lucro e não distribuem parte do que ganham em forma de benefícios sociais, como seguridade social, saúde, lazer, emprego, educação etc.
- O desenvolvimento de processos de Inteligência Artificial de uma nação perpassa construir conhecimentos alicerçados em lógicas computacionais ligadas à construção de códigos, interconexão de sensores e gerenciamento de grandes quantidades de dados; é preciso não ficar preso ao fetiche de que só investir em Inteligência Artificial é sinônimo de promoção de desenvolvimento tecnológico de um país.
- É preciso contar com a participação de autores de diversificados setores da sociedade brasileira em um projeto maior de desenvolvimento técnico e científico do Brasil, o que demanda um trabalho de governança multidisciplinar, multissetorial, multirracial, multigênero, multietário e multi-institucional.
- É preciso reconhecer a história do desenvolvimento técnico e científico do país, aprendendo com os erros e ressignificando as experiências que foram bem-sucedidas.
- Enfim, para que as asserções acima possam se concretizar, é preciso que todos os cidadãos tenham acesso a uma educação multirreferencializada, que leve em conta os saberes locais, os das ciências, os das artes, a partir de uma posição filosófica clara em benefício dos humanos e dos não humanos que compõem a existência na Terra.
Um projeto de país, voltado para o desenvolvimento técnico e científico, envolve assunção de identidades, uma cosmovisão de si, que se liga aos demais entes, reconhecendo as diferenças que possam contribuir para o desenvolvimento da humanidade.
Um projeto de tecnologia a partir dos saberes da cultura brasileira neste sentido vai além de considerações circunscritas ao âmbito tecnológico somente, por ser necessário alcançar também as dimensões socioeconômicas e políticas que dão forma ao país, reconhecendo a participação de todos, pessoas e instituições, conformando-se como um projeto de soberania nacional, tendo em conta que “lutar por soberania tecnológica sem lutar por soberania econômica é inútil”, conforme nos assevera Evgeny Morozov.
Enfim, um projeto de tecnologia “depende do engajamento e colaboração entre governo, academia, setor privado e sociedade civil”. Então, brasileiros e brasileiras, uni-vos em prol de um projeto de Inteligência Artificial na perspectiva da cultura brasileira, pois outras tecnologias são possíveis.
Cleonilton Souza é doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia e mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador.
[1] Sobre as articulações entre códigos, dados e sensores, leia O mundo dado, cinco lições de filosofia digital, de Cosimo Accoto (2020).
[2] Sobre este assunto, leia Midiatização da cultura e da sociedade, de Stig Hjarvard (2014).
[3] Vilém Flusser nasceu na antiga Tchecoslováquia e se naturalizou brasileiro na década de 1950. Ele viveu no Brasil entre as décadas de 1940 e 1970. Filósofo e professor, Flusser escreveu sobre linguagem, comunicação, educação e filosofia da técnica.
[4] Sobre cosmotécnica, leia Tecnodiversidade, de Yuk Hui (2020).
[5] Arlindo Machado, em Máquina e imaginário, p. 11. Edusp, 2001.