Por uma política de drogas pautada na saúde e não na punição

Medida 110

Por uma política de drogas pautada na saúde e não na punição

por Ana Luiza Voltolini Uwai
10 de novembro de 2020
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Ainda que a Medida 110, de Oregon, tenha critérios objetivos que determinam o que é considerada quantidade para uso das substâncias, não são especificados na lei os critérios que definem, no flagrante, o que pode sugerir que aquele é um caso de uso comercial para tráfico

O estado de Oregon, nos Estados Unidos, aprovou a Medida 110, que descriminalizou a posse de pequenas quantidades de substâncias psicoativas. A lei foi aprovada por meio de um plebiscito, em que o “sim” recebeu 58,6% dos votos.

Diversas organizações, como a Drug Policy Alliance e a Human Rights Watch, bem como partidos políticos e pessoas físicas apoiaram campanhas pelo “Sim”. A lei foi proposta por Anthony Johnson, ativista pela legalização da maconha, Haven Wheelock, especialista em saúde pública e coordenadora do programa de troca de seringas Outside In e Janie Gullickson, diretora executiva da Associação de Saúde Mental e Dependência de Oregon.

No estado, o uso recreacional da maconha já é descriminalizado desde 2015, tendo sido o primeiro do país a adotar a legalização da droga. O uso terapêutico e medicinal de cogumelos alucinógenos também foi legalizado.

A partir da aprovação da medida, a posse de outros tipos de drogas passa para a “categoria E”, sendo considerada um contravenção que não prevê pena de prisão. Ao invés disso, a pessoa flagrada com as quantidades determinadas para cada droga, deverá pagar uma multa de U$ 100 ou ser encaminhada ao que foi chamado de “Centro de Recuperação de Dependências”, onde deverá passar por uma avaliação de saúde gratuita com um ou uma profissional.

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heroína (1 grama ou menos)
cocaína (2 gramas ou menos)
metanfetamina (2 gramas ou menos)
MDMA (menos de 1 grama ou 5 comprimidos)
LSD (menos de 40 unidades)
psilocibina (menos de 12 gramas)
metadona (menos de 40 unidades)
oxicodona (menos de 40 comprimidos, comprimidos ou cápsulas)

 

Nos casos de flagrante de posse de maiores quantidades, a punição continua sendo de prisão, porém com penas menores, e sendo considerados contravenções.

Os centros de recuperação serão financiados com os impostos arrecadados pela venda de maconha no estado. A lei prevê, ainda, que organizações que trabalham com o tema também poderão ser financiadas para atender os encaminhamentos.

O que o Brasil pode aprender com a Medida 110?

Para o Centro de Convivência É de Lei, uma organização que trabalha há mais de 20 anos com redução de riscos e danos,  a medida deve, sim, ser comemorada, principalmente por ser orientada pela redução de danos e por considerar os impactos da guerra às drogas na população negra e pobre.

No texto, uma das justificativas da lei é que “punir pessoas que sofrem de dependência arruína vidas. A criminalização das drogas sobrecarrega as pessoas com antecedentes criminais. Esses registros os impedem de conseguir moradia, ir à escola, obter empréstimos, obter licenças profissionais, conseguir empregos e manter empregos. A criminalização de drogas prejudica desproporcionalmente os pobres e pessoas negras” (tradução livre).

No entanto, é preciso ter certa cautela ao comemorar, a exemplo do que vimos acontecer no Brasil em 2006, com a aprovação da lei nº 11.343. Quando foi celebrada a distinção entre pessoas usuárias de traficantes, foi exaltado o fato de que o uso de drogas passaria a ser visto como uma questão de saúde. Porém, quase 15 anos depois, o encarceramento de pessoas negras e pobres no país nos mostra quem é visto como usuário e traficante pelas polícias e pelo judiciário.

Ainda que a Medida 110, de Oregon, tenha critérios objetivos que determinam o que é considerada quantidade para uso das substâncias, não são especificados na lei os critérios que definem, no flagrante, o que pode sugerir que aquele é um caso de uso comercial para tráfico. A diferenciação por critérios objetivos de quantidade pode ser perigosa no sentido de não se considerar contextos importantes para a determinação da intenção de comércio. Por exemplo, pessoas que fazem usos considerados indevidos de drogas, geralmente compram em maior quantidade para evitar muitas idas a locais de compra.

Portanto, é possível assumir que essa distinção ficará a cargo da polícia, que é a instituição responsável pelos flagrantes. A mesma polícia que tem reagido com violência aos protestos que vêm acontecendo desde o assassinato de George Floyd.

Estamos caminhando a passos lentos para uma política de drogas ideal, que considere a legalização com reparação às pessoas afetadas pela guerra às drogas, principalmente à população negra, mas a Medida 110 cria precedentes importantes no horizonte de iniciativas populares, e que prezam por políticas pautadas na única lógica possível para o cuidado: a redução de danos.

Ana Luiza Voltolini Uwai é jornalista, redutora de danos e integrante do Centro de Convivência É de Lei



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