A tentativa de privatização da água em Minas Gerais
Romeu Zema tornou-se inimigo número um do meio ambiente, em prol do mercado financeiro e das corporações, quando enfraqueceu a vistoria das barragens de rejeito de minério, flexibilizou leis de fiscalização ambiental e promoveu a liberação de mais agrotóxicos
Duas descobertas científicas alarmantes serão abordadas na 28ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP28), nos Emirados Árabes Unidos, em novembro de 2023: a primeira, publicada pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), em outubro de 2021, e amplamente divulgada pela ONU, comprova que apenas cerca de 0,5% da água disponível na Terra é potável e corre risco de escassez. A segunda, reportada na revista Geophysical Research Letters, em junho de 2023, revelou um cenário até então inimaginável para o destino do planeta: a extração excessiva de água subterrânea, no período-auge das privatizações (entre 1993 e 2010), ocasionou uma inclinação maior na rotação do eixo da Terra, acentuando ainda mais a variação climática.
Essas notícias atestam o supremo desafio mundial a ser enfrentado na próxima década: a escassez da água. Dados revelam que, enquanto 25 países já se encontram em situação severa de escassez, o Brasil compartilha cerca de 60% de toda a água potável do mundo juntamente a oito outros países: Canadá, China, Colômbia, Índia, Indonésia, República Democrática do Congo e Rússia. Porém, atualmente, o país se destaca pelo retorno da privatização da água.
Detentor dessa abundante riqueza natural que lhe dá vantagem comparativa em relação às demais nações, o Brasil utiliza a escassez do recurso como um atributo para investimentos e ações – conduta, inclusive, antagônica à premência de preservação da água. Foi assim que o Novo Marco do Saneamento, promulgado pela Lei n° 14.026/2020, garantiu que o neoliberalismo avançasse em várias cidades e estados, mesmo diante do Estado de bem-estar social promovido pelo atual governo federal.
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Sob esse paradigma, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, tornou-se inimigo número um do meio ambiente, em prol do mercado financeiro e das corporações, quando enfraqueceu a vistoria das barragens de rejeito de minério, flexibilizou leis de fiscalização ambiental e promoveu a liberação de mais agrotóxicos. Medidas essas que resultam na contaminação da água.
Não obstante a intensa crise hídrica e a seca acometendo 135 municípios mineiros, nada é mais grave, no entanto, do que a captação desmedida e sem sustentabilidade da água – procedimento que encontra grande oferta no estado. Por mais inconcebível que seja, o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), órgão que supostamente protegeria esse recurso natural, quase quadruplicou o número de outorgas: de 900 pedidos, em 2018, para 3.500, em 2029. Em seu website, o valor da água vem designado em tabela específica, informando os inúmeros tipos de exploração hídrica e de lençóis freáticos. A extração advém de trinta rios e dez afluentes, fora os reservatórios de Furnas e de Três Marias. Sobre os diversos tipos de retiradas, há aplicação de taxas referentes a processos de regularização ambiental: para captação de água em nascente, por exemplo, é cobrado o mesmo valor que aquele atinente ao desvio de um curso de água: R$ 1.732,69. Já para o aproveitamento de potencial hidrelétrico, o custo é de R$ 13.604,67.
Não há estimativa sobre o número de poços artesianos clandestinos em Minas Gerais, porém, os dados divulgados pelo Instituto Trata Brasil, de 2019, constataram que 88% do total de poços no país são ilegais. Desse modo, visando-se competir com a clandestinidade, a autorização para perfuração de poços tubulares, no estado, tem preço mais baixo para o consumidor: R$ 186.
Em 2022, foi permita uma insignificante captação de águas subterrâneas (14 m³/dia) sem a necessidade de outorga. Com a vasta deliberação de extração de água sob a superfície terrestre, também cresce o mercado de perfuração de poços artesianos. Há oferta de diferentes materiais para a construção dos poços, nos websites de empresas do ramo, embora as próprias especificações apontem os perigos/desvantagens do uso dos insumos: tanto o PVC geomecânico, que confere “o risco de ressecar ou trincar”, quanto o aço carbono, que deve “enferrujar”, podem levar à “contaminação da água.” Os outros dois materiais disponíveis – aço galvanizado e aço inoxidável (o mais caro de todos) – “verificam melhor qualidade e longevidade”. Para cada modalidade, o preço do metro varia de R$ 320 a R$ 950.
Contudo, uma vez que as águas subterrâneas são contaminadas, sua recuperação é praticamente irreversível. Também de difícil recuperação ambiental são as águas superficiais contaminadas pelas mineradoras no estado, haja visto a longa extensão das regiões afetadas pelos desastres de Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019, onde a água para consumo segue imprópria.
É nessa conjuntura que Zema insiste na privatização, em que empresas privadas exercem o direito à captação de água sem limite e sem monitoramento aliado às boas práticas de conservação. Para tanto, o governador tenta driblar o art. 14, § 17 da Constituição do Estado de Minas Gerais que vindica votação popular por meio de referendo para optar sobre a desestatização da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) e da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). Após se declarar contrário ao plebiscito, protocolou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), em agosto último, a fim de cancelar tal condição. Além do mais, pediu alteração do inciso § 15, que designa a anuição de três quintos do quórum (46 dos 77 deputados), computando-se apenas 39 votos para aprovar uma cisão de sociedade de economia mista e de empresa pública.
Considerando a total ausência do Estado, determinado pela mão invisível do mercado no cumprimento de normas e leis, nada é mais desolador do que o desmantelamento dos órgãos que deveriam honrar a segurança das barragens, preservação do meio ambiente e a proteção da água. Mesmo assim, Zema quer retirar o poder da população de decidir sobre o acesso à água potável – direito inalienável do ser humano –, em um estado que registra fenômenos equivalentes aos das nações que sofrem escassez de água, tais como: seca, contaminação, falta de manejo e exploração das reservas hídricas sem sustentabilidade. O contexto é uma somatória de erros, traduzindo a má gestão política.
Desse modo, apenas a federalização, que propõe a transferência de água e energia para o governo federal como forma de pagar a dívida de Minas Gerais com a União, poderia conter os avanços das privatizações dessas empresas por Zema. Porém, é importante rever a situação do IGAM, e suas políticas de venda de água, como parte do processo de transição da nova medida. Enquanto isso, parte da população que apoia o poder da iniciativa privada na gestão da água no estado não se conscientizou sobre a ameaça dos contínuos ciclos de crise hídrica e mudanças climáticas. Em síntese, a água ainda está pingando em suas torneiras…
Renata Barbosa é cientista política, graduada pela Hunter College, em NY. Mestre em Gestão de Desenvolvimento, formada pela The London School of Economics and Political Science (LSE), em Londres. Cursou Estudos sobre a Economia Latinoamericana na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), em Santiago do Chile.