Qual é a função dos bandeirinhas após o surgimento do VAR?
Proposta de solucionar todos os problemas humanos com a tecnologia é apenas ficção científica. Veja no Novo artigo do especial Copa: futebol e política
Correm, sem parar, dois profissionais. Com camisas de cores chamativas e bandeiras igualmente florescentes à mão, não abandonam uma faixa estreita durante quase cinquenta minutos – às vezes por mais tempo. Depois de breve intervalo, voltam para suas marcas e continuam a balançar o adorno ao vento até que venha, enfim, o último apito. Suados, voltam para casa quase humilhados, depois de olhares de multidões. São, aparentemente, imprestáveis.
Parece piada, gincana de televisão, a rotina dos assistentes de arbitragem de futebol – os bandeirinhas. O circuito excêntrico termina em alguns casos sem que nem ao menos um de seus gestos interfira no decorrer do jogo para o qual foram escalados. O trabalho assume contornos absurdos quando a audiência não está restrita a disputas regionais, entre clubes. Em Mundiais, bilhões de espectadores se deparam com essa completa falta de sentido.
Desde a edição de 2018 da Copa do Mundo, na Rússia, uma cabine de arbitragem, amparada por recursos audiovisuais, auxilia a tomada de decisão em campo. É o Video Assistant Referee (VAR). Os juízes passaram a contar com ajuda externa para evitar erros, que podem custar, no limite, o troféu para os times prejudicados. A ampla circulação dos registros audiovisuais, com os computadores e os smartphones, fizeram com que os equívocos fossem mais perceptíveis.
Foi assim que surgiu a necessidade de colocar em prática um protocolo de checagem. Os erros cruciais, com mais frequência, são os que derivam de pênaltis ou impedimentos marcados sem a devida precisão e, assim, influenciam no placar. Antes do VAR, os bandeirinhas definiam quando o ataque estava em posição irregular e ajudavam a sinalizar faltas cometidas dentro da área. Agora dão, no máximo, dicas, palpites: com a necessidade de utilizar a tecnologia no futebol, sua função foi esvaziada.
Todos os gols são reexaminados pelo VAR. Os impedimentos também passam pela análise da cabine, que revê as imagens disponíveis e orienta as decisões em campo. Em alguns casos, o juiz é convocado para assistir novamente ao lance, a partir de outras perspectivas. Os demais membros debatem qual é o melhor desenlace. Os bandeirinhas aguardam, já que cabe à dupla de assistentes assinalar suas impressões momentâneas, sem a responsabilidade pelo veredito.
O tempo gasto para o anúncio da decisão; a frustração com a anulação de gols; e a interrupção das sequências que, tradicionalmente, formavam a relação da modalidade com os seus espectadores gerariam naturalmente ressalvas. A falta de padrões internacionais, em um cenário cada vez mais globalizado, não colabora para a aceitação do VAR. Os desvios, entretanto, são mais frequentes do que o esperado e se tornaram o principal desafio.
Isso, talvez, tenha relação com o caráter fortemente interpretativo do futebol – elemento que não costuma ser levado em consideração para avaliar os motivos que o levam a tamanha popularidade. A dimensão humana da modalidade e das decisões que, em última análise, determinam derrotados e vitoriosos é crucial para o esporte. Essa é uma das explicações para que o uso de tecnologia tenha encontrado tanta resistência.
Outras modalidades, a exemplo do futebol americano e do tênis, convivem com recursos digitais sem maiores impasses há mais tempo. No entanto, o ímpeto para a criação do VAR é um dos ecos tardios da euforia com a tecnologia na virada para o novo milênio. Essa fantasia se deveu ao otimismo com o aumento na circulação de informação e da precisão dos equipamentos recém-descobertos. As consequências sociais dessa ingenuidade são incalculáveis.
A crença nas redes sociais como espaço livre para a imaginação política é a expressão mais evidente dessa estranha excitação. A década de 2010 foi iniciada com exemplares dramáticos da ideia. Occupy Wall Street, Primavera Árabe e até os atos de junho de 2013 no Brasil simbolizam a fragilidade dessas experiências, que invadiram a cena pública. Após seu desfecho abrupto, reações de ódio emergiram em cada ponto do planeta, com suas especificidades.
Todos esses movimentos tinham relação com a crise econômica internacional, desencadeada nos Estados Unidos. As manifestações convocadas pelas redes sociais não demonstravam com firmeza de que forma a desigualdade poderia ser combatida, para evitar episódios semelhantes no futuro. A inocência ignorava, inclusive, que as plataformas nas quais as chamadas eram divulgadas tinham seus proprietários e, portanto, seus interesses. Os dilemas diziam e dizem respeito, acima de tudo, à gente.
Seria uma inconsequência atribuir a deriva conservadora que se consolidou no final da mesma década a esses movimentos, na maioria das vezes muito bem-intencionados. É inegável que os anos 2020 foram iniciados sob um autoritarismo que frequentemente faz uso dos dispositivos digitais, para intensificar desigualdades e recrudescer a violência política. A tecnologia tem coordenação humana, mesmo quando seus desdobramentos atingem imensos contingentes populacionais.
Na campanha no Catar, a seleção brasileira teve seu primeiro gol anulado depois da checagem por vídeo: Vinicius Jr., contra a equipe suíça, ainda na fase de grupos, viu sua comemoração se tornar inócua. Para o Mundial do Oriente Médio, foram anunciadas inovações como a marcação semiautomática de impedimento, que considera o posicionamento dos jogadores até a casa dos milímetros. As medidas não evitaram controvérsias.
São as pessoas que compõem o corpo de árbitros, de vídeo ou não, que distinguem com a devida margem interpretativa quando há ou não irregularidades nas jogadas. Isso incluiu os abandonados bandeirinhas. A inserção de dispositivos digitais é bem-vinda quando consegue oferecer mais elementos para essa análise humana – os executivos de federações precisam levar isso em conta, abandonar o salvacionismo. Atraentes softwares conseguem resolver as tramas mais complexas em filmes e livros: talvez, apenas por lá.
O futebol escancara que a proposta de solucionar todos os problemas humanos com a tecnologia é ficção científica. As novas práticas incentivam, em reações extremas, a revolta: o uruguaio Edinson Cavani derrubou o aparelho do VAR depois que a sua equipe foi desclassificada do torneio. O veterano atacante pode ter se despedido de suas participações em Mundiais com um gesto desesperado pelo aprimoramento do protocolo. Enquanto isso não acontece, os bandeirinhas aguardam no limite do gramado, sem serventia.
Helcio Herbert Neto, jornalista e filósofo, é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF. Pesquisador do campo da cultura popular, é autor do livro Conte comigo: Flamengo e democracia, lançado em 2022.