Quanto maior a mentira…
A Faixa de Gaza é o território mais densamente povoado do mundo: 1,5 milhão de pessoas em 370 km2. Achar que as bombas separariam o joio do trigo é uma piada mórbida. Dois terços das vítimas da ofensiva israelense não eram combatentes e um terço tinha menos de 18 anos
Sob muitos pontos de vista, a ofensiva contra Gaza lembra a Guerra do Líbano de 2006, da qual os dirigentes israelenses visivelmente tiraram algumas lições. Não em relação à aplicação do direito internacional, que os obrigaria a manter a paz com os vizinhos. Mas sim sobre os erros do passado, tanto no âmbito militar quanto no da comunicação.
Dessa vez, alguns pontos do país foram rigorosamente isolados e o acesso à Faixa de Gaza, completamente fechado, poupando os telespectadores das imagens de palestinos martirizados e, ao mesmo tempo, intensificando a propaganda israelense para todo o mundo.
“Uma nova Direção de Informação foi criada para influenciar as mídias, com certo sucesso”, revela o semanário britânico The Observer1. “Eu nunca tinha visto o Ministério das Relações Exteriores, o Ministério da Defesa, o gabinete do primeiro-ministro, a polícia e o exército trabalharem com tanta coordenação e eficácia”, declarou o ex-embaixador das Nações Unidas Dan Gillerman. Aqui estão algumas das expressões mais utilizadas nesse conflito, que é também de palavras:
• Autodefesa. Israel argumenta que nenhum Estado deixaria sua população viver sob o terror de foguetes estrangeiros sem fazer nada a respeito. Indiscutivelmente, qualquer governo, confrontado a uma situação como essa, reagiria. Mas como? Desencadeando uma guerra muito mais mortal ou negociando para pôr fim aos combates? Há 60 anos Tel-Aviv entra em conflito afirmando “não ter escolha” – em hebraico, “ein brera”. Porém, mais do que nunca, trata-se de uma falsa verdade: os palestinos reconheceram seu vizinho e ocupante em 1988 e desde 2002, o mundo árabe lhe estendeu a mão, oferecendo a Israel uma normalização completa em troca de sua retirada dos territórios ocupados. Sem esquecer que, se os israelenses têm direito à autodefesa, os palestinos também o têm.
• Ruptura. Mas, repetiram os porta-vozes de Tel-Aviv, foi o Hamas quem rompeu a trégua – esquecendo-se que a “Operação Chumbo Grosso”, segundo declaração de Ehud Barak, já estava sendo preparada há seis meses. Todos concordam que até o fim de outubro os combatentes islamistas de fato suspenderam o fogo – mesmo o Ministério das Relações Exteriores de Israel reconhece isso em sua página na internet. Os lançamentos, no entanto, recomeçaram em novembro. E por um motivo, frequentemente “omitido”: o exército israelense conduziu uma operação, em 4 de novembro de 2008, que custou a vida de seis combatentes do Hamas. Este, por sua vez, decidiu retrucar. Outro ponto raramente evocado: o cessar-fogo deveria ocorrer junto com o fim do bloqueio da Faixa de Gaza e a abertura de suas fronteiras, algo que Israel jamais aceitou. Pior: o embargo tornou-se quase total nos últimos meses, ao ponto de, mesmo antes da ofensiva, 80% da população já depender diretamente da ajuda alimentar da ONU. Com a ofensiva israelense, até a água, o combustível, a eletricidade e outros suprimentos básicos tornaram-se raros.
• Bloqueio. Na verdade, é preciso remontar a janeiro de 2006 para compreender melhor a situação. Nesse período, as eleições legislativas, realizadas a pedido do Quarteto para o Oriente Médio (Estados Unidos, União Europeia, ONU e Rússia) e controladas por mais de 900 observadores, deram a vitória ao Hamas. A lógica mandava Tel-Aviv assumir o fato e considerar o novo primeiro-ministro eleito como um interlocutor. Mas Israel não apenas boicotou o governo palestino, como também conseguiu que os Estados Unidos e a União Europeia fizessem o mesmo, invocando a recusa do Hamas em reconhecer sua existência. Essa postura se manteve quando o governo de união nacional Hamas-Fatah, formado em março de 2007, adotou como programa a criação de um Estado palestino com fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias, de 19672.
• Desproporção. Na página na internet do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Ben Dror Yemini escreveu: “Alguns dos piores detratores de Israel afirmam que para cada morto israelense conta-se uma centena de palestinos assassinados. Costuma-se dizer que uma meia-verdade é pior que uma mentira. Mas nesse caso não se trata nem mesmo de uma meia-verdade: é uma fraude. Realmente, meses e anos de tiros de foguetes sobre uma população civil não é uma questão de discriminar as perdas.” Ele poderia ao menos assumir os números: em três anos, da retirada de Israel da Faixa de Gaza ao início dessa guerra, os Qassam assassinaram 11 israelenses, enquanto o exército israelense fez 1.700 mortos, somados às 1.200 vítimas da “Operação Chumbo Grosso”. Como escreveu o historiador israelense Avi Shlaim, “a injunção bíblica olho por olho já é bastante selvagem. Mas a ofensiva louca de Israel contra Gaza parece obedecer à lógica um olho por um cílio3.”
• Civis. Consciente da emoção suscitada por esses horrores, a porta-voz da embaixada de Israel na França Nina Ben Ami garantiu: “O Hamas visa os civis, nós fazemos tudo para poupá-los4.” O argumento parece surrealista. A Faixa de Gaza constitui o território mais densamente povoado do mundo: 1,5 milhão de pessoas em 370 km2. É preciso não ter jamais colocado os pés lá para imaginar que os combatentes poderiam estar em outro lugar que não entre os civis. E achar que as bombas separariam o joio do trigo é uma piada mórbida: dois terços das vítimas da ofensiva israelense não são combatentes e um terço tem menos de 18 anos. Não por acaso, aviões e tanques miraram lugares públicos e habitações. “Mas nós lançamos folhetos para anunciar os bombardeios e pedir que os habitantes fujam”, pleiteia Ben Ami. Para onde? Ninguém pode deixar o território, nem por terra, nem por mar. Aliás, se Israel queria realmente proteger essa população presa numa arapuca, no mínimo poderia facilitar o trabalho da Cruz Vermelha5. Pior ainda: não teria recorrido a bombas de fósforo6.
• Ódio. A ministra israelense das Relações Exteriores Tzipi Livni diz se comover com o crescimento do “ódio contra Israel”. Mas quem o semeou? É realmente surpreendente que o espetáculo dos corpos destroçados de mulheres, crianças e idosos tenha provocado a cólera contra os dirigentes israelenses? Uri Avnery, o mais antigo de todos os pacifistas israelenses, faz uma avaliação precisa: “O que ficará marcado a ferro em brasa na consciência do mundo é a imagem de Israel, monstro sanguinolento, pronto a cometer a qualquer momento crimes de guerra e incapaz de obedecer a todo limite moral. Haverá consequências graves para nosso futuro a longo prazo, nossa imagem no mundo, nossas chances de obter a paz e a calma. Esta guerra é, no
final das contas, também um crime contra os israelenses, contra o Estado de Israel7.”
• Antissemitismo. Os eventos em Gaza serviram de pretexto para certos atos antissemitas. Além de violências graves efetivamente realizadas contra sinagogas ou pessoas identificadas como judias, registraram-se também insultos e pichações, igualmente inaceitáveis. A experiência da Segunda Intifada deveria incitar as mídias à vigilância e à prudência: o impulso de violência contra judeus nos anos 2001, 2002 e 2003, atribuído equivocadamente aos jovens provenientes da imigração, logo foi acompanhado de uma onda antiárabe e antimuçulmana. Depois, ambos refluíram sob o efeito das medidas tomadas pelas autoridades e também graças à mobilização antirracista. Contrariamente à ideia pré-concebida, as manifestações de solidariedade que se inscrevem na busca de uma paz justa não incitam ninguém ao ódio racial e permitem a todos exprimir uma emoção que, caso contrário, poderia levar este ou aquele a ações irresponsáveis.
• Paz. É em seu nome que Israel diz agir: infligindo golpes severos ao Hamas, a paz com os “moderados” seria mais fácil. Essa análise não é nada convincente. Ainda que a “Operação Chumbo Grosso” enfraqueça militarmente o movimento islamista, ela o reforça politicamente, na Palestina e em todo o entorno. Como se deu com o Hezbollah em 2006, a resistência do Hamas o alçará sem dúvida ao nível de herói do mundo árabe/muçulmano. Além disso, se Ehud Olmert e seus ministros quisessem sinceramente negociar com a Autoridade Palestina, eles não teriam mantido as promessas feitas em Annapolis, em novembro de 2007? Até onde sei os checkpoints não foram removidos, nem a colonização congelada, nem as execuções suspensas…
Um Hamas fortalecido, uma Autoridade Palestina desacreditada: esse resultado da guerra de Gaza representa sem dúvida o objetivo das estratégias israelenses. A fim de rechaçar, uma vez mais, o nascimento do Estado palestino, ou até de torná-lo definitivamente impossível.
*Dominique Vidal é especialista em Oriente Médio e membro sênior da equipe editorial de Le Monde Diplomatique (França).