Que país é esse?
Há uma ruptura explícita dos tênues laços de solidariedade social-coletiva, ainda existentes na sociedade, com a instituição de uma vacinação censitária pelo critério de renda e não de vulnerabilidade
Nas favelas, no Senado
Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
(Que país é esse? Renato Russo)
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (Constituição Federal)
É o Brasil: cujo governo e o seu presidente boicotam, sistematicamente, todas as recomendações da ciência e da OMS para combater o vírus que propaga a Covid-19; minimizando a doença, se opondo ao uso de máscara, estimulando aglomeração, desqualificando o isolamento social e dificultando-o ao não dar condições materiais à maior parte da população para ficar em casa; recomendando remédios “milagrosos” sem amparo na ciência, negando a importância da vacina e fazendo “corpo mole” para a sua aquisição. Consequência: uma tragédia sanitária e a transformação do Brasil em ameaça internacional.
É o Brasil: cuja Câmara de Deputados, no dia em que morreram mais de 4 mil pessoas de Covid, aprovou a privatização e mercantilização da vacina, permitindo que empresas privadas (leia-se o grande capital) comprem os imunizantes, o que origina filas paralelas à do Sistema Único de Saúde (SUS), definida pelo Programa Nacional de Vacinação do Ministério da Saúde. No momento em que há uma disputa entre os Estados nacionais por mais doses das diversas vacinas existentes, em razão da incapacidade das principais empresas farmacêuticas em atender a todos, essa decisão atende somente aos interesses das grandes empresas. Portanto, o argumento de que a medida não concorrerá com a vacinação pública não “cola”. Além disso, na história brasileira de vacinação, o SUS nunca precisou de empresas privadas para realizar a tarefa de saúde pública que lhe cabe. Consequência: Há uma ruptura explícita dos tênues laços de solidariedade social-coletiva, ainda existentes na sociedade, com a instituição de uma vacinação censitária pelo critério de renda e não de vulnerabilidade; agressão à Constituição e legalização da desigualdade social existente no país, agora no processo de vacinação; a potencial constituição de um mercado clandestino criminoso (paralelo ao dos fabricantes) de venda e compra de vacinas; e possibilidade do governo se livrar, ou reduzir, a pressão para a aquisição.
É o Brasil: cujos deputados e deputadas, em bom número eleitos pela onda bolsonarista de 2018, em uma articulação da escória empresarial e o “Centrão”, abrem as portas à privatização da saúde pública, se apoiando na possibilidade de dividendos futuros. A obrigação das empresas de doar parte (50%) das vacinas compradas ao Estado, que constava de regra aprovada anteriormente, foi flexibilizada para viabilizar financeiramente a participação das clínicas privadas que aplicam vacinas. E que ninguém duvide: caso haja eventuais doações ao SUS, esses mesmos parlamentares aprovarão a possibilidade de incluir essas doações na condição de isenção fiscal, ou seja, doar com o dinheiro público. Além disso, foi retirada a regra de que as compras pelas empresas só pudessem ser iniciadas após a vacinação do grupo prioritário de pessoas acima de 60 anos. E pasmem, as vacinas importadas não precisarão ter registro ou autorização (avaliação e fiscalização da Anvisa). Consequência: Mais uma vez, há uma desmoralização do Parlamento e da política institucional; a constituição de um tráfico internacional de vacinas (já existe oferta de venda de vacina pelo WhatsApp); e a privatização de um bem público, reforçando o “negócio” da saúde no país.
É o Brasil: cujos empresários de transportes em Belo Horizonte, criminosamente, organizaram uma vacinação particular clandestina, tendo por alvo seus familiares e amigos, furando a fila do SUS. A descoberta do crime e a investigação em curso está indicando, com grande probabilidade, que as vacinas aplicadas eram falsas (soro fisiológico); o que não anula a canalhice. Não houve qualquer reação por parte das empresas mais importantes sediadas no país, que condenasse, publicamente, essa iniciativa. Consequência: Uma ruptura de qualquer laço de solidariedade e responsabilidade coletiva, com o reconhecimento prático, pelas classes dominantes, do seu direito à saúde acima dos demais cidadãos, amparado no seu poder econômico e político.
É o Brasil: cujas Forças Armadas estão sendo cúmplices (por omissão ou participação direta) do genocídio levado a cabo pelo governo Bolsonaro, com ações e políticas (ou ausência delas) que agravam a tragédia sanitária que acomete o país. Como se isso não bastasse, não disponibilizam leitos ociosos (até 85%) em seus hospitais para o atendimento de pessoas (civis) que estejam infectadas pelo vírus; hospitais esses que poderiam, e deveriam, fazer convênios com o SUS nessa fase mais aguda da pandemia. Segundo auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), essas unidades consumiram, pelo menos, R$ 2 bilhões do Orçamento da União, em 2020. Consequência: A transformação das Forças Armadas do Estado em instrumento político de governo, além de sua desmoralização junto à população, constituindo uma “casta”, apartada dos demais brasileiros.
É o Brasil: cujo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) liberou em decisão monocrática, posteriormente anulada pelo plenário da Instituição, na fase mais crítica da difusão do vírus e a pedido da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), a realização de encontros religiosos de forma presencial, com o argumento de que a proibição dessas reuniões seria uma extrapolação de poder dos estados e municípios, que fere a liberdade religiosa. Na decisão, o magistrado defendeu que o momento da pandemia pede cautela, mas reconheceu a “essencialidade” das atividades religiosas para dar “acolhimento e conforto espiritual”. Dias sombrios, em que “líderes” religiosos se vacinam fora do país e, ao mesmo tempo, estimulam e convocam seus fiéis a se aglomerarem e assumirem o risco de se infectarem e morrerem. Consequência: A maior disseminação do vírus, colapso hospitalar e funerário e politização da pandemia por meio da instrumentalização da religião contra a saúde e o bem-estar coletivos.

É o Brasil: cujas autoridades responsáveis por executar as medidas contra a pandemia não conseguem aplicá-las conforme a recomendação de todos os epidemiologistas e cientistas presentes no país. Essa dificuldade occore em virtude da ausência da participação e apoio do governo federal e de pressões de empresários de setores econômicos, principalmente das áreas do comércio e dos serviços, mais atingidos pelas medidas restritivas. Daí o absurdo de se abrir, no auge da pandemia, escolas, academias, igrejas etc. Consequência: Mais uma vez, a politização da pandemia, a desmoralização do isolamento social como medida imprescindível para conter o espalhamento do vírus, a confusão de informações à população e a reiterada ameaça de colapso (ou colapso de fato) hospitalar e funerário.
É o Brasil: cuja parte minoritária da população, mas significativa em termos absolutos, desconhece solenemente a existência e gravidade da pandemia, praticando o negacionismo propagado por Bolsonaro e o seu governo; um verdadeiro vírus social aliado do vírus biológico na ampliação da tragédia sanitária que atinge o país. Aglomerações de todo tipo: festas, baladas, praias, cassinos. Consequência: mais uma vez, a confusão e divisão da sociedade, a difusão da doença e o descrédito da autoridade pública.
É o Brasil: cuja parcela mais consciente e organizada do povo, juntamente com as instituições da sociedade civil e do Estado de direito, apesar de se oporem ao desmonte social, político e econômico promovido pelo neofascismo, e moderarem as suas consequências (impondo recuos e derrotas parciais ao movimento neofascista e provocando sucessivas crises do governo Bolsonaro, como a aprovação da “CPI da Covid”), não conseguiram, até aqui, dar um basta ao governo Bolsonaro e a sua necropolítica genocida. Consequência: Bolsonaro e o neofascismo preparam, sistematicamente, o autogolpe de Estado, ao mesmo tempo em que promovem o desmonte de suas estruturas e suas instituições.
Em suma, é o Brasil, e a sociedade brasileira naquilo que ela tem de pior e mais perverso: a desigualdade e os privilégios escancarados, o caráter predatório de sua classe dominante (em especial a grande burguesia), o perfil grosseiro e estúpido de parte de sua classe média, a ignorância e a manipulação de seus segmentos sociais mais empobrecidos e subordinados por meio de vários tipos de expediente (inclusive com a instrumentalização da religião), o individualismo e a intolerância. O Brasil vive hoje uma anomia social, é uma sociedade desmontada e destruída – na economia, nas relações sociais, na política, na cultura, na educação e na saúde – pelo governo Bolsonaro e o neofascismo. É urgente pará-los. A CPI da Covid pode ser um dos caminhos para isso.
Luiz Filgueiras é professor titular da Faculdade de Economia da UFBA e pesquisador na área de Economia Política, Desenvolvimento e Economia Brasileira.