Retratos de missionários midiáticos
Por que Juan Guaidó é o verdadeiro presidente da Venezuela? Com que rapidez o chefe de Estado brasileiro deve cortar as aposentadorias? Como os peronistas vão piorar a crise argentina? Do Le Monde ao Financial Times, um punhado de “especialistas” latino-americanos interpretam as notícias políticas da região em função de suas obsessões: livre-comércio e anticomunismo
Em 1969, um jovem funcionário público norte-americano perguntou a Richard Nixon qual seria a região do mundo a que ele deveria se dedicar para fazer uma carreira de sucesso: “Especialmente não a América Latina, da qual todos riem”,1 respondeu o presidente. Um ano depois, Nixon mudou de ideia: a eleição de Salvador Allende foi o suficiente para preocupá-lo e fazer que declarasse, em 6 de novembro: “Não devemos deixar a América Latina pensar que pode tomar esse caminho sem sofrer as consequências”. Washington, desde então, passou a cuidar da relação com as juntas locais, consideradas um baluarte contra a ameaça comunista. O jovem ambicioso, um certo Donald Rumsfeld, não seguiu o conselho de seu mentor. Tornou-se secretário de Defesa de George W. Bush entre 2001 e 2006 e empreendeu diversas campanhas norte-americanas contra os governos de esquerda que chegaram ao poder na região.
O conselho de Nixon, portanto, não foi de grande valia. No entanto, parece ter repercutido entre as equipes editoriais da grande mídia. Do Financial Times britânico ao New York Times, passando pelo Le Monde, nenhuma região do mundo sofre o desprezo editorial reservado à América Latina. No espaço de um ano, entre 10 de março de 2019 e 9 de março de 2020, o New York Times, por exemplo, publicou duas vezes menos artigos sobre a América Latina que sobre o Oriente Médio e três vezes menos que sobre a África.
Quando a região é abordada, na maioria das vezes figura como espelho do aumento das obsessões editoriais ocidentais. Um exemplo? Fala-se tanto sobre a Venezuela que até as críticas à política de austeridade feitas por Jean-Luc Mélenchon, na França, ou Jeremy Corbyn, no Reino Unido, parecem convencer. A América Latina só parece interessante quando permite que algumas certezas sejam confirmadas: o mercado liberta; a esquerda fracassa. Por essa razão, talvez, ela está sob os cuidados de jornalistas um pouco particulares.
John Paul Rathbone, Financial Times
Responsável pelas páginas sobre a América Latina no Financial Times até maio de 2019 e ex-funcionário do Banco Mundial, John Paul Rathbone gosta de levar seus leitores pela contracorrente. Enquanto o mundo está preocupado com a eleição de um ex-militar de extrema direita, Jair Bolsonaro, à frente do Brasil, o jornalista sugeriu que estamos olhando na direção errada. O “terremoto real”, “semelhante ao Brexit e [à] eleição de Trump”, teria ocorrido na verdade mais ao norte, em julho de 2018, com a eleição de Andrés Manuel López Obrador (conhecido também como AMLO), o presidente social-democrata do México (31 maio 2019). Salientar que Bolsonaro mostra nostalgia pela ditadura que governou o Brasil de 1964 a 1984 não deveria levar o leitor a esquecer que AMLO representa a real “ameaça à democracia liberal” na América Latina. Se o mexicano exibe uma aparência inofensiva, seus discursos públicos trazem “traços autocráticos característicos de muitos populistas latino-americanos”: “uma obsessão pela história”, uma tendência a invocar “a vontade popular” e o “ódio ao neoliberalismo”. Para Rathbone, pois, o mundo estaria dividido em duas categorias: aqueles que estão convencidos das virtudes do mercado e aqueles que ameaçam a democracia.
Assim, o célebre jornalista do Financial Times comemorou em 2015 a chegada do empresário Mauricio Macri à presidência da Argentina. Quando a tempestade financeira começou a abalar Buenos Aires, ele tentou tranquilizar seus leitores: “Em dois anos e meio, o governo avançou aos trancos e barrancos para restaurar a confiança do mercado” (12-13 maio 2018). Rathbone acredita que qualquer dificuldade do neoliberalismo pode ser resolvida com uma dose adicional de neoliberalismo. Desse modo, existia “uma explicação simples” para as dificuldades de Macri: “Ele queria evitar repetir as terapias de choque do passado”. Em outras palavras, ele foi muito mole. Três meses depois, Rathbone lutava para esconder sua amargura. Apesar dos esforços de Buenos Aires, a crise estava consumada. “Um governo favorável ao setor privado, com um gabinete tecnocrático que líderes mundiais desejam apoiar, e a Argentina continua sofrendo graves crises de pânico” (31 ago. 2018). “Mas que erro o presidente cometeu?”, ele pergunta, antes de completar: “uma resposta possível: déficit de comunicação”.
Filho de uma cubana residente em Londres, Rathbone reivindica o ressentimento de sua família pela Revolução, porque a loja de seu avô foi nacionalizada. “Durante muitos anos, minha família fez o famoso brinde dos exilados, imaginando implicitamente a morte de Fidel Castro: o próximo Natal será em Havana!” (2 dez. 2016).
Carlos Alberto Montaner, Miami Herald e Nuevo Herald
O jornalista cubano Carlos Alberto Montaner se especializou em denunciar o “populismo” nas colunas do Miami Herald e do Nuevo Herald, dois jornais diários da Flórida ferozmente anticastristas. Antes de “colocar a caneta na ferida”, Montaner teve uma primeira vida dentro da organização paramilitar contrarrevolucionária Movimiento de Recuperación Revolucionaria (MRR). Seu líder, Orlando Bosch, esteve envolvido na explosão do voo 455 da Cubana, em 1976, que matou 73 pessoas, bem como em uma série de ataques contra embaixadas e figuras políticas cubanas próximas a Salvador Allende.2 Preocupado com as autoridades de Havana, Montaner refugiou-se em Miami em 1961. Obteve o status de exilado político e depois trocou a dinamite por uma máquina de escrever.
Em 1996, ele coassinou o Manual do perfeito idiota latino-americano.3 Os autores dedicam ironicamente o trabalho aos “populistas” que teriam contribuído para arruinar o subcontinente no século XX: Juan Domingo Perón (presidente argentino de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974), Salvador Allende (presidente do Chile de 1970 até sua derrubada pelo general Augusto Pinochet, em 1973), Fidel Castro (líder da Revolução Cubana) e ainda o escritor colombiano Gabriel García Márquez. Ao darem as costas ao mercado, esses líderes políticos e intelectuais teriam condenado a região à deriva econômica, não deixando outra opção senão a intervenção de forças militares: “Esse grande carnaval de ilusões representadas pelo Estado social terminou em falência econômica, inflação descontrolada, pobreza e, em resposta, ditaduras militares sangrentas”.4 Para os autores, o primeiro-ministro francês da época também flertava perigosamente com o socialismo: “Até [Alain] Juppe […] não merece o rótulo de liberal”.
Em 2007, os mesmos autores publicaram O retorno do idiota. Os alvos dessa vez? Hugo Chávez (presidente da Venezuela de 1999 a 2013), Cristina Kirchner (presidente da Argentina de 2007 a 2015), Evo Morales e Rafael Correa (respectivamente, presidentes da Bolívia entre 2006 e 2019 e do Equador entre 2007 e 2017). Entrou na lista até o diretor de um periódico francês não tão diplomático como este, entre 1990 e 2008: “No topo das paradas” de idiotice ideológica, “o inefável Ignacio Ramonet do Le Monde Diplomatique, essa plataforma inigualável da espécie no Velho Continente”. O erro da corrente de pensamento incorporada na publicação que o leitor tem em mãos? Proferir “calúnias” contra o liberalismo econômico, “ditadas pelo preconceito econômico”, ainda que fossem “meticulosamente refutadas pela realidade”. Para se convencer das virtudes da ortodoxia econômica, seria suficiente “observar como países como Espanha ou Irlanda […] chegaram aonde estão”. Na época, os dois países eram apresentados regularmente como modelos de “sucesso” neoliberal. A crise dos subprimes eclodiu alguns meses após a publicação do livro, mergulhando Madri e Dublin em um profundo marasmo.
Em 2006, um despacho da agência de notícias espanhola EFE revelou que Montaner havia recebido dinheiro do governo dos Estados Unidos para disseminar propaganda anticastrista. A revelação levou à demissão do diretor do Miami Herald,5 mas não à de Montaner. Recentemente, o jornalista explicou que AMLO – cujas boas relações com os empregadores mexicanos irritam parte da esquerda – “pretende estabelecer o comunismo” (Expansión, 5 set. 2019) ao sul do Rio Bravo; que a Venezuela havia se transformado em uma “narcoditadura”, “aliada a terroristas islâmicos” (El Nuevo Herald, 13 ago. 2019); e que os manifestantes chilenos mobilizados desde outubro de 2019 eram “inimigos da lei e da ordem”.6
Paulo Paranaguá, Le Monde
Na grande imprensa, todos os caminhos levam às mesmas certezas: seja na luta paramilitar anticomunista, como Montaner, seja na guerrilha, como o jornalista brasileiro Paulo Paranaguá, do Le Monde. Responsável pela América Latina na equipe editorial do jornal diário “referência” da França até 2019, Paranaguá militou, na década de 1970, em uma organização argentina que defendia a luta armada, o Partido Revolucionário dos Trabalhadores – Fração Vermelha (PRT-FR), no qual era conhecido pelo pseudônimo “comandante Saúl”.7 Posicionados cada um de um lado da barricada ideológica erguida durante a Guerra Fria, Montaner e Paranaguá agora se entendem muito melhor, especialmente em relação à Venezuela.
Em abril de 2014, Paranaguá atribuiu oito mortes à repressão das forças da ordem após ataques da oposição nesse mesmo mês e ano.8 Mais recentemente, destacou-se por uma leitura original do espectro político venezuelano. Em um artigo dedicado à visita de Julio Borges, Antonio Ledezma e Carlos Vecchio à França, em 3 de abril de 2018, escreveu: “Juntos, eles resumem as principais sensibilidades da oposição, da centro-esquerda à centro-direita”. Os três homens, no entanto, pertencem aos dois partidos mais radicais da direita venezuelana (Primero Justicia e Voluntad Popular), em um contexto de extrema divisão da oposição no país.9 Aplicada à França, a manobra sugeriria que Marine Le Pen e Christian Jacob “resumem” a oposição ao presidente Emmanuel Macron.
Mary Anastasia O’Grady, Wall Street Journal
Em sua coluna semanal no Wall Street Journal, em 27 de outubro de 2019, Mary Anastasia O’Grady soou o alarme: “Os jovens foram às ruas para promover a luta de classes” no Chile. “Invadir ruas, queimar carros, roubar, bloquear estradas e destruir transportes públicos” seriam as “especialidades da esquerda”, segundo a jornalista. Sem dúvida, Cuba e Venezuela estariam envolvidas. Para O’Grady, as manifestações não refletiam descontentamento popular, e sim a ação de um “grupo de socialistas de extrema esquerda criado por Fidel Castro”; em suma, “terroristas de esquerda”. Confrontado à tentativa desse grupo de “tomar Santiago”, o presidente chileno, Sebastián Piñera, teria sido “forçado a declarar estado de emergência e colocar o Exército na rua” para preservar “a propriedade e a vida privadas”. Em dezembro de 2019, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) estimou o custo da repressão ao movimento social chileno: 26 mortos e quase 2.800 feridos, incluindo 280 feridos nos olhos.10
Para O’Grady, a liberdade econômica vem em primeiro lugar. Deslizes homofóbicos ou misóginos do presidente brasileiro? São apenas “brigas irrelevantes com a imprensa” (25 ago. 2019) que mascaram o essencial: Jair Bolsonaro confiou sua política econômica a um apóstolo da Escola de Chicago, Paulo Guedes, ex-professor de Economia da Universidade do Chile apelidado de “guru do livre-mercado”. O’Grady celebra a “revolução do mercado no Brasil” (29 set. 2019), e ainda assim tacha o governo brasileiro de tímido. Desde sua nomeação, em janeiro de 2019, Guedes anunciou a privatização dos Correios, da empresa operadora do Porto de Santos (Codesp) e do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro). Mas O’Grady o convida a ir mais longe: e se ele privatizasse a Floresta Amazônica?
Os incêndios que devastaram a grande floresta em 2019 são explicados por ela pela “ausência de incentivos econômicos para proteger a floresta, já que ela não é objeto de nenhum título de propriedade privada” (8 set. 2019). A única dificuldade é que Guedes não é apenas neoliberal, mas também cético em relação à mudança climática.
Anne-Dominique Correa é jornalista; Renaud Lambert é jornalista do Le Monde Diplomatique.
1 Citado por Greg Grandin em Empire’s Workshop. Latin America, the United States and the Rise of New Imperialism [Oficina do Império. América Latina, Estados Unidos e a ascensão do novo imperialismo], Henry Holt, Nova York, 2006.
2 Ler Hernando Calvo Ospina, “L’équipe de choc de la CIA” [A equipe de choque da CIA], Le Monde Diplomatique, jan. 2009.
3 Álvaro Vargas Llosa, Plinio Apuleyo Mendoza e Carlos Alberto Montaner, Manual del perfecto idiota latinoamericano, Plaza & Janes, Madri, 1996.
4 Ibidem.
5 “Dimite el presidente del Miami Herald tras el polémico despido de dos redactores” [Presidente do jornal Miami Herald é demitido após despedir dois redatores], EFE, 3 out. 2006.
6 “Crisis en Chile: No es inteligente dormir con el enemigo” [Crise no Chile: não é inteligente dormir com o inimigo], El Libero, Santiago, 8 fev. 2020.
7 Como lembra o ex-editor-chefe do Le Monde Diplomatique, Maurice Lemoine, em uma carta ao mediador do Le Monde, datada de 19 de abril de 2014.
8 As opções editoriais de Paulo Paranaguá são objeto de análises regulares de Lemoine, entre elas “Venezuela: quand Le Monde fait siennes les manipulations du commandant Saúl” [Venezuela: quando o Le Monde adota as manipulações do comandante Saúl], Mémoire des Luttes, Paris, 21 abr. 2014.
9 Ler Julia Buxton, “La droite dure à la manœuvre” [A direita difícil de manobrar], Le Monde Diplomatique, mar. 2019.
10 Declaração à imprensa em 6 de dezembro de 2019.