Riscos e oportunidades
Para evitar efeitos mais devastadores da crise, os bancos centrais tomaram medidas de vulto, com trilhões de dólares de ajuda ao sistema financeiro. Mas o cassino continua! É preciso que os movimentos e as entidades pensem ações coletivas para denunciar esses esquemas, que não mudam na base as causas do colapso
Na atual crise financeira, a interpretação geral é a de que ela é estrutural e atinge o cerne do capitalismo neoliberal, mas é preciso muita cautela sobre suas respostas e efeitos.
Nesse campo avaliativo, o foco está em saber se esta crise pode ser revertida, a exemplo de 1929 (que durou dez anos) e de outros momentos, nos quais o capitalismo saiu revigorado, ou se existem outras perspectivas, outras orientações.
O que quero realçar é que crise pode ser entendida, complementarmente, como criação, busca de soluções, desafios a serem enfrentados na busca de novas veredas.
Na visão histórica, comentaristas e especialistas, principalmente nos campos econômico e político, já apontavam os riscos da configuração capitalista ancorada basicamente no capital financeiro, sua dominância sobre o capital industrial, a desregulamentação do Estado-nação e o desemprego estrutural.
Membros das agências internacionais, de governos e intelectuais têm sugerido a necessidade urgente de medidas reguladoras sobre o mercado financeiro. O G20 se direcionou nesse sentido. Será que elas virão e serão eficazes?
Para evitar efeitos mais devastadores e recuperar a confiança, os bancos centrais de quase todos os Estados tomaram medidas de vulto, com trilhões de dólares de ajuda ao sistema financeiro, ao crédito, aos bancos. Com aplausos de toda parte.
Mas o cassino continua! Com as quedas e altas nas Bolsas e as variações do dólar, especuladores já tiveram ganhos excepcionais. E nada se comenta dos “paraísos fiscais”, um componente básico nesse modelo financeiro.
Algo que vem causando pasmo é a ausência das grandes manifestações contra-hegemônicas (tais como as realizadas nas reuniões do G-8, de Davos, da OMC, em diversas cidades: Seattle, Washington, Gênova etc.).
Já afetados pelos efeitos da globalização em curso, que podem ser agravados com a recessão, os segmentos da sociedade civil (ONGs, movimentos sociais, igrejas, associações, centrais sindicais) não se fazem ouvir de modo consistente.
Amedrontados? Acuados? Sem saber que estratégia adotar? Em defesa de qual projeto de sociedade?
As manifestações globais contrárias às intervenções militares no Afeganistão e no Iraque e ao sistema capitalista neoliberal mobilizaram as sociedades civis de inúmeros países, impactaram a mídia e sensibilizaram a opinião pública. Com isso, forçaram as elites governantes e empresariais a reverem sua dinâmica de atuação, gerando os embriões de uma sociedade civil cosmopolita ou mundial.
Nesta conjuntura atual, é preciso que os movimentos e as entidades que organizaram e dinamizaram os referidos protestos tracem ações coletivas coordenadas para denunciar os esquemas em curso que não mudam na base as causas da crise.
Para além das resistências, as agendas devem necessariamente propor alternativas de fundo que indiquem modelos alternativos.
Faço algumas sugestões, que não constituem novidade.
1) Revisitar a proposta de James Tobin, de tributar as transações financeiras e de câmbio para punir a especulação. Se aprovada, uma questão é saber quem cobra e, se for criado um Fundo Social, como pretendido, quem controla.
2) Acompanhar os passos, na esfera internacional, daqueles que persistem em aprovar o Acordo Multilateral de Investimento (AMI), que vem sendo negociado desde 1995 na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Esse acordo foi projetado para potencializar o poder das empresas transnacionais e limitar a capacidade de controle dos governos nacionais sobre a movimentação de recursos financeiros pelo planeta.
3) Aglutinar todas as forças inovadoras – redes e fóruns – que denunciem a presente configuração, resistam a seus impactos e proponham sanar os desequilíbrios existentes e obter alguns avanços no controle público sobre o capital financeiro internacional. Uma oportunidade de ouro será o Fórum Social Mundial, que terá mais uma etapa no Brasil, em Belém do Pará, em janeiro próximo.
4) Oferecer análises feitas por universidades, se possível de forma articulada entre elas, voltadas diretamente à compreensão dessa crise e à sugestão de caminhos inovadores teóricos e práticos. Nesse sentido, é preciso que se incorporem nos currículos, para além de uma visão crítica dos paradigmas e modelos teóricos clássicos e contemporâneos, novas abordagens, tais como: complexidade, cosmogonia, teorias dissipativas, auto-organização, saber cuidar, conhecimento emancipatório, desenvolvimento sustentável.
5) Integrar a cultura erudita com a cultura popular, a cultura criativa e a cultura de massa. Disseminar as metodologias interdisciplinares, multidisciplinares e transdisciplinares. Ampliar o acesso ao ensino superior de contingentes crescentes da população.
6) Refundar a proposta da Unitrabalho, que articula universidades e centrais sindicais; nessa mesma direção, estimular a criação de uma UniONG.
7) Mobilizar manifestações coletivas de todos os setores sociais, no sentido de promover a denúncia e a conscientização dos acontecimentos, além de pressões sobre os governos, em todas as instâncias, para que as medidas sejam em favor de todas as classes e estratos sociais.
8) Prever e alocar os enormes recursos mobilizados pelos governos para enfrentar a crise na perspectiva de assegurar empregos, aperfeiçoar a divisão social do trabalho e ampliar o sistema de proteção social (previdência, saúde, assistência).
9) Exigir dos bancos uma difusão do balanço social, que os créditos sejam dirigidos aos objetivos expostos, que os lucros fantásticos se destinem a políticas sociais para as maiorias pobres e excluídas.
10) A grande mídia deve superar a espetacularização e trazer subsídios, ouvindo defensores de todas as correntes políticas, objetivando estabelecer uma opinião pública consciente e participante.
Realismo utópico
Para finalizar, vale enfatizar a estratégia do “realismo utópico”. Realismo, porque é imprescindível reconhecer que a situação é grave e que podem aumentar os indicadores de pobreza absoluta e relativa, de desigualdade social, de exclusão e marginalização, que são avassaladores. Utópico, na perspectiva do “inédito viável”, da utopia como antecipação, com base na descoberta dos embriões e dos sinais dos tempos, já em desenvolvimento pelas diversas regiões do globo. É necessário caminhar, sem ignorar que derrotas e vitórias acontecerão.
Uma perspectiva estimulante é a construção da dimensão efetivamente pública, que rompa com o esquema tradicional esta
tal-privado, concretizando:
a) a universalidade das políticas públicas e sociais;
b) a democratização do Estado e da sociedade civil;
c) o emprego de meios eficazes de controle social, da sociedade sobre o Estado, dos membros de cada grupo, associação, movimento, comunidade etc. sobre suas instituições e entidades;
d) a transparência e a visibilidade social das ações dos governos e das empresas;
e) a sustentabilidade com recursos que garantam a responsabilidade fiscal e social;
f) a difusão da cultura cívica, de modo que todos possam ser cidadãos plenos e ativos.
Na esfera político-institucional, além de consolidar a democracia representativa, o que vai exigir reformas políticas e rupturas com a corrupção institucionalizada, o fisiologismo, o autoritarismo e o patrimonialismo, e uma reforma profunda do sistema partidário, é válido incorporar os avanços originados pela democracia participativa.
Na esfera da democracia econômica, resgatar tudo de positivo que foi conquistado pelo Estado do Bem-Estar Social, principalmente os direitos adquiridos pelos trabalhadores.
Na democracia social, avaliar e aprofundar os mecanismos do orçamento participativo, dos conselhos gestores e das práticas de propriedade comunitária e autogestionária.
Na democracia cultural, avançar no multiculturalismo, no respeito ao diferente, na ênfase às culturas híbridas e às novas culturas urbanas. Na democracia como modo de vida, ampliar os direitos e os deveres da cidadania, lutando pelo objetivo permanente de resgatar o humano.
*Luiz Eduardo W. Wanderley é professor titular do departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP.