Rumo a uma agenda de participação cidadã no Chile?
Os movimentos sociais instalaram de maneira exitosa uma mudança na agenda, mas não conseguiram acumular força para si mesmos nem amadurecer suficientemente. Para isso, seria preciso a formulação de um projeto e de estratégia que permitissem ao movimento constituir força social e política capaz de cristalizar sua agendaMiguel Santibáñez
(Manifestantes deitam no chão em memória dos desaparecidos políticos da ditadura chilena: golpe completou 40 anos em 11 de setembro)
Há pouco mais de 23 anos, em 1990, Mike Davis escreveu o livro A cidade de quartzo, em que descrevia detalhadamente as armadilhas que deram origem à modernização neoliberal da cidade de Los Angeles. Era algo que já havia sido insinuado no cinema por Roman Polanski em 1974, em seu premiado filme Chinatown, narrado a partir de um obscuro caso de negócio imobiliário especulativo na cidade.
Naomi Klein, por outro lado, no capítulo 2 de seu livro A doutrina do choque, toma o exemplo do golpe de Estado no Chile como modelo do uso dessa doutrina para transformar as economias tanto chilena como latino-americanas nos anos 1970 e 1980. No caso chileno, ela nos relata que foi a destruição de qualquer centelha de oposição que permitiu impor as políticas impopulares associadas ao neoliberalismo. No Chile, não é apenas uma receita neoliberal que mudou a estrutura econômica; agora sabemos em detalhe que manipuladas privatizações fraudulentas deram origem a novos ricos e que uma Constituição-armadilha desenhou uma ordem autoritária para o Chile pós-ditatorial, unidos ao extermínio de toda a institucionalidade política e social construída durante décadas. Assim, foi destruída a aliança entre partidos políticos, governos progressistas e movimentos sociais. Uma sociedade civil materialmente existente dissolveu-se a partir de 1973 para que seus restos fossem se refugiar nos subterrâneos da resistência.
Nesse contexto, vale a pena observar com alguma atenção a construção social gerada no período anterior a 1973, quase como um espelho de contrastes e aprendizagens. Sem querer idealizar um longo e complexo período da história política chilena, foi nessa época que se originou algo que hoje chamaríamos de “participação social” e com o qual poderíamos na atualidade contrastar nossas práticas e projetos. Tratou-se de um longo transcurso histórico, no qual se estruturou um movimento popular – contribuindo para tal o tecido social popular que construiu uma “institucionalidade social”, como a Central Unitaria de Trabajadores de Chile, os estudantes universitários da Federación de Estudiantes de la Universidad de Chile e outras, e os secundários, como os da Federación de Estudiantes Secundarios de Santiago, o movimento de colonos, o movimento de camponeses, o social-cristianismo e suas comunidades de base e operárias, as juventudes políticas, as organizações territoriais e, por outro lado, os partidos políticos de esquerda (movimentos como o anarcossindicalismo no início do século XX), o movimento de mulheres, entre outros.
Uma ideia comum: levar a cabo um projeto político e social que havia sido definido no começo do século XX, a partir da eleição, em 1906, do comunista Luis Emilio Recabarren como deputado no Parlamento. Em outras palavras, buscava-se realizar a justiça social utilizando a institucionalidade formal. Uma agenda ia se construindo, alicerçada na inclusão dos setores populares nos chamados processos de modernização nacional; na diminuição das desigualdades, o que significava reduzir a distância entre ricos e pobres, e em sua articulação com um projeto de desenvolvimento nacional que significasse o fim das injustiças; na luta pela inclusão das maiorias no acesso a bens públicos, como a cidade, saúde, educação, moradia, trabalho, pensões, terra e água, organização social e participação nos assuntos da vida pública.
Desse modo, nos anos 1960 e, sobretudo, nos anos 1970, uma geração (institucionalizada em uma aliança política) tentou acelerar essas mudanças. Um exemplo disso foi a reforma agrária, que incluiu a sindicalização camponesa e a mudança da estrutura da propriedade da terra, de um sistema escravista e feudal em pleno século XX para um com camponeses, cooperativas e assentamentos. Outros exemplos foram a nacionalização do cobre, a Promoción Popular (Lei n. 16.880, que criava organizações de base capazes de enfrentar problemas e melhorar as condições de vida dos setores marginais) e a formulação de políticas públicas baseadas em direitos sociais.
A verdade é que no Chile existiu um profundo projeto de mudanças que, como dissemos, vinha sendo gestado muito antes dos governos de Eduardo Frei e Salvador Allende. E a “participação social” nesse país se definiu com atores em torno desse projeto – que nos anos 1960 e 1970 se chamaria Revolução em Liberdade e Unidade Popular –, estruturado em uma aliança entre partidos políticos, um movimento social e um governo nacional inclinado a essas mudanças. Esse projeto – sem dúvida alguma – tensionou até o limite o sistema capitalista no Chile.
A ruptura institucional provocada pelo golpe de Estado de 1973 – que agora completou quarenta anos – foi provavelmente a fratura histórica e social mais dramática desde a própria conquista, em 1542; e não poderíamos entender o Chile atual e o desenho de nossa atual democracia e organização econômica a não ser por essa origem obscura de nossa história recente.
A ditadura chegou para refundar o capitalismo no Chile e para isso precisava mudar toda a sociedade: a economia, a noção de democracia e seu projeto histórico. Para tal, utilizou o terror como ferramenta: não somente assassinou, torturou e exilou, como também destruiu o tecido social e as instituições, e impôs uma nova ordem, que trazia uma economia neoliberal produtora de maiores desigualdades. Sabemos que isso foi acompanhado por uma Constituição, a de 1980, que atava o futuro institucional.
O longo período de transição iniciado nos anos 1990, marcado pelo estabelecimento de uma negociação entre as elites políticas, econômicas e militares, gerou o suporte para manter o legado da ditadura de Pinochet. Uma nova coalizão, a Concertación, foi encarregada de administrar o modelo econômico e, até certo ponto, o ordenamento político-institucional herdado da ditadura, que, embora tenha produzido mudanças, muitas vezes aprofundou aquelas sequelas desenhadas com antecipação. Isso teve um custo muito alto. A nova ordem não precisava de cidadania (isso, lembremos, “correspondia à ordem antiga”) – esta era um incômodo, ou até mesmo um perigo. Tampouco precisava de crítica, de ONG ou imprensa independente. Essa foi a doutrina dos teóricos da pós-ditadura. O medo de que os movimentos desestabilizassem a “ordem” exigindo o pagamento da chamada “dívida social” justificou o abandono, a manipulação, o menosprezo e o ataque demolidor que o novo poder político desferiu contra o social.
Isso implicou a diluição quase completa de qualquer indício de potência popular existente no tecido social e cidadão. O processo de individualização e perda da noção do “público” a que o neoliberalismo levava encontrou terreno fértil para florescer como um fenômeno destruidor do que nos anos 1990 intelectuais como Moulian e Lechner chamaram de comunidade perdida, ou homem credit card. Esse era o afã pelo êxito e a complacência para administrar o poder característicos dos quadros dirigentes que recuperavam a democracia, mas, agora, e diferentemente do ocorrido antes de 1973, como novos atores e uma “nova aliança de classes”, que se denominava “aliança público-privada” e incluía o sistema político institucional e o grande setor privado empresarial (que agora são “grupos econômicos”).
A história, no entanto, seguiu seu curso, e este nos mostra que, sempre diante da corrente dominante que impõe sua teoria e política sobre o desenvolvimento, se ergue uma corrente crítica. No Chile, esse foi um processo gradual. No começo, foi como um mal-estar social, com interpretações críticas isoladas, ensaios ou equívocos de movimentos e organizações – tudo isso foi amadurecendo pouco a pouco. As agendas, articulações e reivindicações sociais percorreram um périplo de tempo longo de acumulação. É uma história – a da reconstrução da cidadania da pós-ditadura – que ainda não está escrita, mas se trata de uma construção cheia de paradoxos, feridas e dores, êxitos e derrotas, contaminações e incoerências, repressão e pequenos e às vezes grandes heroísmos. Uma história incompleta.
A energia social foi se acumulando ao longo dos anos e das lutas e deveria se liberar por algum canto. A noção de “esgotamento institucional” foi a categoria encontrada para entender a crise de representação que vivia a sociedade chilena. O sinal mais evidente disso foi a derrota eleitoral do governo da Concertación no começo de 2010, explicado por sua própria decomposição e pelo desmembramento de seus quadros; mas isso já vinha acompanhado de um mal-estar expresso cada vez mais nas ruas e nos territórios, e pela própria cidadania.
Assim como o esgotamento que vive o sistema político institucional, que tirou a credibilidade da própria democracia representativa, essa série de movimentos sociais que emergiram na cena pública com maior visibilidade em 2011 persiste, com maior ou menor intensidade, até agora. De fato, surgiu em 2011 um movimento social para libertar as energias acumuladas por tanto tempo, que veio para condensar o conjunto dos mal-estares e desatou as forças que até então estavam aprisionadas. Alguém abriu a caixa de Pandora. Trata-se do movimento estudantil universitário, que recolheu os aprendizados de tantas lutas. Acumulou ensinamentos próprios, mas podemos especular que também de outras lutas: das demandas surgidas nos movimentos ambientais – do repúdio aos testes nucleares franceses no atol de Moruroa, Ralco, Hidroaysen,Celco, Punta Choros, Castilla, Pascua Lama etc.; do movimento indígena que reivindicava seus direitos a ser nação, à terra e ao reconhecimento, entre outras demandas; dos movimentos regionalistas e locais, por condições de vida, meio ambiente, descentralização etc. (Calama, Huasco, Tocopilla, Freirina, Magallanes, Aysen); do movimento da diversidade (LGBT) e suas amplas lutas; do importante movimento dos estudantes secundaristas (em particular os pinguins, em 2006), e da persistente luta do movimento sindical, além dos colonos, professores e muitos outros.
A importância em especial dessa mobilização estudantil de 2011 é que no Chile a subjetividade social muda, e os movimentos que saíram às ruas e aos territórios conseguiram instalar uma agenda imprescindível até mesmo para os atores mais institucionais. Dessa forma, surgiu um novo quadro na mesa das disputas públicas: uma “agenda política” – mudança na Constituição via uma Assembleia Constituinte – e um questionamento do modelo de desenvolvimento vigente, por meio da contestação do abuso e das injustiças geradas pelo sistema de pensões, saúde e educação privada, por um lado, e da excessiva centralização de outro, pautas elevadas como principais bandeiras de luta.
O certo é que o movimento estudantil apresenta uma diferença maior em relação aos movimentos sociais de antanho. Se antes de 1973 estes haviam estabelecido uma aliança com partidos políticos, sindicatos e Igreja, agora aquele tem maior desconfiança e surge mais emancipado do apoio político institucionalizado. Essa desconfiança se manifestou muito explicitamente em relação ao Parlamento, no momento de negociar saídas para o conflito educacional. Isso implica a configuração de movimentos sociais heterogêneos e transversais, onde se mistura todo tipo de reivindicações, grupos sociais e etários, mas que são também mais horizontais e autônomos.
Embora os partidos políticos estabelecidos tenham tentado se apropriar de certas narrativas, símbolos e atores dos movimentos sociais, não se produziu uma convergência significativa entre instituições políticas e esses movimentos. Por sua vez, o governo de direita tampouco soube responder de forma coerente, por estar demasiadamente implicado na manutenção do modelo e ter muito interesse em preservar o sistema vigente. Então, as grandes perguntas que os atores mais lúcidos desses movimentos fazem se centram na natureza da relação entre o social e o político do novo período; na eventual novidade histórica dessas mobilizações; na persistência e capacidade que esse movimento tem de pressionar por mudanças na agenda política da democracia (Nova Constituição) e na agenda econômica de desenvolvimento (Novo Modelo de Desenvolvimento); na convergência estratégica que se configura no cidadão no Chile atual; e em suas diferenças táticas.
Juntamente a essas perguntas, vislumbra-se um horizonte estratégico que está relativamente claro. As perguntas endógenas a que o movimento tem precisado responder se encontram no campo da tática, particularmente no tipo de relação que se deve ter com a política. Trata-se de um tema que não ficou resolvido nessa fase da luta política e social. Não se conseguiram criar as alianças necessárias nem se chegou ao amadurecimento de uma síntese consensual dos caminhos a seguir.
Os caminhos, na realidade, se distanciaram. Houve os que assumiram a necessidade de apostar na chamada “agenda curta” (avanços e êxitos concretos mais que discursos com demandas muito ambiciosas e difíceis de realizar). Outros adotaram posturas próximas à “realpolitik” (os dirigentes estudantis comunistas e outros que decidiram se aliar à antiga Concertación– hoje Nova Maioria – para promover as mudanças a partir de dentro do sistema). Houve os que assumiram o sistema eleitoral e se apresentaram às eleições, mas com um referente político próprio (Izquierda Autónoma, Partido Igualdad), tentando novamente uma terceira via – o que também observamos em distintos esforços de candidaturas presidenciais alternativas. E os que, próximo a posturas anarquistas, chamam ao abstencionismo, para deslegitimar o sistema político institucional, e valorizam exclusivamente, no momento, a mobilização social. A estes se somam variadas alternativas que mostram a diversidade desses claro-escuros, que inclui versões similares ao anarquismo.
De alguma maneira, estabeleceu-se um cenário no qual se constata que os movimentos instalaram de maneira exitosa uma mudança na agenda, mas não conseguiram acumular força para si mesmos nem amadurecer suficientemente, tampouco em suas articulações e alianças. Para isso, seria preciso ainda a formulação de um projeto e de uma estratégia que permitissem ao movimento social constituir uma força social e política capaz de cristalizar sua própria agenda. Se isso parece ser recolhido em parte por programas dos candidatos presidenciais, denotando certa institucionalização das demandas sociais, as ferramentas de controle social terão de ser ampliadas para permitir um real protagonismo social.
Independentemente da importância que os atores que protagonizaram as mobilizações nos últimos anos dão à política, o exemplo chileno observado de uma perspectiva de longa duração nos demonstra que não haverá transformações sociais nem “participação cidadã” sem uma mobilização social nas ruas, nos territórios e nos espaços de negociação institucional, combinadamente. Não haverá “participação cidadã” real se não se estruturar um projeto histórico que volte a fazer que os cidadãos dialoguem com a política, uma política que proponha um horizonte de transformações históricas em direção a uma vida melhor e que, por fim, isso se expresse com um governo que politicamente se atreva nesse horizonte de mudanças. Mais que isso seria ilusão.
Miguel Santibáñez é Presidente da Associação Chilena de ONGs (Acción).